Introdução
Neste artigo proponho uma reflexão sobre possíveis
percepções a respeito da utilização de transportes públicos e representações de
cidadania.
Ao utilizarem os serviços de transportes, os
sujeitos, em uma dada sociedade, aparentam relacionar as dimensões de espaço e
tempo, construindo e/ou conjugando formas específicas de classificação dos
espaços sociais compartilhados.
Cidade e
Região Metropolitana
Meu ponto de vista é que o processo de formação
dessas áreas me-tropolitanas – a cidade, por excelência – está centrado nos
indivíduos “de carne e sangue” e nas suas performances de socialização.
Neste sentido, são decisivos os meios de
transportes de massa. Neles é que se tornam visíveis as formas adequadas de
comportamento em público
Distinções e
complexidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro
Rute se desloca todos os dias por dezenas de
quilômetros para ganhar a vida como diarista em bairros mais próximos do centro
e da zona sul do Rio de Janeiro.
Rute precisa dedicar um tempo significativo de sua
vida à utilização dos transportes públicos, com o objetivo de cumprir a tempo
os compromissos com quem a contrata
A oferta de transportes públicos é uma forma diferenciada
de informar aos habitantes da região sobre a sua pretensa inferioridade (Silva,
2013:62) em relação a outros sujeitos que vivem em áreas distintas da Região
Metropolitana. Este é um mecanismo que contribui para reduzir as expectativas
de ascensão e mobilidade social de determinados estratos.
Entre o
deslocamento e a mobilidade
Separar o que é da ordem do deslocamento e da
mobilidade.
Transporte como deslocamento cotidiano implica
fluxos, ou seja, deslocamentos somente no espaço físico-geográfico, enquanto
mobilidade trata dos deslocamentos também no espaço físico-social, implica
interações sociais.
Patriota de Moura e Vasconcelos (2012) se propõem a
recepcionar o conceito de motilidade, proposto pelos mesmos, para pensar a
articulação entre mobilidade espacial e mobilidade social.
Dão destaque, especialmente, para três dimensões
propostas por Flamm e Kaufmann para operacionalização do conceito: acesso,
habilidade e apropriação cognitiva. A primeira diz respeito às condições
materiais objetivas, ou seja, os modais de transportes e os recursos a eles
associados,12 nos quais o acesso à mobilidade espacial pode ser observada. A
segunda se refere às competências dos sujeitos sociais para transformarem em
recursos utilizáveis as possibilidades criadas pela existência do acesso. A
terceira dimen-são diz respeito à percepção dos sujeitos que, ao se deslocarem
de um lugar para o outro, concebem que tais deslocamentos não são operações
isentas de complexidade.
Conflitos na
contemporaneidade: privatização e processos de gentrificação
Há mais de uma década, Janice Caiafa abordou as
implicações da opção da privatização do espaço público vivido nas principais
cidades brasileiras.
Ela o fez contrastando o sistema de transporte do
Rio de Janeiro com o de Nova York.
Em Nova York, o transporte coletivo é mantido por
uma instituição pública, e não privada. É, na perspectiva da autora, um serviço
a ser prestado e não essencialmente uma fonte de lucro para as empresas.
As decisões políticas levaram Caiafa a estranhar o
processo de privatização do espaço público no Brasil
Em virtude de transformar a cidade em uma commodity
capaz de abrigar grandes eventos, a partir de 2008 se iniciou um conjunto de políticas
públicas envolvendo as áreas de segurança, transportes públicos e habitação,
entre outras.
Valorizações imobiliárias obtidas em certas regiões
do município do Rio de Janeiro, sobretudo após a criação das chamadas UPPs foram
seguidas de um acelerado processo de substituição dos habitantes de certas áreas:
o chamado processo de gentrificação.
Os valores de imóveis para compra e venda, assim
como de aluguéis, atingiram patamares inalcançáveis para amplos setores da
classe média.
Muitas famílias tiveram que se mudar dos bairros em
que viviam, privando-se da proximidade de suas redes de sociabilidade e de
apoio, em busca de lugares mais adequados a seus ingressos financeiros, em
geral para lugares de mais difícil acesso, particularmente para aqueles que são
dependentes dos meios de transportes públicos (em especial, dos ônibus).
As políticas supracitadas parecem estar atingindo
segmentos da chamada classe média. Isto talvez contribua para compreender a
onda de protestos que teve início no Rio de Janeiro em junho de 2013, quando do
início da chamada Copa das Confederações, da FIFA.
Transportes
públicos e cidadãos: entre Rio de Janeiro e Buenos Aires
A classe média, constituída em função de arranjos
sociais específicos, pode ser privilegiada ou oprimida politicamente, além de
sofrer maior ou menor discriminação de caráter cultural, dependendo de outras
variáveis. Owensby (apud O'Dougherty, 2009) propôs que as identidades de classe
média no Brasil haviam sido forjadas historicamente em oposição à classe
trabalhadora, particularmente nas distinções em face do trabalho manual, o que
articula níveis educacionais diferenciados e práticas de consumo restritas.
Primeiras
aproximações entre Rio e Buenos Aires
Empiricamente constato que quanto maior o tempo de
deslocamento de um indivíduo entre a casa e o trabalho, mais desvalorizado
tende a ser o contrato que ele pode estabelecer na venda de sua força de
trabalho.
Há empresas que, ao veicularem propostas de
empregos, exigem explicitamente que as pessoas morem próximas do trabalho.
Parece haver um interesse implícito: controlar o
que se consome, em termos culturais e estéticos, na tentativa de se delimitarem
possíveis distinções (Bourdieu, 2007). Em outras palavras, as distinções
sociais de classe passam também pela territorialização de bens de consumo.
Viver “do trabalho para casa e de casa para o
trabalho” não só significa não correr riscos, mas também não se socializar em
outros espaços – de formação intelectual, por exemplo – o que poderia permitir
mudanças no padrão de vida econômico e cultural, o que contribui para a
manutenção da ordem social do “cada macaco no seu galho” (DaMatta, 1997).
Em Buenos Aires eu observei situações diferentes
das descritas acima. Os trens também ligavam a capital argentina aos municípios
do chamado conurbano. Em seus deslocamentos eram frequentados por diversas
classes sociais. Depreende-se, por um lado, que os segmentos de classe média
não só estavam presentes em todo o território da Cidade Autônoma de Buenos
Aires, mas também no conurbano.21 Por outro lado, tais segmentos sociais
mantinham relacionamento estreito com outros, em função da utilização diária
dos meios públicos de transportes. Consequentemente, as formas de se comportar publicamente
eram comuns, diferente do que observei nos trens da Central
A abordagem de tais situações etnográficas,
rememoradas em função de experiências mais recentes, me leva a considerar a
disposição dos serviços de transportes públicos como expressão de lógicas mais
ou menos inclusivas.
As opções políticas neste sentido acabam por
organizar a Cidade ao longo de um determinado período histórico, sendo capazes
de in-formar as características das relações entre os diferentes segmentos,
represen-tações estas que incidem sobre as possibilidades de maior ou menor
mobilidade dos distintos grupos sociais.
Rio e Buenos
Aires: algumas distinções importantes
Cidade de Buenos Aires: os serviços de trens
ferroviários, ainda que privatizados, são a representação do poder nacional, já
que a privatização é concessão federal.26 As demandas por melhores serviços,
como referi, envolviam então empresários e representantes do governo nacional.
Há áreas que concentram pontos turísticos; áreas
comerciais que atendem aos consumidores mais exigentes, ou mesmo, em áreas
limítrofes, a estabelecimentos industriais. O mesmo se observa, por exemplo, no
Rio de Janeiro. Entretanto, eu percebia na cidade portenha uma estrutura mais
homogênea em seu conjunto.
No município carioca a distribuição de tais
serviços, tanto públicos quanto privados, é mais desigual. Como referi, os
bairros da zona sul são mais bem aquinhoados em todos os níveis: das melhores
escolas públicas e postos de saúde até, sobretudo, a oferta de bens culturais e
de consumo (e, claro, uma maior articulação do sistema de transporte público).
Ter acesso a tais serviços para os moradores de
outras regi-ões do município ou da Região Metropolitana, em especial nos finais
de semana, esbarra num precário serviço de transportes, a preços elevados.
Logo, a maioria das famílias de baixa renda tem uma relação com a cidade
praticamente “da casa para o trabalho, do trabalho para casa”.
Regiões
metropolitanas em perspectiva
As estações de trens são responsáveis pela
circulação de dezenas de milhares de pessoas.
Tal processo, na minha perspectiva, era o que
levava ideias, gostos, mercadorias e sonhos a circularem pela capital, Buenos
Aires.
Na minha percepção, a Região Metropolitana do Rio
de Janeiro não se apresenta como um todo integrado.
Como referi, no interior do próprio município
carioca é considerável a desigualdade de serviços públicos e de oferta de bens
culturais entre suas zonas sul, norte e oeste.
A demanda por melhoria dos transportes públicos em
Buenos Aires: atores sociais e tecnologias de protesto.
A partir dos terminais ferroviários de Buenos Aires,
determinados valores morais partilhados por diferentes segmentos sociais
embarcavam nas plataformas e, dessa forma, eram assimilados para além da
capital, particularmente através das linhas férreas.
Algumas
reflexões em perspectiva comparada
Combinando minhas etnografias com as de Patriota de
Moura e Vasconcelos (2012), e partilhando das ideias das autoras sobre trajetos
e trajetórias, e também das de Magnani (2007) e Caiafa (2002), concebo nos
transportes públicos a possibilidade de contato com a diferença, com a
alteridade, com o não igual.
A cidade, assim, resulta das diferenças que se
encontram, se desafiam, se mesclam, impedindo que a cidade se desdobre sobre si
mesma, repetindo ciclos.
A mobilidade, assim, se constitui na possibilidade
de um sujeito social ultrapassar os obstáculos físicos, morais e estéticos para
a realização de seus interesses
O início da cidade não está num eventual pórtico
fixado pela autoridade municipal, nem na divisa consensuada com a cidade vizinha.
O início está em cada interesse, que pode ter por base uma casa, um banco de
praça, a proteção de uma ponte, um grupo familiar, uma manifestação on-line.
Este início (ou princípio) é o marco a partir do qual se constrói o deslocamento.
A meta é o retorno, ou seja, a construção do circuito.
Ir e vir é, assim, um direito em virtude do qual
estabelecemos contatos e, concomitantemente, contratos.
Não ter o direito de ir e vir assegurado, em
decorrência de planificações pretensamente malfeitas, ou planejadamente
mal-intencionadas, é uma intromissão nos contratos que podem ser feitos em prol
de estratégias e metodologias de mobilidade.
É no transporte efetivo das pessoas e de suas
coisas que os citadinos podem ter acesso a seu fim, qual seja, a destruição do
plano, da arquitetura predita, em favor dos circuitos imprevisíveis e
aleatórios.
É através da imprevisibilidade das trajetórias dos
sujeitos que se pode, por fim, precarizar a intolerância, fazer com que ela
deixe de ser o padrão que informa a discriminação e oblitera a cidadania em sua
acepção contemporânea.
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