É a questão urbana, estúpido!,
Ermínia Maricato
Nem toda melhoria das condições de vida é acessível com melhores
salários ou com melhor distribuição de renda. Boas condições de vida dependem,
frequentemente, de políticas públicas urbanas – transporte, moradia,
saneamento, educação, saúde, lazer, iluminação pública, coleta de lixo,
segurança.
Há uma disputa básica, como um pano de fundo, entre aqueles que querem
dela melhores condições de vida e aqueles que visam apenas extrair ganhos.
As cidades brasileiras carregam uma herança pesada. A desigualdade
social, uma das maiores da América Latina, e a escravidão vigente até pouco
mais de um século atrás são características que se somam a um Estado
patrimonialista e à universalização da “política do favor.
A melhoria desses bairros é fonte inesgotável do velho clientelismo
político: troca-se por votos a pavimentação de uma rua, a iluminação pública,
uma unidade de saúde, uma linha de ônibus etc.
Os principais programas sociais do governo Lula, continuados pelo de
Dilma Rousseff foram o Bolsa Família, o Crédito Consignado, o Programa
Universidade para Todos (ProUni), que oferece bolsas de estudo em universidades
privadas trocadas por impostos, o Programa de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (Pronaf) e o Programa Luz para Todos. Garantiu-se também um aumento
real do salário mínimo (de cerca 55%, entre 2003 e 2011, conforme o Dieese). Os
classificados em “condição de pobreza” diminuíram sua representação de 37,2%
para 7,2% nesse mesmo período.
Em 2010 o PIB nacional foi de 7,5% e o da construção civil, 11,7%[6].
Em seis regiões metropolitanas, o desemprego, que atingia 12,8% em 2003, caiu
para 5,8% em 2012. A taxa de desemprego da construção civil no período diminuiu
de 9,8% para 2,7%[7]. O investimento de capitais privados no mercado
residencial cresceu 45 vezes, passando de R$ 1,8 bilhão em 2002 para R$ 79,9
bilhões em 2011[8], e os subsídios governamentais (em escala inédita no país)
cresceram de R$ 784.727 milhões para mais de R$ 5,3 bilhões em 2011[9]. O
coração da agenda da reforma urbana, a reforma fundiária/imobiliária, foi esquecido.
Em São Paulo o preço dos imóveis sofreu aumento de 153% entre 2009 e
2012. No Rio de Janeiro, o aumento foi de 184%. A terra urbana permaneceu refém
dos interesses do capital imobiliário e, para tanto, as leis foram
flexibilizadas ou modificadas, diante de urbanistas perplexos.
Os pobres foram expulsos para a periferia da periferia. Novas áreas de
proteção ambiental, como a Área de Proteção dos Mananciais em São Paulo, acabam
sendo invadidas pelos sem alternativas.
A desoneração dos automóveis somada à ruína do transporte coletivo fez
dobrar o número de carros nas cidades.
A velocidade média dos automóveis em São Paulo, medida entre às 17h e
20h em junho de 2012, foi de 7,6 km/h, ou seja, quase igual a da caminhada a
pé.
Verdadeiros assaltos aos cofres públicos, os investimentos em obras de
viadutos, pontes e túneis, além de ampliação de avenidas, não guardam qualquer
ligação com a racionalidade da mobilidade urbana, mas com a expansão do mercado
imobiliário, além, obviamente, do financiamento de campanhas.
O primeiro item necessário à política urbana hoje é a reforma política,
em especial o financiamento de campanhas eleitorais.
A liberdade da cidade, David
Harvey
Se descobrirmos que nossa vida se tornou muito estressante, alienante,
simplesmente desconfortável ou sem motivação, então temos o direito de mudar de
rumo e buscar refazê-la segundo outra imagem.
A questão do tipo de cidade que desejamos é inseparável da questão do
tipo de pessoa que desejamos nos tornar.
Além do mais, vivemos, na maioria, em cidades divididas, fragmentadas e
tendentes ao conflito.
A globalização e a guinada em direção ao neoliberalismo enfatizaram, ao
invés de diminuir, as desigualdades sociais. O poder de classe foi restaurado
às elites ricas.
Os bairros ricos são atendidos por toda sorte de serviços, tais como
escolas caras, campos de golfe, quadras de tênis e patrulhamento particular 24
horas por dia, que se emaranham entre ocupações ilegais, onde a água é
disponível somente em fontes públicas, nenhum sistema sanitário existe, a
eletricidade é privilégio de poucos, as ruas se tornam lama quando chove e o
compartilhamento dos espaços domésticos é a norma.
As cidades sempre foram lugares de desenvolvimentos geográficos
desiguais (às vezes de um tipo totalmente benevolente e entusiasmante), mas as
diferenças agora proliferam e se intensificam de maneiras negativas, até mesmo
patológicas, que inevitavelmente semeiam tensão civil.
Tais desenvolvimentos urbanos desiguais traçam o cenário para o
conflito social
Por um lado, tais diferenciações podem gerar novas e maravilhosas
fusões, como as que vemos nas tradições musicais de Nova Orleans, Joanesburgo
ou no East End londrino. Concluímos daí que o direito à diferença é um dos mais
preciosos direitos dos citadinos. A cidade sempre foi um lugar de encontro, de
diferença e de interação criativa, um lugar onde a desordem tem seus usos e
visões, formas culturais e desejos individuais concorrentes se chocam.
Mas a diferença também pode resultar em intolerância e segregações,
marginalidade e exclusão, quando não em fervorosos confrontos.
Se for assim, como Marx tão celebremente escreveu, entre direitos
iguais quem decide é a força.
Como, em resumo, poderia o direito à cidade ser exercitado pela mudança
da vida urbana? A resposta de Lefebvre é simples em essência: por meio da
mobilização social e da luta política/social.
Mas, ao contrário – e é aqui que a dialética retorna para nos assombrar
–, a cidade nos faz sob circunstâncias urbanas que não escolhemos.
Ao abrir a porta da imaginação humana, Marx, ainda que tenha procurado
negá-lo, cria um movimento utópico dentro do qual nossas imaginações podem
vagar e pensar em possíveis alternativas de mundos urbanos.
No entanto, o neoliberalismo transformou as regras do jogo político.
A lei e as parcerias público-privadas, feitas sem transparência,
substituíram as instituições democráticas; a anarquia do mercado e do
empreendedorismo competitivo substituíram as capacidades deliberativas baseadas
em solidariedades sociais.
O direito à cidade, como comecei a dizer, não é apenas um direto
condicional de acesso àquilo que já existe, mas sim um direito ativo de fazer a
cidade diferente, de formá-la mais de acordo com nossas necessidades coletivas
(por assim dizer), definir uma maneira alternativa de simplesmente ser humano.
Se nosso mundo urbano foi imaginado e feito, então ele pode ser reimaginado e
refeito.
[...] o direito à cidade é um
grito, uma demanda, então é um grito que é ouvido e uma demanda que tem força
apenas na medida em que existe um espaço a partir do qual e dentro do qual esse
grito e essa demanda são visíveis. No espaço público – nas esquinas ou nos
parques, nas ruas durante as revoltas e comícios – as organizações políticas
podem representar a si mesmas para uma população maior e, através dessa
representação, imprimir alguma força a seus gritos e demandas. Ao reclamar o
espaço em público, ao criar espaços públicos, os próprios grupos sociais
tornam-se públicos.
O transporte público gratuito,
uma utopia real, João Alexandre Peschanski
A criação de um sistema de transporte público gratuito não é viável
apenas numa configuração social futura, hipotética – é em princípio funcional
ao capitalismo realmente existente [3].
A tarifa zero se justifica, nesses termos econômicos, se o preço total
dos impactos sociais positivos for tomado como a base para o pagamento público
das tarifas de cada usuário [5].
Drástica diminuição dos custos sociais relacionados à poluição e ao
trânsito quando o meio de transporte principal é o automóvel individual.
As montadoras repassam ao cidadão e ao Estado os custos sociais
relacionados ao uso de automóveis. Os brasileiros pagam para que cada vez mais pessoas
tenham carros individuais.
Para atingir cada vez mais consumidores, as montadoras exigem do
governo redução de impostos e mais facilidade no crédito para compradores –
querem se livrar ainda mais dos custos sociais dos carros que produzem.
O imposto deveria aumentar sobre as montadoras que lucram com a
produção de um bem com alto custo social
Os usuários de transporte público beneficiam toda a sociedade, pois
mantêm baixos os custos sociais relacionados ao transporte (poluição,
trânsito). Beneficiam até mesmo as pessoas que não usam o transporte público.
Cobrar pelo transporte público se torna uma exploração dos usuários
pelos não usuários.
Os gastos do sistema de transporte coletivo deveriam ser partilhados
pelos beneficiados, ou seja, divididos entre todos os cidadãos.
A gratuidade funciona como um incentivo aos cidadãos para que usem meios
públicos de locomoção, aumentando os benefícios sociais.
As montadoras têm, evidentemente, interesse em manter a sociedade
dependente dos carros que fabricam. Para garantir seus lucros, precisam manter
essa dependência e investem para pressionar os governos locais e federal.
O real obstáculo para a proposta da tarifa zero diz respeito às
relações de poder no capitalismo.
Mídia, rebeldia urbana e crise
de representação, Venício A. de Lima
A despeito da evidente responsabilidade que cabe à imensa maioria da classe
política pelo desenrolar sombrio do processo político brasileiro, os meios de
comunicação a apresentam de modo homogeneizado e, em comparação com os dardos
de sua crítica, poupam outros setores [...]. Tem-se muitas vezes a impressão de
que corrupção, cinismo e desmandos são monopólio dos políticos, dos partidos ou
do Congresso [...].[2]
A primeira reação foi de condenação pura e simples. As manifestações
deveriam ser reprimidas com rigor ainda maior. À medida, no entanto, que o
fenômeno se alastrou, a velha mídia alterou radicalmente sua avaliação inicial.
Passou então a cobrir em tempo real os acontecimentos, como se fosse apenas uma
observadora imparcial, que nada tivesse a ver com os fatos que desencadearam
todo o processo. O que começou com veemente condenação transformou-se, da noite
para o dia, não só em tentativa de cooptação, mas também de instigar e pautar
as manifestações, introduzindo bandeiras aparentemente alheias à motivação
original dos manifestantes.
Identificou também uma oportunidade de “desconstruir” as inegáveis
conquistas sociais dos últimos anos em relação ao combate à desigualdade, à
miséria e à pobreza.
Esse déficit na representação política do Parlamento, acrescido do
bloqueio histórico de vozes ao debate público e a consequente corrupção da
opinião pública, praticados pelos oligopólios empresariais da velha mídia,
talvez nos ajudem a compreender, pelo menos em parte, a explosão das ruas.
Embora consiga dissimular com competência suas reais intenções, a velha
mídia não só faz parte como de fato agrava a crise da representação política
Problemas no Paraíso, Slavoj
Žižek
Uma situação revolucionária surge quando se torna claro que apenas uma
mudança global radical pode resolver os problemas particulares.
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