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23.2.15

COMTE-SPONVILLE, André. O amor. Pequeno tratado das grandes virtudes. Martins Fontes, 1999.

NOTAS DE
Pequeno tratado das grandes virtudes (O amor)
Andre Comte-Sponville

O amor não se comanda, pois é o amor que comanda. Isso também é válido, obviamente, em nossa vida moral ou ética. Só necessitamos de moral em falta de amor, repitamos, e é por isso que temos tanta necessidade de moral! É o amor que comanda, mas o amor faz falta.

O amor não se comanda e não poderia, em conseqüência, ser um dever. Sua presença num tratado das virtudes torna-se, por conseguinte, problemática? Talvez. Mas devemos dizer também que virtude e dever são duas coisas diferentes (o dever é uma coerção, a virtude, uma liberdade).

O dever é uma coerção (um “jugo”, diz Kant), o dever é uma tristeza, ao passo que o amor é uma espontaneidade alegre. “O que fazemos por coerção”, escreve Kant, “não fazemos por amor.” Isso se inverte: o que fazemos por amor não fazemos por coerção, nem, portanto, por dever.

Há uma maneira medíocre, egoísta, odienta às vezes de fazer amor. E há outra, ou várias outras, tantos quantos são os indivíduos e os casais, de fazê-lo bem, o que é bem-fazer, o que é virtude.

Máxima do dever: Age como se amasses.

O dever que só nos constrange a fazer aquilo que o amor, se estivesse presente, bastaria, sem coerção, para suscitar.

No fundo, é o que Kant chamava de amor prático: “O amor para com os homens é possível, para dizer a verdade, mas não pode ser comandado, pois não está ao alcance de nenhum homem amar alguém simplesmente por ordem. É, pois, simplesmente o amor prático que está incluído nesse núcleo de todas as leis.

A polidez, como vimos, é um simulacro de moral: agir polidamente é agir como se fôssemos virtuosos.

A moral, do mesmo modo, é um simulacro de amor: agir moralmente é agir como se amássemos.

É o espírito dos Evangelhos (“Ama e faz o que quiseres”), pelo que Cristo nos liberta da Lei, explica Spinoza, não a abolindo, como queria estupidamente Nietzsche, mas consumando-a.

A moral é esse simulacro de amor, pelo qual o amor, que dela nos liberta, se torna possível.

Pascal, Hume e Bergson são mais esclarecedores aqui do que Kant: a moral vem mais do sentimento do que da lógica, mais do coração do que da razão, e a própria razão só comanda (pela universalidade) ou só serve (pela prudência) tanto quanto o desejarmos. Kant é engraçado quando pretende combater o egoísmo ou a crueldade com o princípio da não-contradição! Como se aquele que não hesita em mentir, em matar, em torturar, fosse preocupar-se com que a máxima de sua ação pudesse ou não ser erigida, sem contradição, em lei universal! Que lhe importa a contradição? Que lhe importa o universal?

Aristófanes nos diz exatamente, sobre o amor, o que todos gostaríamos de acreditar (é o amor como sonhamos, o amor saciado e saciante: a paixão feliz); ao passo que Sócrates diz o amor como ele é, destinado à carência, à incompletitude, à miséria, e que por isso nos destina à infelicidade ou à religião.

Todos tinham uma força e uma bravura excepcionais, a tal ponto que tentaram escalar o céu para combater os deuses. Para puni-los, Zeus decidiu então cortá-los em dois, de cima a baixo, como se corta um ovo. Estava acabada a completitude, a unidade, a felicidade! A partir de então cada um é obrigado a buscar sua metade, como se diz, e é uma expressão que devemos tomar aqui ao pé da letra: outrora, “formávamos um todo completo (…), outrora éramos um”; mas eis-nos “separados de nós mesmos”, não parando de buscar aquele todo que éramos. Essa busca, esse desejo é o que se chama amor, e, quando satisfeito, é a condição da felicidade. De fato, somente o amor “recompõe a antiga natureza, ao se esforçar por fundir dois seres num só e curar a natureza humana”.

Primeiro, pois, o discurso de Aristófanes. É um poeta que fala. “Outrora”, ele explica, “nossa natureza não era como é hoje, era bem diferente.” De fato, nossos ancestrais eram duplos, pelo menos se os compararmos com o que somos, mas tinham uma unidade perfeita, que não temos: “Cada homem constituía um todo.

Tinham quatro orelhas, dois órgãos de geração e todo o resto em conformidade.” Essa dualidade genital, especialmente, explica por que não havia então dois e sim três gêneros na espécie humana: os machos, que tinham dois sexos de homem, as fêmeas, que tinham dois sexos de mulher, e os andróginos, que, como seu nome indica, tinham ambos os sexos.

Amor exclusivo, pois cada um, tendo por definição uma só metade, só poderia viver um único amor. Amor definitivo enfim.

O que é mais improvável, o que é mais milagroso, o que é mais contrário à nossa experiência cotidiana, do que esses dois seres que formam um só? Além do mais, eu confio mais nos corpos do que nos livros ou nos depoimentos. É preciso ser dois para fazer amor (pelo menos dois!), e é por isso que o coito, longe de abolir a solidão, a confirma.

Daí o fracasso, sempre, e a tristeza, tão freqüentemente. Eles queriam ser um só e ei-los mais dois que nunca… “Da própria fonte dos prazeres”, escreve magnificamente Lucrécio, “surge não sei que amargor, que até nas flores sufoca o amante…

Post coitum omne animal triste… Porque se vê novamente entregue a si mesmo, à sua solidão, à sua banalidade, e a esse grande vazio nele do desejo desaparecido.

Aristófanes não entendeu nada. O amor não é completitude, mas incompletitude. Não fusão, mas busca. Não perfeição plena, mas pobreza devoradora.

O amor é desejo, e o desejo é falta.

Todo amor (pelo menos esse amor, erôs) é desejo: é o desejo determinado de certo objeto, enquanto faz falta particularmente. É a primeira definição que eu anunciava. O amor, escreve Platão, “ama aquilo que lhe falta, e que não possui”.

Todo amor, para Platão, é mesmo falta.

O que é amar? É carecer do que se ama e querer possuí-lo sempre.

Quando ela está presente, ele sonha com outra coisa, que lhe falta (“comparando”, escreve Proust, “a mediocridade dos prazeres que me dava Albertine à riqueza dos desejos que ela me privava de realizar”).

Comenta Proust, que, “muitas vezes, para descobrirmos que estamos apaixonados, talvez mesmo para nos apaixonarmos, tem de chegar o dia da separação”. Lógica da paixão: lógica da falta.

Será que alguém sempre deseja uma vida diferente daquela que desfruta? É o que diria Platão, e que nos encerra na infelicidade ou na insatisfação. Se o desejo é falta, e na medida em que é falta, a vida necessariamente é frustrada: se só desejamos o que não temos, nunca temos o que desejamos e, por isso, nunca somos felizes nem nos sentimos satisfeitos.

Um homem, uma mulher, que se amam e se desejam: o que lhes faltaria, grandes deuses, quando fazem amor? O outro? Claro que não, pois ele está ali, pois ele se entrega, pois ele está inteiro oferecido e disponível!

Como estão saciados um pelo outro, aqui e agora saciados! A verdade é que não lhes falta nada; é por isso aliás que se sentem tão bem, que estão tão felizes

Há o amor que sofremos, é paixão; há o amor que fazemos ou damos, é ação. Onde já se viu a ereção ser uma falta? Onde já se viu todo amor ser um sofrimento?

O pai também ama o filho tal como é, tal como não falta, o filho atual e presente.

A amizade se distingue em muito da paixão: aqui não há falta, não há angústia, não há ciúme, não há sofrimento. Amamos os amigos que temos, como são

Precisamos de outra definição, e eis-nos em Spinoza. O amor é desejo, claro, pois o desejo é a própria essência do homem. Mas o desejo não é falta: o desejo é potência, o amor é alegria.

Se o amor é falta, dizer “eu te amo” é pedir não apenas que o outro responda “eu também”, mas é pedir o outro mesmo, já que você o ama, já que ele lhe faz falta e já que toda falta, por definição, quer possuir! Que peso para aquele ou aquela que você ama! Que angústia! Que prisão! Regozijar-se, ao contrário, é não pedir absolutamente nada: é celebrar uma presença, uma existência, uma graça! Que leveza, para você e para o outro! Que liberdade! Que felicidade! Não é pedir, é agradecer. Não é possuir, é gozar e se regozijar

Máxima da moralidade: Age como se amasses. Quando o amor existe, em compensação, as outras virtudes seguem-se espontaneamente, como se fossem naturais

As mães, em relação a seus filhos, possuem a maioria das virtudes que geralmente nos faltam (e que lhes faltam), ou antes, que o amor nelas toma o lugar das virtudes, quase sempre, e as liberta – pois essas virtudes só são moralmente necessárias, quase todas, por falta de amor.

A mãe que dá ao filho tudo o que possui não é generosa, ou não precisa sê-lo: ela ama o filho mais que a vida. A mãe que perdoa tudo ao filho, que o aceita como ele é, não obstante o que ele tenha feito, o que ele faça, não é misericordiosa: ela ama o filho mais que a justiça ou o bem.

Por que amamos nossos amigos, se não porque eles nos amam e porque nós amamos a nós mesmos? O amor a si é primeiro.

A mesma razão que nos faz amar nossos amigos (o amor que temos por nós mesmos) nos impede de amar nossos inimigos

Mas então o amor seria a mais elevada das virtudes, quanto a seus efeitos, mas também a mais pobre, a mais estreita, a mais mesquinha quanto a seu alcance, quero dizer, quanto a seus objetos possíveis.

Algumas crianças, alguns parentes, alguns amigos de verdade, um ou dois amantes, ou uma ou duas amantes… Isso dá dez ou vinte pessoas, para cada um de nós e no melhor dos casos, que somos mais ou menos capazes de amar: restam muito mais de cinco bilhões fora do campo desse amor!

Percebo que é isso que torna a moral necessária.

A criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição.

Em suma, o amor não passa de uma ocorrência entre outras do conatus ou, como também diz Spinoza, da potência, na medida em que é finita e variável. Spinoza tira, sem vacilar, as conseqüências disso. Deus, explica, “não sente nenhuma afeição de alegria ou de tristeza, conseqüentemente não tem amor nem ódio por ninguém” – não por falta de potência, claro, mas, ao contrário, porque sua potência, sendo absolutamente infinita, é constante: portanto ela não poderia ser aumentada (alegria, amor) nem diminuída (tristeza, ódio) pelo que quer que fosse.

O Deus de Spinoza é demasiado cheio de ser

Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor, para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. Esta resposta, este eco que depende de nós recusar é a única justificativa possível à loucura de amor do ato criador.

A benevolência, no entanto, está presente, a alegria está presente – mas em negativo, mas atestadas sobretudo por essa força que não se exerce, por esse recuo, por essa doçura, essa delicadeza, por essa potência que parece esvaziar-se de si mesma

“Os filhos são como a água”, fazia-me ver um amigo: “eles ocupam sempre todo o espaço disponível.” Mas Deus não: senão, só haveria Deus, e não haveria mundo. Mas os pais não: acontece, nem sempre (afinal, eles também têm de proteger seu espaço de sobrevivência!), mas às vezes acontece, e com maior freqüência do que se crê, eles se retirarem, recuarem, não ocuparem todo o espaço disponível, justamente, não exercerem todo o poder de que dispõem. Por quê? Por amor: para deixar mais lugar, mais poder, mais liberdade a seus filhos, e tanto mais quanto mais fracos são os filhos, quanto mais desprovidos, mais frágeis, para não os impedir de existir, para não os esmagar com sua presença, sua potência, seu amor…

Quem não restringe, diante dele, sua própria força? Quem não se impede a violência? Quem não limita seu poder? A fraqueza comanda, e é isso que significa a caridade.

Deve-se citar uma última vez a perturbadora fórmula de Pavese em seu diário íntimo: “Você será amado no dia em que puder mostrar sua fraqueza sem que o outro se sirva dela para afirmar sua força.” Esse amor é o mais raro, o mais precioso, o mais milagroso. Se você recua um passo, ele recua dois.

É o contrário do que Sartre chamava de “o grandão cheio de ser”, em que via uma definição plausível do canalha.

O amor é abdicação. Deus é abdicação.” O amor é fraco: “Deus é fraco”, embora onipotente, pois é amor.

Deus não nos ama em função do que somos, que justificaria esse amor, porque seríamos amáveis, bons, justos (Deus também ama os pecadores, foi inclusive por eles que deu seu filho), mas porque ele é amor e o amor, em todo caso esse amor, não necessita de justificação. “O amor de Deus é absolutamente espontâneo”, escreve Nygren. “Ele não procura no homem um motivo. Dizer que Deus ama o homem não é enunciar um julgamento sobre o homem, mas sobre Deus.” Não é o homem que é amável; é Deus que é amor.

Esse amor é absolutamente primeiro, absolutamente ativo (e não reativo), absolutamente livre: não é determinado pelo valor do que ele ama, que lhe faltaria ( erôs) ou o alegraria ( philia), mas, ao contrário, ele determina esse valor amando.

Talvez uma certa idéia de humanidade, em que todos os homens estão ligados – é o que os gregos chamavam de philanthropia, que definem como “uma propensão natural a amar os homens, uma maneira de ser que leva à beneficência e à benevolência para com eles”

Não é porque uma coisa é boa que a desejamos, explica Spinoza, é porque a desejamos que a julgamos boa.

Não é porque uma coisa é amável que a amamos; é porque a amamos que é amável. Assim, os pais amam seu filho antes de conhecê-lo, antes de ser amados por ele, e o que quer que ele seja, o que quer que se torne.

O amor é primeiro.

Não é porque as pessoas são amáveis que devemos amá-las, é na medida em que as amamos que são (para nós) amáveis.

A caridade é, pois, outra coisa: “É o amor transfigurado em virtude”

É o amor “tornado permanente e crônico, estendido à universalidade dos homens e à totalidade da pessoa”.

A caridade, na medida do possível, vem encher de um conteúdo positivo e concreto. É a aceitação alegre do outro, e de qualquer outro. Tal como ele é e quem quer que seja.

O amor seria efetivamente “essa sede que inventa as fontes”, e a própria fonte.

Haveria, pois, para resumir, para simplificar, três maneiras de amar, ou três tipos de amor, ou três gradações no amor: a carência ( erôs), o regozijo ( philia), a caridade ( agapé).

“Amar”, dizia Alain, “é encontrar sua riqueza fora de si.”

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