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11.5.16

PIRES, Lênin. Transportes públicos e representações sobre mobilidade social: possíveis percepções a partir do Rio de Janeiro e de Buenos Aires.

Introdução

Neste artigo proponho uma reflexão sobre possíveis percepções a respeito da utilização de transportes públicos e representações de cidadania.

Ao utilizarem os serviços de transportes, os sujeitos, em uma dada sociedade, aparentam relacionar as dimensões de espaço e tempo, construindo e/ou conjugando formas específicas de classificação dos espaços sociais compartilhados.

Cidade e Região Metropolitana

Meu ponto de vista é que o processo de formação dessas áreas me-tropolitanas – a cidade, por excelência – está centrado nos indivíduos “de carne e sangue” e nas suas performances de socialização.

Neste sentido, são decisivos os meios de transportes de massa. Neles é que se tornam visíveis as formas adequadas de comportamento em público

Distinções e complexidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Rute se desloca todos os dias por dezenas de quilômetros para ganhar a vida como diarista em bairros mais próximos do centro e da zona sul do Rio de Janeiro.

Rute precisa dedicar um tempo significativo de sua vida à utilização dos transportes públicos, com o objetivo de cumprir a tempo os compromissos com quem a contrata

A oferta de transportes públicos é uma forma diferenciada de informar aos habitantes da região sobre a sua pretensa inferioridade (Silva, 2013:62) em relação a outros sujeitos que vivem em áreas distintas da Região Metropolitana. Este é um mecanismo que contribui para reduzir as expectativas de ascensão e mobilidade social de determinados estratos.

Entre o deslocamento e a mobilidade

Separar o que é da ordem do deslocamento e da mobilidade.

Transporte como deslocamento cotidiano implica fluxos, ou seja, deslocamentos somente no espaço físico-geográfico, enquanto mobilidade trata dos deslocamentos também no espaço físico-social, implica interações sociais.

Patriota de Moura e Vasconcelos (2012) se propõem a recepcionar o conceito de motilidade, proposto pelos mesmos, para pensar a articulação entre mobilidade espacial e mobilidade social.

Dão destaque, especialmente, para três dimensões propostas por Flamm e Kaufmann para operacionalização do conceito: acesso, habilidade e apropriação cognitiva. A primeira diz respeito às condições materiais objetivas, ou seja, os modais de transportes e os recursos a eles associados,12 nos quais o acesso à mobilidade espacial pode ser observada. A segunda se refere às competências dos sujeitos sociais para transformarem em recursos utilizáveis as possibilidades criadas pela existência do acesso. A terceira dimen-são diz respeito à percepção dos sujeitos que, ao se deslocarem de um lugar para o outro, concebem que tais deslocamentos não são operações isentas de complexidade.

Conflitos na contemporaneidade: privatização e processos de gentrificação

Há mais de uma década, Janice Caiafa abordou as implicações da opção da privatização do espaço público vivido nas principais cidades brasileiras.

Ela o fez contrastando o sistema de transporte do Rio de Janeiro com o de Nova York.

Em Nova York, o transporte coletivo é mantido por uma instituição pública, e não privada. É, na perspectiva da autora, um serviço a ser prestado e não essencialmente uma fonte de lucro para as empresas.

As decisões políticas levaram Caiafa a estranhar o processo de privatização do espaço público no Brasil

Em virtude de transformar a cidade em uma commodity capaz de abrigar grandes eventos, a partir de 2008 se iniciou um conjunto de políticas públicas envolvendo as áreas de segurança, transportes públicos e habitação, entre outras.

Valorizações imobiliárias obtidas em certas regiões do município do Rio de Janeiro, sobretudo após a criação das chamadas UPPs foram seguidas de um acelerado processo de substituição dos habitantes de certas áreas: o chamado processo de gentrificação.

Os valores de imóveis para compra e venda, assim como de aluguéis, atingiram patamares inalcançáveis para amplos setores da classe média.

Muitas famílias tiveram que se mudar dos bairros em que viviam, privando-se da proximidade de suas redes de sociabilidade e de apoio, em busca de lugares mais adequados a seus ingressos financeiros, em geral para lugares de mais difícil acesso, particularmente para aqueles que são dependentes dos meios de transportes públicos (em especial, dos ônibus).

As políticas supracitadas parecem estar atingindo segmentos da chamada classe média. Isto talvez contribua para compreender a onda de protestos que teve início no Rio de Janeiro em junho de 2013, quando do início da chamada Copa das Confederações, da FIFA.

Transportes públicos e cidadãos: entre Rio de Janeiro e Buenos Aires

A classe média, constituída em função de arranjos sociais específicos, pode ser privilegiada ou oprimida politicamente, além de sofrer maior ou menor discriminação de caráter cultural, dependendo de outras variáveis. Owensby (apud O'Dougherty, 2009) propôs que as identidades de classe média no Brasil haviam sido forjadas historicamente em oposição à classe trabalhadora, particularmente nas distinções em face do trabalho manual, o que articula níveis educacionais diferenciados e práticas de consumo restritas.

Primeiras aproximações entre Rio e Buenos Aires

Empiricamente constato que quanto maior o tempo de deslocamento de um indivíduo entre a casa e o trabalho, mais desvalorizado tende a ser o contrato que ele pode estabelecer na venda de sua força de trabalho.

Há empresas que, ao veicularem propostas de empregos, exigem explicitamente que as pessoas morem próximas do trabalho.

Parece haver um interesse implícito: controlar o que se consome, em termos culturais e estéticos, na tentativa de se delimitarem possíveis distinções (Bourdieu, 2007). Em outras palavras, as distinções sociais de classe passam também pela territorialização de bens de consumo.

Viver “do trabalho para casa e de casa para o trabalho” não só significa não correr riscos, mas também não se socializar em outros espaços – de formação intelectual, por exemplo – o que poderia permitir mudanças no padrão de vida econômico e cultural, o que contribui para a manutenção da ordem social do “cada macaco no seu galho” (DaMatta, 1997).

Em Buenos Aires eu observei situações diferentes das descritas acima. Os trens também ligavam a capital argentina aos municípios do chamado conurbano. Em seus deslocamentos eram frequentados por diversas classes sociais. Depreende-se, por um lado, que os segmentos de classe média não só estavam presentes em todo o território da Cidade Autônoma de Buenos Aires, mas também no conurbano.21 Por outro lado, tais segmentos sociais mantinham relacionamento estreito com outros, em função da utilização diária dos meios públicos de transportes. Consequentemente, as formas de se comportar publicamente eram comuns, diferente do que observei nos trens da Central

A abordagem de tais situações etnográficas, rememoradas em função de experiências mais recentes, me leva a considerar a disposição dos serviços de transportes públicos como expressão de lógicas mais ou menos inclusivas.

As opções políticas neste sentido acabam por organizar a Cidade ao longo de um determinado período histórico, sendo capazes de in-formar as características das relações entre os diferentes segmentos, represen-tações estas que incidem sobre as possibilidades de maior ou menor mobilidade dos distintos grupos sociais.

Rio e Buenos Aires: algumas distinções importantes

Cidade de Buenos Aires: os serviços de trens ferroviários, ainda que privatizados, são a representação do poder nacional, já que a privatização é concessão federal.26 As demandas por melhores serviços, como referi, envolviam então empresários e representantes do governo nacional.

Há áreas que concentram pontos turísticos; áreas comerciais que atendem aos consumidores mais exigentes, ou mesmo, em áreas limítrofes, a estabelecimentos industriais. O mesmo se observa, por exemplo, no Rio de Janeiro. Entretanto, eu percebia na cidade portenha uma estrutura mais homogênea em seu conjunto.

No município carioca a distribuição de tais serviços, tanto públicos quanto privados, é mais desigual. Como referi, os bairros da zona sul são mais bem aquinhoados em todos os níveis: das melhores escolas públicas e postos de saúde até, sobretudo, a oferta de bens culturais e de consumo (e, claro, uma maior articulação do sistema de transporte público).

Ter acesso a tais serviços para os moradores de outras regi-ões do município ou da Região Metropolitana, em especial nos finais de semana, esbarra num precário serviço de transportes, a preços elevados. Logo, a maioria das famílias de baixa renda tem uma relação com a cidade praticamente “da casa para o trabalho, do trabalho para casa”.

Regiões metropolitanas em perspectiva

As estações de trens são responsáveis pela circulação de dezenas de milhares de pessoas.

Tal processo, na minha perspectiva, era o que levava ideias, gostos, mercadorias e sonhos a circularem pela capital, Buenos Aires.

Na minha percepção, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro não se apresenta como um todo integrado.

Como referi, no interior do próprio município carioca é considerável a desigualdade de serviços públicos e de oferta de bens culturais entre suas zonas sul, norte e oeste.

A demanda por melhoria dos transportes públicos em Buenos Aires: atores sociais e tecnologias de protesto.

A partir dos terminais ferroviários de Buenos Aires, determinados valores morais partilhados por diferentes segmentos sociais embarcavam nas plataformas e, dessa forma, eram assimilados para além da capital, particularmente através das linhas férreas.

Algumas reflexões em perspectiva comparada

Combinando minhas etnografias com as de Patriota de Moura e Vasconcelos (2012), e partilhando das ideias das autoras sobre trajetos e trajetórias, e também das de Magnani (2007) e Caiafa (2002), concebo nos transportes públicos a possibilidade de contato com a diferença, com a alteridade, com o não igual.

A cidade, assim, resulta das diferenças que se encontram, se desafiam, se mesclam, impedindo que a cidade se desdobre sobre si mesma, repetindo ciclos.

A mobilidade, assim, se constitui na possibilidade de um sujeito social ultrapassar os obstáculos físicos, morais e estéticos para a realização de seus interesses

O início da cidade não está num eventual pórtico fixado pela autoridade municipal, nem na divisa consensuada com a cidade vizinha. O início está em cada interesse, que pode ter por base uma casa, um banco de praça, a proteção de uma ponte, um grupo familiar, uma manifestação on-line. Este início (ou princípio) é o marco a partir do qual se constrói o deslocamento. A meta é o retorno, ou seja, a construção do circuito.

Ir e vir é, assim, um direito em virtude do qual estabelecemos contatos e, concomitantemente, contratos.

Não ter o direito de ir e vir assegurado, em decorrência de planificações pretensamente malfeitas, ou planejadamente mal-intencionadas, é uma intromissão nos contratos que podem ser feitos em prol de estratégias e metodologias de mobilidade.

É no transporte efetivo das pessoas e de suas coisas que os citadinos podem ter acesso a seu fim, qual seja, a destruição do plano, da arquitetura predita, em favor dos circuitos imprevisíveis e aleatórios.


É através da imprevisibilidade das trajetórias dos sujeitos que se pode, por fim, precarizar a intolerância, fazer com que ela deixe de ser o padrão que informa a discriminação e oblitera a cidadania em sua acepção contemporânea.

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