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25.8.15

BOURDIEU, Pierre; KÜHNER, Maria Helena. A dominação masculina. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. 158 p.

A dominação masculina - Pierre Bourdieu

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É preciso realmente perguntar-se quais são os mecanismos históricos que são responsáveis pela des-historicização e pela eternização das estruturas da divisão sexual e dos princípios de divisão correspondentes.

Lembrar que aquilo que, na história, aparece como eterno não é mais que o produto de um trabalho de eternização que compete a instituições interligadas tais como a família, a igreja, a escola, e também, em uma outra ordem, o esporte e o jornalismo.

E reinserir na história é, portanto, devolver a ação histórica, a relação entre os sexos que a visão naturalista e essencialista dela arranca (e não, como quiseram me fazer dizer, tentar parar a história e retirar das mulheres seu papel de agentes históricos).

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De fato, jamais deixei de me espantar diante do que poderíamos chamar de o paradoxo da doxa: o fato de que a ordem do mundo, tal como está, seja grosso modo respeitada, que não haja um maior número de transgressões ou subversões, delitos e "loucuras" ou, o que é ainda mais surpreendente, que a ordem estabelecida, com suas relações de dominação, seus direitos e suas imunidades, seus privilégios e suas injustiças, salvo uns poucos acidentes históricos, perpetue-se apesar de tudo tão facilmente, e que condições de existência das mais intoleráveis possam permanentemente ser vistas como aceitáveis ou até mesmo como naturais.

Resultante daquilo que eu chamo de violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento.

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Nossa questão principal tem que ser a de demonstrar os processos que são responsáveis pela transformação da história em natureza, do arbitrário cultural em natural.

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Quebrar a relação de enganosa familiaridade que nos liga a nossa própria tradição.

As aparências biológicas e os efeitos, bem reais, que um longo trabalho coletivo de socialização do biológico e de biologização do social produziu nos corpos e nas mentes conjugam-se para inverter a relação entre as causas e os efeitos e fazer ver uma construção social naturalizada.

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O sistema mítico-ritual desempenha aqui um papel equivalente ao que incumbe ao campo jurídico nas sociedades diferenciadas: na medida em que os princípios de visão e divisão que ele propõe estão objetivamente ajustados às divisões pré-existentes, ele consagra a ordem estabelecida, trazendo-a à existência conhecida e reconhecida, oficial.

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A força da ordem masculina se evidência no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la.

A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos.

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Ao associar a ereção fálica à dinâmica vital do enchimento, que é imanente a todo o processo de reprodução natural (germinação, gestação etc.), a construção social dos órgãos sexuais registra e ratifica simbolicamente certas propriedades naturais indiscutíveis: ela contribui, assim, juntamente com outros mecanismos, dos quais o mais importante é, sem duvida, como vimos, a inserção de cada relação (cheio/vazio, por exemplo) em um sistema de relações homólogas e interconectadas, para converter a arbitrariedade do nomos social em necessidade da natureza (physis).

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A definição social dos órgãos sexuais, Longe de ser um simples registro de propriedades naturais, diretamente expostas a percepção, é produto de uma construção efetuada a custa de uma série de escolhas orientadas, ou melhor, através da acentuação de certas diferenças, ou do obscurecimento de certas semelhanças.

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Os anatomistas de princípios do século XIX (sobretudo Virey), ampliando o discurso dos moralistas, tentam encontrar no corpo da mulher a justificativa do estatuto social que lhes é imposto, apelando para oposições tradicionais entre o interior e o exterior, a sensibilidade e a razão, a passividade e a atividade.

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Como se se tratasse de neutralizar simbólica e praticamente todas as conotações potencialmente sexuais do exame ginecológico, o médico se submete a um verdadeiro ritual visando a manter a barreira, simbolizada pela cintura, entre a pessoa pública e a vagina, jamais vistas simultaneamente: em um primeiro momento, ele se dirige a uma pessoa, face a face; a seguir, após a pessoa ter-se despido para ser examinada, em presença de uma enfermeira, ele a examina, deitada e recoberta por um lençol que lhe cobre a parte superior do corpo, observando a vagina como algo dissociado da pessoa e, por tal, reduzida a condição de coisa, em presença da enfermeira, a quem ele faz suas observações, falando da paciente em terceira pessoa; enfim, em um terceiro momento, ele se dirige novamente à mulher, que já se vestiu de novo fora de seus olhares.

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O comércio do sexo continua a ser estigmatizado.

Ao fazer intervir o dinheiro, certo erotismo masculino associa a busca do gozo ao exercício brutal do poder sobre os corpos reduzidos ao estado de objetos.

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Resulta dai que a posição considerada normal e, logicamente, aquela em que o homem "fica por cima".

A posição amorosa na qual a mulher se põe por sobre o homem é também explicitamente condenada em inúmeras civilizações.

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De modo geral, possuir sexualmente, como em francês baiserou em inglês to fuck, é dominar no sentido de submeter a seu poder, mas significa também enganar, abusar ou, como nós dizemos, "possuir".

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O gozo masculino é, por um lado, gozo do gozo feminino, do poder de fazer gozar: assim Catharine MacKinnon sem dúvida tem razão de ver na "simulação do orgasmo" (faking orgasm) uma comprovação exemplar do poder masculino de fazer com que a interação entre os sexos se dê de acordo com a visão dos homens, que esperam do orgasmo feminino uma prova de sua virilidade e do gozo garantido por essa forma suprema da submissão.

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Em inúmeras sociedades, a posse homossexual é vista como uma manifestação de "potência", um ato de dominação (exercido como tal, em certos casos, para afirmar a superioridade "feminizando" o outro).

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Compreende-se que, sob esse ponto de vista, que liga sexualidade a poder, a pior humilhação, para um homem, consiste em ser transformado em mulher.

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A "intenção" objetiva de negar a parte feminina do masculino (esta mesma que Melanie Klein pedia à psicanalise para resgatar, por uma operação inversa a que realiza o ritual), de abolir os laços e os vínculos com a mãe, com a terra, com a umidade, com a noite, com a natureza, manifesta-se, por exemplo, nos ritos que se realizam no momento denominado "a separação en ennayer" (el aazla gennayer), como o primeiro corte de cabelos do menino, e em todas as cerimônias que marcam a ultrapassagem do limiar do mundo masculino e que terão seu coroamento na circuncisão.

Daí a importância do primeiro corte de cabelos, que está, igualmente, ligado ao fato de que a cabeleira feminina é um dos elos simbólicos que unem o menino ao mundo materno. E ao pai que incumbe dar este corte inaugural, com a navalha, instrumento masculino, no dia da "separação en ennayer" e pouco antes da primeira entrada no mercado, isto é, em uma idade situada entre os seis e os dez anos.

Visa a virilizá-los, despojando-os de tudo aquilo que poderia neles restar de feminino

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A moral feminina se impõe, sobretudo, através de uma disciplina incessante, relativa a todas as partes do corpo, e que se faz lembrar e se exerce continuamente através da coação quanto aos trajes ou aos penteados.

A postura submissa que se impõe às mulheres cabilas representa o limite máximo da que até hoje se impõe às mulheres, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, e que, como inúmeros observadores já demonstraram, revela-se em alguns imperativos:

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Como se a feminilidade se medisse pela arte de "se fazer pequena" (o feminino, em berbere, vem sempre em diminutivo), mantendo as mulheres encerradas em uma espécie de cerco invisível.

Essa espécie de confinamento simbólico é praticamente assegurado por suas roupas e tem por efeito não só dissimular o corpo, chamá-lo continuamente à ordem (tendo a saia uma função semelhante à sotaina dos padres) sem precisar de nada para prescrever ou proibir explicitamente, ora com algo que limita de certo modo os movimentos, como os saltos altos ou a balsa que ocupa permanentemente as mãos, e sobretudo a saia que impede ou desencoraja alguns tipos de atividades (a corrida, algumas formas de se sentar etc.); ora só as permitindo à custa de precauções constantes, como no caso das jovens que puxam seguidamente para baixo uma saia demasiado curta, ou se esforçam por cobrir com o antebraço uma blusa excessivamente decotada, ou têm que fazer verdadeiras acrobacias para apanhar no chão um objeto mantendo as pernas fechadas.

Essas maneiras de usar o corpo, profundamente associadas à atitude moral e à contenção que convém às mulheres, continuam a lhes ser impostas, como que a sua revelia, mesmo quando deixaram de lhes ser impostas pela roupa (como o andar com passinhos de algumas jovens de calças compridas e sapatos baixos). E as poses ou as posturas mais relaxadas, como o fato de se balançarem na cadeira, ou de porem os pés sobre a mesa, que são por vezes vistas nos homens - do mais alto escalão - como forma de demonstração de poder, ou, o que dá no mesmo, de afirmação são, para sermos exatos, impensáveis para uma mulher.

Aos que objetariam que inúmeras mulheres romperam atualmente com as normas e formas tradicionais daquela contenção, apontando sua atual exibição controlada do corpo como um sinal de "liberação", basta mostrar que este uso do próprio corpo continua, de forma bastante evidente, subordinado ao ponto de vista masculino (como bem se vê no uso que a publicidade faz da mulher, ainda hoje, na França, após meio século de feminismo).

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Cabe aos homens, situados do lado do exterior, do oficial, do público, do direito, do seco, do alto, do descontínuo, realizar todos os atos ao mesmo tempo breves, perigosos e espetaculares, como matar o boi, a lavoura ou a colheita, sem falar do homicídio e da guerra, que marcam rupturas no curso ordinário da vida. As mulheres, pelo contrário, estando situadas do lado do úmido, do baixo, do curvo e do continuo, veem ser-lhes atribuídos todos os trabalhos domésticos, ou seja, privados e escondidos, ou até mesmo invisíveis e vergonhosos, como o cuidado das crianças e dos animais

Pelo fato de o mundo limitado em que elas estão confinadas, o espaço do vilarejo, a casa, a linguagem, os utensílios, guardarem os mesmos apelos a ordem silenciosa, as mulheres não podem senão tornar-se o que elas são segundo a razão mítica, confirmando assim, e antes de mais nada a seus próprios olhos, que elas estão naturalmente destinadas ao baixo, ao torto, ao pequeno, ao mesquinho, ao fútil etc. Elas estão condenadas a dar, a todo instante, aparência de fundamento natural a identidade minoritária que lhes é socialmente designada.

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A visão androcêntrica é assim continuamente legitimada pelas próprias práticas que ela determina: pelo fato de suas disposições resultarem da incorporação do preconceito desfavorável contra o feminino, instituído na ordem das coisas, as mulheres não podem senão confirmar seguidamente tal preconceito.


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Os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação, fazendo-as assim ser vistas como naturais.

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A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, a dominação) quando os esquemas que ele põe em ação para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes (elevado/baixo, masculino/feminino, branco/negro etc.), resultam da incorporação de classificações, assim naturalizadas, de que seu ser social é produto.

Constatou-se, por exemplo, que as mulheres francesas, em sua grande maioria, declaram que elas desejariam ter um cônjuge mais velho e, também, de modo inteiramente coerente, mais alto que elas, dois terços delas chegando a recusar explicitamente um homem menor.

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Aceitar uma inversão das aparências, responde Michel Bozon, é fazer crer que é a mulher que domina, algo que (paradoxalmente) a rebaixa socialmente: ela se sente diminuída com um homem diminuído. Portanto, não basta observar que as mulheres concordam em geral com os homens, elas só podem querer e amar um homem cuja dignidade esteja claramente afirmada e atestada no fato, e pelo fato, de que "ele as supera" visivelmente.

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O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de cultura, de língua etc.) se exerce não na lógica pura das consciências cognoscentes, mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que são constitutivos dos habitus.

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A força simbólica é uma forma de poder que se exerce sobre os corpos, diretamente, e como que por magia, sem qualquer coação física; ação transformadora ainda mais poderosa por se exercer, nos aspectos mais essenciais, de maneira invisível e insidiosa, através da insensível familiarização com um mundo físico simbolicamente estruturado e da experiência precoce e prolongada de interações permeadas pelas estruturas de dominação.

As paixões do habitus dominado (do ponto de vista do gênero, da etnia, da cultura ou da língua), não são das que se podem sustar com um simples esforço de vontade, alicerçado em uma tomada de consciência libertadora.

Se é totalmente ilusório crer que a violência simbólica pode ser vencida apenas com as armas da consciência e da vontade, é porque os efeitos e as condições de sua eficácia estão duradouramente inscritas no mais íntimo dos corpos sob a forma de predisposições (aptidões, inclinações).

É o que se vê, sobretudo, no caso das relações de parentesco confundidos muitas vezes na experiência do respeito e do devotamento afetivo, podem sobreviver durante muito tempo depois de desaparecidas suas condições sociais de produção.

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O poder simbólico não pode se exercer sem a colaboração dos que lhe são subordinados e que só se subordinam a ele porque o constroem como poder.

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E na lógica da economia de trocas simbólicas - e, mais precisamente, na construção social das relações de parentesco e do casamento, em que se determina as mulheres seu estatuto social de objetos de troca, definidos segundo os interesses masculinos, e destinados assim a contribuir para a reprodução do capital simbólico dos homens, que reside a explicação do primado concedido à masculinidade.

O tabu do incesto, em que Levi-Strauss vê o ato fundador da sociedade, na medida em que implica o imperativo de troca compreendido como igual comunicação entre os homens, e correlativo da instituição da violência pela qual as mulheres são negadas como sujeitos da troca e da aliança que se instauram através delas, mas reduzindo-as à condição de objetos, ou melhor, de instrumentos simbólicos da politica masculina: destinadas a circular como signos fiduciários e a instituir assim relações entre os homens, elas ficam reduzidas a condição de instrumentos de produção ou de reprodução do capital simbólico e social.

"Corpo feminino, literalmente, um objeto que pode ser avaliado e intercambiado, circulando entre os homens ao mesmo titulo que uma moeda".

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(Re)produzir o jogo e seus lances é (re)produzir as condições de acesso à reprodução social (e não apenas a sexualidade), garantida por uma troca agonística que visa a acumular estatutos genealógicos, nomes de linhagem ou de ancestrais, isto é, capital simbólico, e portanto, poderes e direitos duradouros sobre pessoas: os homens produzem signos e os trocam ativamente, como parceiros-adversários unidos por uma relação essencial de igualdade na honra, condição mesma de uma troca que pode produzir a desigualdade na honra, isto é, a dominação.

A dissimetria é, pois, radical entre o homem, sujeito, e a mulher, objeto de troca;

As mulheres são valores que, investidos nas trocas, podem produzir alianças, isto é, capital social e aliados prestigiosos, isto é, capital simbólico.

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Este investimento primordial nos jogos sociais (illusio), que torna o homem verdadeiramente homem - senso de honra, virilidade, manliness, ou, como dizem os cabilas, "cabilidade" (thak-baylith) -, é o princípio indiscutido de todos os deveres para consigo mesmo, isto é, que deve cumprir para estar agindo corretamente consigo mesmo, para permanecer digno, a seus próprios olhos, de uma certa ideia de homem.

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O ponto de honra, essa forma peculiar de sentido do jogo que se adquire pela submissão prolongada às regularidades e as regras da economia de bens simbólicos, e o principio do sistema de estratégias de reprodução pelas quais os homens, detentores do monopólio dos instrumentos de produção e de reprodução do capital simbólico, visam a assegurar a conservação ou o aumento deste capital.

As mulheres são excluídas de todos os lugares públicos (assembleia, mercado), em que se realizam os jogos comumente considerados os mais sérios da existência humana, que são os jogos da honra.

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Se as mulheres, submetidas a um trabalho de socialização que tende a diminuí-las, a negá-las, fazem a aprendizagem das virtudes negativas da abnegação, da resignação e do silêncio, os homens também estão prisioneiros e, sem se aperceberem, vítimas, da representação dominante. Tal como as disposições à submissão, as que levam a reivindicar e a exercer a dominação não estão inscritas em uma natureza e têm que ser construídas ao longo de todo um trabalho de socialização, isto é, como vimos, de diferenciação ativa em relação ao sexo oposto. Ser homem, no sentido de vir, implica um dever-ser, uma virtus, que se impõe sob a forma do "é evidente por si mesma", sem discussão.

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O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua contrapartida na tensão e contensão permanentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõe a todo homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstancia, sua virilidade.

A virilidade, entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas também como aptidão ao combate e ao exercício da violência (sobretudo em caso de vingança), é, acima de tudo, uma carga.

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A virilidade tem que ser validada pelos outros homens, em sua verdade de violência real ou potencial, e atestada pelo reconhecimento de fazer parte de um grupo de "verdadeiros homens”. Inúmeros ritos de instituição, sobretudo os escolares ou militares, comportam verdadeiras provas de virilidade, orientadas no sentido de reforçar solidariedades viris. Práticas como, por exemplo, os estupros coletivos praticados por bandos de adolescentes.

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O que chamamos de "coragem" muitas vezes tem suas raízes em uma forma de covardia: para comprová-lo, basta lembrar todas as situações em que, para lograr atos como matar, torturar ou violentar, a vontade de dominação, de exploração ou de opressão baseou-se no medo "viril" de ser excluído do mundo dos "homens" sem fraquezas, dos que são por vezes chamados de "duros".

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A virilidade, como se vê, é uma noção eminentemente relacional, construída diante dos outros homens, para os outros homens e contra a feminilidade, por uma espécie de medo do feminino.

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"Vocação", tem por efeito produzir tais encontros harmoniosos entre as disposições e as posições, encontros que fazem com que as vítimas da dominação simbólica possam cumprir com felicidade (no duplo sentido do termo) as tarefas subordinadas ou subalternas que lhes são atribuídas por suas virtudes de submissão, de gentileza, de docilidade, de devotamento e de abnegação.

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Os homens mais bem-intencionados (a violência simbólica, como se sabe, não opera na ordem das intenções conscientes) realizam atos discriminatórios, excluindo as mulheres, sem nem se colocar a questão, de posições de autoridade, reduzindo suas reivindicações a caprichos.

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As mesmas tarefas podem ser nobres e difíceis quando são realizadas por homens, ou insignificantes e imperceptíveis, fáceis e fúteis, quando são realizadas por mulheres, como nos faz lembrar a diferença entre um cozinheiro e uma cozinheira, entre o costureiro e a costureira; basta que os homens assumam tarefas reputadas femininas e as realizem fora da esfera privada para que elas se vejam com isso enobrecidas e transfiguradas.

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Tudo, na gênese do habitus feminino e nas condições sociais de sua realização, concorre para fazer da experiência feminina do corpo o limite da experiência universal do corpo-para-o-outro, incessantemente exposto à objetivação operada pelo olhar e pelo discurso dos outros.

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A dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos simbólicos, cujo ser (esse) é um ser-percebido (percipi), tem por efeito colocá-las em permanente estado de insegurança corporal, ou melhor, de dependência simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis. Delas se espera que sejam "femininas", isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas. E a pretensa "feminilidade" muitas vezes não é mais que uma forma de aquiescência em relação às expectativas masculinas, reais ou supostas, principalmente em termos de engrandecimento do ego. Em consequência, a dependência em relação aos outros (e não só aos homens) tende a se tornar constitutiva de seu ser.

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De maneira mais geral, o acesso ao poder, seja ele qual for, coloca as mulheres em situação de double bind: se atuam como homens, elas se expõem a perder os atributos obrigatórios da "feminilidade" e põem em questão o direito natural dos homens às posições de poder; se elas agem como mulheres, parecem incapazes e inadaptadas à situação.

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A socialização diferencial predispõe os homens a amar os jogos de poder e as mulheres a amar os homens que os jogam;

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A história se obriga a tomar como objeto o trabalho constante de diferenciação a que homens e mulheres não cessam de estar submetidos e que os leva a distinguir-se masculinizando-se ou feminilizando-se.

Ela deveria empenhar-se particularmente em descrever e analisar a (re)construção social

das diferentes categorias de práticas sexuais (sobretudo heterossexuais e homossexuais), sendo a própria heterossexualidade construída socialmente e socialmente constituída como padrão universal de toda prática sexual "normal".

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O trabalho de reprodução esteve garantido, até época recente, por três instâncias principais, a Família, a Igreja e a Escola, que, objetivamente orquestradas, tinham em comum o fato de agirem sobre as estruturas inconscientes. É, sem dúvida, à família que cabe o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculinas; e é na família que se impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem. Quanto à Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um clero pronto a condenar todas as faltas femininas à decência, sobretudo em matéria de trajes, e a reproduzir, do alto de sua sabedoria, uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade, ela inculca (ou inculcava) explicitamente uma moral familiarista, completamente dominada pelos valores patriarcais e principalmente pelo dogma da inata inferioridade das mulheres.

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Para terminar este recenseamento dos fatores institucionais da reprodução da divisão dos gêneros, teríamos que levar em conta o papel do Estado.

Sem falar no caso extremo dos estados paternalistas e autoritários (como a França de Petain ou a Espanha de Franco), realizações acabadas da visão ultraconservadora que faz da família patriarcal o principia e modelo da ordem social como ordem moral, fundamentada na preeminência absoluta dos homens em relação às mulheres, dos adultos sobre as crianças e na identificação da moralidade com a força, da coragem com o domínio do corpo, lugar de tentações e de desejos, os Estados modernos inscreveram no direito de família, especialmente nas regras que definem o estado civil dos cidadãos, todos os princípios fundamentais da visão androcêntrica.

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Quando indagamos de adolescentes a respeito de sua experiência escolar, não podemos deixar de chocar-nos como peso das incitações e injunções, positivas ou negativas, dos pais, dos professores e sobretudo dos orientadores escolares, ou dos colegas, sempre prontos a lembrar-lhes, de maneira tácita ou implícita, o destino que lhes e indicado pelo princípio da divisão tradicional: assim, grande número delas observa como os professores das disciplinas científicas solicitam e estimulam menos as moças que os rapazes, e como os pais, tais como os professores ou os orientadores, as desviam, "para seu bem": de determinadas carreiras consideradas masculinas.

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Em suma, através da experiência de uma ordem social "sexualmente" ordenada e das chamadas a ordem explícitas que lhes são dirigidas por seus pais, seus professores e seus colegas, e dotadas de princípios de visão que elas próprias adquiriram em experiências de mundo semelhantes, as meninas incorporam, sob forma de esquemas de percepção e de avaliação dificilmente acessíveis à consciência, os princípios da visão dominante que as levam a achar normal, ou mesmo natural, a ordem social tal como é e a prever, de certo modo, o próprio destino, recusando as posições ou as carreiras de que estão sistematicamente excluídas e encaminhando-se para as que lhes são sistematicamente destinadas.

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ECONOMIA DOS BENS SIMBÓLICOS E ESTRATÉGIAS DE REPRODUÇÃO

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Ser "feminina" é essencialmente evitar todas as propriedades e práticas que podem funcionar como sinais de virilidade; e dizer de uma mulher de poder que ela é "muito feminina" não é mais que um modo particularmente sutil de negar-lhe qualquer direito a este atributo caracteristicamente masculino que é o poder.

Enquanto que, para os homens, a aparência e os trajes tendem a apagar o corpo em proveito de signos sociais de posição social (roupas, ornamentos, uniformes etc.), nas mulheres, eles tendem a exaltá-lo e a dele fazer uma linguagem de sedução. O que explica que o investimento (em tempo, em dinheiro, em energia) no trabalho de apresentação seja muito maior na mulher.

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A FORÇA DA ESTRUTURA

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A verdade das relações estruturais de dominação sexual se deixa realmente entrever a partir do momento em que observamos, por exemplo, que as mulheres que atingiram os mais altos cargos (chefe, diretora em um ministério etc.) têm que "pagar", de certo modo, por este sucesso profissional com um menor "sucesso" na ordem domestica (divórcio, casamento tardio, celibato, dificuldades ou fracassos com os filhos etc.) e na economia de bens simbólicos; ou, ao contrário, que o sucesso na empresa doméstica tem muitas vezes por contrapartida uma renúncia parcial ou total a maior sucesso profissional.

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POST-SCRIPTUM SOBRE A DOMINAÇÃO E O AMOR

Seria o amor uma exceção, a única, mas de primeira grandeza, à lei da dominação masculina, uma suspensão da violência simbólica, ou a forma suprema, porque a mais sutil e a mais invisível, desta violência?

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Mas o nariz de Cleópatra está aí mesmo para nos lembrar que o misterioso envolvimento do amor pode também se exercer sobre os homens. As forças que suspeitamos agir na obscuridade e no segredo das relações íntimas ("ditas ao ouvido") e que prendem os homens com a magia dos arroubos da paixão, fazendo-os esquecer dos deveres ligados à sua dignidade social, determinam uma inversão na relação de dominação; inversão que, ruptura fatal da ordem comum, normal, natural, e condenada como uma falta contra a natureza e destinada, como tal, a reforçar a mitologia androcêntrica.

--- Página 128 ---

O sujeito amoroso só pode obter o reconhecimento de um outro sujeito, mas que abdique, como ele o fez, da intenção de dominar. Ele entrega livremente sua liberdade a um dono que lhe entrega igualmente a sua, coincidindo com ele em um ato de livre alienação indefinidamente afirmado (através da repetição, sem redundâncias, do "eu te amo").

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CONCLUSÃO

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Só uma ação política que leve realmente em conta todos os efeitos de dominação que se exercem através da cumplicidade objetiva entre as estruturas incorporadas (tanto entre as mulheres quanto entre os homens) e as estruturas de grandes instituições em que se realizam e se produzem não só a ordem masculina, mas também toda a ordem social (a começar pelo Estado, estruturado em torno da oposição entre sua "mão direita”: masculina, e sua "mão esquerda", feminina, e a Escola, responsável pela reprodução efetiva de todos os princípios de visão e de divisão fundamentais, e organizada também em torno de oposições homólogas) poderá, a longo prazo, sem dúvida, e trabalhando com as contradições inerentes aos diferentes mecanismos ou instituições referidas, contribuir para o desaparecimento progressivo da dominação masculina.

--- Página 136 ---

A forma particular de dominação simbólica de que são vítimas os homossexuais, marcados por um estigma que, à diferença da cor da pele ou da feminilidade, pode ser ocultado (ou exibido), impõe-se através de atos coletivos de categorização que dão margem a diferenças significativas, negativamente marcadas, e com isso a grupos ou categorias sociais estigmatizadas. Como em certos tipos de racismo, ela assume, no caso, a forma de uma negação da sua existência publica, visível. A opressão como forma de "invisibilização" traduz uma recusa à existência legitima.

ALGUMAS QUESTÕES SOBRE O MOVIMENTO GAY E LÉSBICO

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Alega-se, então, explicitamente, a "discrição" ou a dissimulação que ele é ordinariamente obrigado a se impor.

Falar de dominação, ou de violência simbólica, é dizer que, salvo uma revolta subversiva que conduza à inversão das categorias de percepção e de avaliação, o dominado tende a assumir a respeito de si mesmo o ponto de vista dominante.

Ele pode ser assim levado a aplicar a si mesmo e a aceitar, constrangido e forçado, as categorias de percepção direitas (straight, em oposição a crooked, tortas), e a viver envergonhadamente a experiência sexual que, do ponto de vista das categorias dominantes, o define, equilibrando-se entre o medo de ser visto, desmascarado, e o desejo de ser reconhecido pelos demais homossexuais.

A particularidade desta relação de dominação simbólica é que ela não está ligada aos signos sexuais visíveis, e sim à pratica sexual. A definição dominante da forma legítima desta prática, vista como relação de dominação do princípio masculino (ativo, penetrante) sobre o principio feminino (passivo, penetrado) implica o tabu da feminilização, sacrilégio do masculino, isto é, do princípio dominante, que está inscrito na relação homossexual.

Os próprios homossexuais aplicam a si mesmos muitas vezes os princípios dominantes: tal como as lésbicas, eles não raro reproduzem, nos casais que formam, uma divisão dos papéis masculino e feminino.

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Como se revoltar contra uma categorização socialmente imposta organizando-se como uma categoria construída segundo esta categorização e fazendo assim existirem as classificações e as restrições às quais se pretende resistir - em vez de, por exemplo, lutar por uma nova ordem sexual em que a distinção entre os diferentes estatutos sexuais fosse indiferente?

--- Página 139 ---

Para mudar duradouramente as representações, o movimento tem que operar e impor uma transformação duradoura das categorias incorporadas (dos esquemas de pensamento) que, através da educação, conferem um estatuto de realidade evidente, necessária, indiscutida, natural, nos limites de sua alçada de validade, às categorias sociais que elas produzem. Ele tem que exigir do Direito (que, como a palavra mesma diz, esta parcialmente ligado ao straight...) um reconhecimento da particularidade, que implica sua anulação: tudo se passa, de fato, como se os homossexuais, que tiveram que lutar para passar da invisibilidade para a visibilidade, para deixarem de ser excluídos e invisibilizados, visassem a voltar a ser invisíveis, e de certo modo neutros e neutralizados, pela submissão à norma dominante.

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Ora, o objetivo de todo movimento de subversão simbólica é operar um trabalho de destruição e de construção simbólicas visando a impor novas categorias de percepção e de avaliação, de modo a construir um grupo, ou, mais radicalmente, a destruir o princípio mesmo de divisão segundo o qual são produzidos não só o grupo estigmatizante, como também o grupo estigmatizado.

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