OS NOVOS ESPAÇOS DA MOBILIDADE*
JACQUES LEVY
Pode-se definir a mobilidade como a relação social ligada à mudança de
Iugar, isto é, como o conjunto de modalidades pelas quais os membros de uma
sociedade tratam a possibilidade de eles próprios ou outros ocuparem
sucessivamente vários lugares. Por esta definição, excluímos duas outras opções:
aquela que reduziria a mobilidade ao mero deslocamento (COUTRAS, 1999),
eliminando assim as suas dimensões ideais e virtuais, e aquela que daria um
sentido muito geral a este termo, jogando com as metáforas (tal como a “mobilidade”
social) ou com extensões incontroladas (a comunicação, por exemplo).
A mobilidade como fato social total
Mobilidade e urbanidade
A mobilidade é considerada aqui como uma relação social de grande
riqueza.
A telecomunicação se apresenta como uma alternativa válida a
mobilidade; no entanto, tudo mostra (ASCHER, 1995) que as dinâmicas contemporâneas
do espaço proporcionam cada vez mais um Iugar para os encontros físicos
diretos, em particular nas atividades menos programáveis e mais criativas.
Quais as distâncias para a mobilidade?
Suponhamos a concorrência entre duas modalidades de transporte entre
duas cidades: o avião, com um voo de duração em principio de 1 h 15, e um trem rápido
que leva 4 h 30. Dados os respectivos tempos de acesso, o tempo total por avião
será, digamos, de 3 h 30, e por trem, 5 h 15. Contudo, essa vantagem de 1 h 45
para o avião paga-se com uma fragmentação do tempo (o próprio tempo de voo é segmentado
pelas fases de decolagem e pouso, pelas zonas de turbulência e pelos serviços
de bordo) e com importantes riscos de atraso. Por conseguinte, a concorrência
se organiza entre um tempo mais curto mas perdido e um tempo mais Iongo mas não
totalmente dedicado à própria mobilidade.
Várias redes se imbricam
A densificação das redes produz territórios, territórios muito
diferentes na medida em que se trata da articulação (caminhada + ônibus + bonde
+ metrô + trem, por exemplo) das escalas ou de sua fusão pelo automóvel.
As relações sociais de
mobilidade
A mobilidade toma-se possível porque existe uma oferta de mobilidade, a
acessibilidade. A mobilidade é efetiva por que os seus operadores possuem uma competência
de mobilidade. A mobilidade tem sentido porque, no quadro do domínio do espaço,
ela entra na composição do capital social dos indivíduos.
A mobilidade como possibilidade
: virtualidade 1
Como possibilidade, a mobilidade pode ser considerada através da
acessibilidade, isto é, da oferta de mobilidade através da oferta de
transporte.
Parece útil não pré-julgar a «forma urbana» pois, por um lado, pode-se
considerar que uma cidade permite até certo ponto a cada citadino “fabricar” a
sua cidade e que, justamente, a oferta de mobilidade constitui um instrumento
decisivo dessa margem de liberdade.
Métricas automobilísticas e métricas “pedestres” não produzem a mesma
forma de relação com a cidade e, assim, não oferecem o mesmo serviço de
mobilidade.
A variedade da escolha, entre os bens ou serviços, mas também entre os
lugares que podem apresentar um interesse qualquer para o “consumidor” de
mobilidade, revela-se então decisiva. O que importa, definitivamente, é a relação
triangular entre o desejado, o possível e o realizado, uma relação onde cada
polo exerce influência sobre os outros.
A mobilidade como competência :
virtualidade 2
A relação entre o espaço virtual das mobilidades oferecidas e o espaço
das mobilidades realizadas passa pelo que se poderia chamar «competência de
mobilidade».
Essa competência pode passar pela posse de meios materiais,
especialmente financeiros, através do acesso aos meios de deslocamento e, de
uma forma mais geral, graças à constituição de uma rede de lugares frequentados
(habitat, emprego, etc.), eles próprios situados numa boa posição no espaço das
acessibilidades.
Meu ponto de vista é que a posse de uma competência de mobilidade e um componente,
muito mais do que uma conseqãencia, de uma posiçao social hierarquicamente
inferior. Em particular, e porque são pouco móveis que as populaçoes mais despossuídas
silo despossuídas.
No debate francês sobre a "politica da cidade”, apareceu e impôs-se
o mito do "emprego no próprio local".
Surge então este paradoxo: enquanto a mobilidade deveria ser estimulada
a fim de oferecer aos referidos indivíduos as oportunidades, muitas vezes
gratuitas, que permitem o acesso ao conjunto dos lugares da cidade, este tipo
de pensamento nos encerra numa desastrosa imobilidade.
Numa situação-limite, aquela da África do Sul pós-apartheid, observamos
que, décadas depois de terem sido expulsos dos centros das cidades, à época
ainda mistos, os negros esqueceram a mistura pois ela perdeu todo o seu
significado concreto. Eles sonham, sobretudo, com uma township melhorada, com
um ghetto feliz. A questão da mobilidade como competência se revela assim
decisiva, até mesmo perigosa.
A mobilidade como capital :
virtualidade 3
Há uma infinidade de cidades numa cidade. Uma multidão de
micro-acontecimentos pode produzir-se, frente aos quais o “transeunte notável”
que é o citadino pode escolher entre ser um ”João ninguém” ou um astro.
Um mundo móvel
Propomo-nos agora "reunir" os diferentes elementos abordados
separadamente e apresentar uma visão mais sintética das questões de mobilidade.
Escala, métrica, identidade e Iugar constituem as palavras-chave desta
abordagem.
A questão das escalas
As escalas da acessibilidade
Tóquio mantem, para mais de 80% da população residente da aglomeração
(24 milhões de pessoas!), uma acessibilidade de menos de uma hora para uma vasta
zona central que reúne a maioria da população. Isto se tomou possível pela
associação entre fortes densidades e a primazia dos transportes urbanos. Em Los
Angeles, somente o automóvel pode proporcionar uma boa acessibilidade.
A primeira grande questão colocada em relação à mobilidade e, portanto,
muito simples e fundamental: a que parte do espaço considerado podemos ter
acesso?
Escala das mobilidades e governo
urbano
Se as soluções técnicas escolhidas respeitam mal a realidade do objeto
urbano, é ao mesmo tempo porque seu tratamento não é global e multidimensional,
mas pensado na escala micro dos congestionamentos.
Porque o Estado central sempre preferiu a fragmentação política das
cidades à sua auto-organização (lógica da dominação).
A questão das métricas
Métricas pedestres e métricas automobilísticas
Automóveis e "métricas pedestres" (isto é, os deslocamentos a
pé ou em transportes públicos no interior dos quais o pedestre permanece um pedestre)
fabricam distâncias, proximidades diferentes e possuem em cada caso um forte
poder de estrutura9ão do espaço urbano.
Cidades diferentes possuem em cada caso um forte poder de estruturação
do espaço urbano. O automóvel possui efeitos diversos: ele consome e destrói
espaços públicos, unifica as escalas. Por sua velocidade, ele aumenta a massa
das interações em princípio possíveis (urbanidade absoluta), mas pelas separações
e a diminuição da densidade que ele engendra, reduz a parte deste potencial
realmente utilizável (urbanidade relativa). Além disso, o automóvel e,
historicamente, o instrumento de realização do "modelo dos conjuntos
habitacionais" [modele pavillonnaire] que provoca em si mesmo a diminuição
das densidades, a separação das funções e o enfraquecimento dos espaços públicos.
O dispositivo métricas automobilísticas/
habitat individual sub ou peri-urbano/ propriedade privada da habitação
traduz uma estratégia de ''patrimonialismo objetal" (constituição de um capital
social pela posse de objetos isoláveis) e de procura por uma separação
substancial com o resto da sociedade.
Ao contrário, o complexo métricas
pedestres/ habitat coletivo no centro da cidade/ estatuto locativo
corresponde a uma "capitalização sistêmica" em que os recursos são constituídos
de redes relacionais abertas supondo um indivíduo descomunitarizado e portador
de expectativas positivas frente ao mundo social.
Aqui, a porosidade das métricas pedestres frente aos espaços
atravessados (e notadamente o caso do corpo humano e de suas relações
multi-sensoriais com o meio ambiente) retoma sua capacidade de fazer emergir,
nos próprios veículos, um micro-cosmos territorial. Ao contrário, o automóvel
oferece uma couraça muito potente para quem deseja separar o mundo de seu espaço
íntimo.
Os habitantes das zonas peri-urbanas incriminam os congestionamentos, o
barulho e a poluição nos centros das cidades como a origem de sua saída para as
margens da aglomeração, sem pensar que a escolha de uma habitat de fraca
densidade possa ser considerado como uma das causas do problema que eles
apontam.
O Atomium ou a arvore morta
Atomium: correspondendo frequentemente a zonas urbanas densas, as
esferas são territórios multidimensionais fortes (residência, trabalho,
diversos lugares de percurso de formação, de consumo e de cultura); as barras
silo os lugares-movimento;
As práticas dos centros históricos são assim profundamente diferentes
para o residente do centro da cidade e para o visitante ocasional, transformado
em usuário externo pelos constrangimentos de sua própria mobilidade.
As novas identidades móveis
Até as últimas décadas, "ser nascido em alguma parte"
significava, para um camponês, estar juridicamente subordinado à residência, e,
para um trabalhador, estar submetido à localização, às vezes fixa, às vezes mutável,
da fabrica. O que muda é que a posição geográfica instantânea de um indivíduo
compreende a partir de agora uma parte crescente de escolhas, uma margem de manobra
ampliada, graus de liberdade mais numerosos.
Para ninguém, dissemos anteriormente, esta liberdade é total. Para
quase ninguém, ela é nula.
Podemos resumir as mutações das mobilidades e seus efeitos sobre as
identidades a algumas características simples porem decisivas:
- Vivemos num mundo que se movimenta em várias velocidades.
- Os espaços aos quais nós nos sentimos pertencer não são mais somente territórios,
mas também redes.
- O número de lugares pertinentes para um dado indivíduo aumentou.
- A distinção entre mobilidade cotidiana e mobilidade rara se torna
cada vez mais difícil.
- Ao lado dos lugares os mais impositivos, uma grande quantidade de
lugares fracos povoam nossa existência.
A mobilidade exprime, cada vez com mais precisão e acuidade, a
componente espacial das identidades sociais singulares.
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