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8.6.17

WEBER, Max. “A Ciência como vocação”. In: ____ Ciência e política. Duas vocações. 16ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2000.

Quais são as perspectivas de alguém que, tendo concluído seus estudos superiores, decida dedicar-se profissionalmente à ciência, no âmbito da vida universitária?

Na Alemanha, a carreira de um homem de ciência se apoia em alicerces plutocráticos. Para um jovem cientista sem fortuna pessoal é, com efeito, extremamente arriscado enfrentar os azares da carreira universitária. Deve ele ter condições para subsistir com seus próprios recursos, ao menos durante certo número de anos, sem ter, de maneira alguma, a certeza de que um dia lhe será aberta a possibilidade de ocupar uma posição que lhe dará meios de viver decentemente. Nos Estados Unidos da América reina, em oposição ao nosso, o sistema burocrático. Desde que inicia a carreira, o jovem cientista recebe um pagamento. Trata-se de salário modesto que, frequentemente, é apenas igual ao de um trabalhador semiespecializado. Não obstante, o jovem parte de uma situação aparentemente estável, pois recebe ordenado fixo.

Adotei a diretriz seguinte: pedia ao estudante que havia elaborado sua tese sob minha orientação que se candidatasse e “habilitasse” perante outro professor, em outra universidade. Desse procedimento resultou que um de meus alunos, e dos mais capazes, não foi aceito por colegas meus, porque nenhum destes acreditou no motivo que o levava a procurá-los.

Nos últimos tempos, podemos observar claramente que, em numerosos domínios da ciência, desenvolvimentos recentes do sistema universitário alemão orientam-se de acordo com padrões do sistema norte-americano. Os grandes institutos de ciência e de medicina se transformaram em empresas de “capitalismo estatal”. Já não é possível geri-las sem dispor de recursos financeiros consideráveis. E nota-se o surgimento, como aliás em todos os lugares em que se implanta uma empresa capitalista, do fenômeno específico do capitalismo, que é o de “privar o trabalhador dos meios de produção”. O trabalhador — o assistente — não dispõe de outros recursos que não os instrumentos de trabalho que o Estado coloca a seu alcance; consequentemente, ele depende do diretor do instituto tanto quanto o empregado de uma fábrica depende de seu patrão — pois o diretor de um instituto imagina, com inteira boa-fé, que aquele é seu instituto: dirige-o a seu bel-prazer. Assim, a posição do assistente é, com frequência, nesses institutos, tão precária quanto a de qualquer outra existência “proletaroide”.

Todo jovem que acredite possuir a vocação de cientista deve dar-se conta de que a tarefa que o espera reveste duplo aspecto. Deve ele possuir não apenas as qualificações do cientista, mas também as do professor. Ora, essas duas características não são absolutamente coincidentes. É possível ser, ao mesmo tempo, eminente cientista e péssimo professor.

Quando de um Dozent se diz que é mau professor, isso equivale, na maioria das vezes, a pronunciar uma sentença de morte universitária, embora seja ele o primeiro dos cientistas do mundo. Avalia-se, portanto, o bom e o mau professor pela assiduidade com que os Senhores Estudantes se disponham a honrá-lo.

Experiência pessoal já bastante ampla e reflexão isenta de qualquer fantasia conduziram-me a desconfiar fortemente dos cursos procurados por grande massa de estudantes, embora o fato pareça inevitável. A democracia deve ser praticada onde convém. A educação científica, tal como, por tradição, deve ser ministrada nas universidades alemãs, constitui-se numa tarefa de aristocracia espiritual. É inútil querer dissimulá-lo.

Ora, é também verdade, por outro lado, que dentre todas as tarefas pedagógicas, a mais difícil é a que consiste em expor problemas científicos de maneira tal que um espírito não preparado, mas bem-dotado, possa compreendê-lo e formar uma opinião própria — o que, para nós, corresponde ao único êxito decisivo. Ninguém o contestará, mas não é, de maneira alguma, o número de ouvintes que dará a solução do problema.

Em nosso tempo, obra verdadeiramente definitiva e importante é sempre obra de especialista. Todo aquele que se julgue incapaz de se apegar à ideia de que o destino de sua alma depende de ele formular determinada conjetura e precisamente essa, a tal altura de tal manuscrito, fará melhor em permanecer alheio ao trabalho científico. Ele jamais sentirá o que se pode chamar a “experiência” viva da ciência.

Com efeito, para o homem, enquanto homem, nada tem valor a menos que ele possa fazê-lo com paixão.

Se a inspiração não substitui o trabalho, este, por seu lado, não pode substituir, nem forçar o surgimento da intuição, o que a paixão também não pode fazer. Mas o trabalho e a paixão fazem com que surja a intuição, especialmente quando ambos atuam ao mesmo tempo.

Seja como for, as ideias nos acodem quando não as esperamos e não quando, sentados à nossa mesa de trabalho, fatigamos o cérebro a procurá-las. É verdade entretanto, que elas não nos ocorreriam se, anteriormente, não houvéssemos refletido longamente em nossa mesa de estudos e não houvéssemos, com devoção apaixonada, buscado uma resposta.

Senhoras e senhores! Só aquele que se coloca pura e simplesmente ao serviço de sua causa possui, no mundo da ciência, “personalidade”.

Não conheço grande artista que haja feito outra coisa que não o colocar-se ao serviço da causa da arte e dela apenas.

Aquele que põe todo o coração em sua obra, e só nela, eleva-se à altura e à dignidade da causa que deseja servir. E para o artista o problema se coloca de maneira perfeitamente idêntica.

Qual é, em verdade, o destino ou, melhor, a significação, em sentido muito especial, de que está revestido todo trabalho científico, tal como, aliás, todos os outros elementos da civilização sujeitos à mesma lei?

É o de que toda obra científica “acabada” não tem outro sentido senão o de fazer surgirem novas “indagações”: ela pede, portanto, que seja “ultrapassada” e envelheça.

A intelectualização e a racionalização crescentes significam que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, poderíamos, bastando que o quiséssemos, provar que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira com o curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo, por meio da previsão. 

Equivale isso a despojar de magia o mundo. Para nós não mais se trata, como para o selvagem que acredita na existência daqueles poderes, de apelar a meios mágicos para dominar os espíritos ou exorcizá-los, mas de recorrer à técnica e à previsão. Tal é a significação essencial da intelectualização.

Surge daí uma pergunta nova: esse processo de desencantamento, realizado ao longo dos milênios da civilização ocidental e, em termos mais gerais, esse “progresso” do qual participa a ciência, como elemento e motor, tem significação que ultrapasse esta pura prática e esta pura técnica?

O homem civilizado não pode captar senão o provisório e nunca o definitivo. Por esse motivo, a morte é, a seus olhos, um acontecimento que não tem sentido. E porque a morte não tem sentido, a vida do civilizado também não o tem, pois a “progressividade” despojada de significação faz da vida um acontecimento igualmente sem significação.

A questão que se coloca não é mais a que se refere tão somente à vocação científica, a pergunta é inteiramente diversa: qual o significado da ciência no contexto da vida humana e qual o seu valor?

Se existem conhecimentos capazes de extirpar, até às raízes, a crença na existência de seja lá o que for que se pareça a uma “significação” do mundo, esses conhecimentos são exatamente os que se traduzem pela ciência. Como poderia a ciência nos “conduzir a Deus”? Não é ela a potência especificamente não religiosa?

Enfim, ainda que um otimismo ingênuo haja podido celebrar a ciência — isto é, a técnica do domínio da vida fundamentada na ciência — como o caminho que levará à felicidade, creio ser possível deixar inteiramente de parte esse problema, tendo em vista a crítica devastadora que Nietzsche dirigiu contra “os últimos homens” que “descobriram a felicidade”. Quem continua a acreditar nisso — excetuadas certas crianças grandes que se encontram nas cátedras de faculdades ou nas salas de redação?

Qual é, afinal, nesses termos, o sentido da ciência enquanto vocação, se estão destruídas todas as ilusões que nela divisavam o caminho que conduz ao “ser verdadeiro”, à “verdadeira arte”, à “verdadeira natureza”, ao “verdadeiro Deus”, à “verdadeira felicidade”?

A política não tem lugar no que concerne aos docentes. E, antes de tudo, quando eles tratam cientificamente de temas políticos. Mais do que nunca, a política está, então, deslocada. Com efeito, uma coisa é tomar uma posição política prática, e outra coisa é analisar cientificamente as estruturas políticas e as doutrinas de partidos.

O verdadeiro professor se impedirá de impor, do alto de sua cátedra, uma tomada de posição qualquer.

Se me fosse perguntado, neste momento, por que esta última série de questões deve ser excluída de uma sala de aula, eu responderia que o profeta e o demagogo estão deslocados em uma cátedra universitária.

Tanto ao profeta como ao demagogo cabe dizer: “Vá à rua e fale em público”, o que vale dizer que ele fale em lugar onde possa ser criticado. Numa sala de aula, enfrenta-se o auditório de maneira inteiramente diversa: o professor tem a palavra, mas os estudantes estão condenados ao silêncio.

A um professor é imperdoável valer-se de tal situação para buscar incutir, em seus discípulos, as suas próprias concepções políticas, em vez de lhes ser útil, como é de seu dever, por meio da transmissão de conhecimentos e de experiência científica.

Sempre que um homem de ciência permite que se manifestem seus próprios juízos de valor, ele perde a compreensão integral dos fatos.

A tarefa primordial de um professor capaz é a de levar seus discípulos a reconhecerem que há fatos que produzem desconforto, assim entendidos os que são desagradáveis à opinião pessoal de um indivíduo; com efeito, existem fatos extremamente desagradáveis para cada opinião, inclusive a minha. Entendo que um professor que obriga seus alunos a se habituarem a esse gênero de coisas realiza uma obra mais que puramente intelectual e não hesito em qualificá-la de “moral”.

Que homem teria a pretensão de refutar “cientificamente” a ética do Sermão da Montanha, ou, por exemplo, a máxima “não oponha resistência ao mal” ou a parábola do oferecer a outra face? É, entretanto, claro que, do ponto de vista estritamente humano, esses preceitos evangélicos fazem a apologia de uma ética que se levanta contra a dignidade. A cada um cabe decidir entre a dignidade religiosa conferida por essa ética e a dignidade de um ser viril, que prega algo muito diferente, como, por exemplo, “resiste ao mal ou serás responsável pela vitória que ele alcance”.

A religião tornou-se, em nossos tempos, “rotina cotidiana”. Os deuses antigos abandonam suas tumbas e, sob a forma de poderes impessoais, porque desencantados, esforçam-se por ganhar poder sobre nossas vidas, reiniciando suas lutas eternas. Daí os tormentos do homem moderno, tormentos que atingem de maneira particularmente penosa a nova geração: como se mostrar à altura do cotidiano? Todas as buscas de “experiência vivida” têm sua fonte nessa fraqueza, que é fraqueza não ser capaz de encarar de frente o severo destino do tempo que se vive.

O jovem norte-americano faz de seu professor uma ideia simples: é quem lhe vende conhecimentos e métodos em troca de dinheiro pago pelo pai, exatamente como o merceeiro vende repolhos à mãe. Nada além disso.

Os indivíduos que a si mesmos se julgam líderes são, frequentemente, os menos qualificados para tal função.

O professor que sente a vocação de conselheiro da juventude e que frui da confiança dos moços deve desempenhar esse papel no contato pessoal de homem para homem. Se ele se julga chamado a participar das lutas entre concepções de mundo e entre opiniões de partidos, deve fazê-lo fora da sala de aula, deve fazê-lo em lugar público

Após tais considerações, os senhores poderão dizer: se assim é, qual é, em essência, a contribuição positiva da ciência para a vida prática e pessoal?

Em primeiro lugar, a ciência coloca naturalmente à nossa disposição certo número de conhecimentos que nos permitem dominar tecnicamente a vida por meio da previsão.

Em segundo lugar, a ciência nos fornece métodos de pensamento, isto é, os instrumentos e uma disciplina.

Terceira vantagem: a ciência contribui para clareza.

O cientista pode esclarecer que determinada posição deriva de uma e não de outra concepção. Retomemos a metáfora de que há pouco nos valemos. A ciência mostrará que, adotando tal posição, certa pessoa estará a serviço de tal Deus e ofendendo tal outro e que, se se desejar manter fiel a si mesma, chegará, certamente, a determinadas consequências íntimas, últimas e significativas.

Se estivermos, portanto, enquanto cientistas, à altura da tarefa que nos incumbe (o que, evidentemente, é preciso aqui pressupor) poderemos compelir uma pessoa a dar-se conta do sentido último de seus próprios atos ou, quando menos, ajudá-la em tal sentido.

A teologia é uma racionalização intelectual da inspiração religiosa.

Em toda teologia “positiva”, o crente chega, necessariamente, num momento dado, a um ponto em que só lhe será possível recorrer à máxima de Santo Agostinho: Credo non quod, sed quia absurdum est. O poder de realizar essa proeza, que é o “sacrifício do intelecto” constitui o traço decisivo e característico do crente praticante.

O destino de nosso tempo, que se caracteriza pela racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo “desencantamento do mundo” levou os homens a banirem da vida pública os valores supremos e mais sublimes.

Hoje em dia, só nos pequenos círculos comunitários, no contato de homem a homem, em pianíssimo, se encontra algo que poderia corresponder ao pneuma profético que abrasava comunidades antigas e as mantinha solidárias.

A quem não é capaz de suportar virilmente esse destino de nossa época, só cabe dar o conselho seguinte: volta em silêncio, sem dar a teu gesto a publicidade habitual dos renegados, com simplicidade e recolhimento, aos braços abertos e cheios de misericórdia das velhas Igrejas. Elas não tornarão penoso o retorno. De uma ou de outra maneira, quem retorna será inevitavelmente compelido a fazer o “sacrifício do intelecto”. E não serei eu quem o condene, se ele tiver, verdadeiramente, força para fazê-lo. Realmente, aquele sacrifício, feito para dar-se incondicionalmente a uma religião, é moralmente superior à arte de fugir a um claro dever de probidade intelectual, que se põe quando não existe a coragem de enfrentar claramente as escolhas últimas, e se manifesta, em seu lugar, inclinação por consentir em um relativismo precário.

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