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19.9.16

DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

PREFACIO À SEGUNDA EDIÇÃO

Algumas observações sobre os agrupamentos profissionais

Há uma ideia que ficou na penumbra na primeira edição e que parece-nos útil ressaltar e determinar melhor, pois ela esclarecerá algumas partes do presente trabalho e mesmo dos que publicamos depois2. Trata-se do papel que os agrupamentos profissionais estão destinados a desempenhar na organização social dos povos contemporâneos.

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Se procurássemos estabelecer numa linguagem um pouco definida as ideias em curso sobre o que devem ser as relações entre o empregador e o empregado, entre o operário e o empresário, entre os industriais que concorrem um com o outro ou com o público, que fórmulas indecisas obteríamos! Algumas generalidades imprecisas sobre a fidelidade e a devoção que os assalariados de toda sorte devem aos que os empregam, sobre a moderação com a qual estes últimos devem usar de sua preponderância econômica, uma certa reprovação de toda concorrência por demais abertamente desleal, de toda exploração demasiado gritante do consumidor, é quase tudo o que contém a consciência moral dessas profissões.

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Os atos mais censuráveis são com tanta frequência absolvidos pelo sucesso, que o limite entre o que é permitido e o que é proibido, o que é justo e o que não é, não tem mais nada de fixo, parecendo poder ser modificado quase arbitrariamente pelos indivíduos.

Se o vencido pode se resignar por um tempo a uma subordinação que é obrigado a suportar, ele não a aceita e, por conseguinte, ela se mostra incapaz de constituir um equilíbrio estáveis.

As paixões humanas só se detêm diante de uma força moral que elas respeitam.

Se qualquer autoridade desse gênero inexiste, é a lei do mais forte que reina e, latente ou agudo, o estado de guerra é necessariamente crônico.

Tal anarquia vai contra o próprio objetivo de toda sociedade, que é suprimir ou, pelo menos, moderar a guerra entre os homens.

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A liberdade (entendemos a liberdade justa, aquela que a sociedade tem o dever de fazer respeitar) é, ela própria, produto de uma regulamentação. Só posso ser livre na medida em que outrem é impedido de tirar proveito da superioridade física, econômica ou outra de que dispõe para subjugar minha liberdade, e apenas a regra social pode erguer um obstáculo a esses abusos de poder.

Mas o que proporciona, particularmente nos dias de hoje, excepcional gravidade a esse estado é o desenvolvimento, até então desconhecido, que as funções econômicas adquiriram nos últimos dois séculos, aproximadamente.

Uma forma de atividade que tomou tal lugar na vida social não pode, evidentemente, permanecer tão desregulamentada, sem que disso resultem as mais profundas perturbações.

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Há uma multidão de indivíduos cuja vida transcorre quase toda no meio industrial e comercial; a decorrência disso é que, como tal meio é pouco marcado pela moralidade, a maior parte da sua existência transcorre fora de toda e qualquer ação moral.

Se não formos convidados a cada instante a exercer sobre nós essa coerção sem a qual não há moral, como nos acostumaríamos a ela?

Se, nas ocupações que preenchem quase todo nosso tempo, não seguirmos outra regra que a do nosso interesse próprio, como tomaríamos gosto pelo desinteresse, pela renúncia de si, pelo sacrifício?

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Uma regra não é apenas uma maneira habitual de agir; é, antes de mais nada, uma maneira de agir obrigatória.

A única personalidade moral que está acima das personalidades particulares é a formada pela coletividade.

Além disso, apenas ela tem a continuidade e, mesmo, a perenidade necessárias para manter a regra além das relações efêmeras que a encarnam cotidianamente.

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Não só os sindicatos de patrões e os sindicatos de empregados são distintos uns dos outros, o que é legítimo e necessário, como não há entre eles contatos regulares. Não existe organização comum que os aproxime sem fazê-los perder sua individualidade e na qual possam elaborar em comum uma regulamentação que, estabelecendo suas relações mútuas, imponha-se a ambas as partes com a mesma autoridade; por conseguinte, é sempre a lei do mais forte que resolve os conflitos.

Patrões e operários estão, uns em relação aos outros, na mesma situação de dois Estados autônomos, mas de força desigual. Eles podem, como fazem os povos por intermédio de seus governos, firmar entre si contratos, mas esses contratos exprimem apenas o respectivo estado das forças econômicas em presença.

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O que vemos antes de mais nada no grupo profissional é um poder moral capaz de conter os egoísmos individuais, de manter no coração dos trabalhadores um sentimento mais vivo de sua solidariedade comum, de impedir que a lei do mais forte se aplique de maneira tão brutal nas relações industriais e comerciais.

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A subordinação da utilidade privada à utilidade comum, qualquer que seja esta, tem sempre um caráter moral, pois implica necessariamente algum espírito de sacrifício e de abnegação.

Não há instituição que, num dado momento, não degenere, seja por não saber mudar a tempo e se paralisar, seja por se desenvolver num sentido unilateral, exacerbando algumas de suas propriedades, o que a torna inábil a prestar os próprios serviços que lhe cabem. Este pode ser um motivo para procurar reformá-la, não para declará-la para sempre inútil e destruí-la.

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Ora, esse apego a algo que supera o indivíduo, essa subordinação dos interesses particulares ao interesse geral, é a própria fonte de toda atividade moral.

Basta que esse sentimento se precise e se determine, que, aplicando-se às circunstâncias mais ordinárias e mais importantes da vida, se traduza em fórmulas definidas, para que se tenha um corpo de regras morais em via de se constituir.

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O indivíduo sofre com os conflitos e as desordens que se produzem todas as vezes que as relações interindividuais não estão submetidas a nenhuma influência reguladora.

A vida em comum é atraente, ao mesmo tempo em que coercitiva. Sem dúvida, a coerção é necessária para levar o homem a se superar, a acrescentar à sua natureza física outra natureza; quando alguns indivíduos que possuem interesses em comum se associam, não é apenas para defender esses interesses, é para se associar, para não se sentir mais perdido no meio dos adversários, para ter o prazer de comungar, de formar com vários um só todo, isto é, enfim, para levar juntos uma mesma vida moral.

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A família não deve suas virtudes à unidade de descendência: ela é, simplesmente, um grupo de indivíduos que foram aproximados uns dos outros, no seio da sociedade política, por uma comunidade mais particularmente estreita de ideias, sentimentos e interesses.

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Do mesmo modo que a família foi o ambiente no seio do qual se elaboraram a moral e o direito domésticos, a corporação é o meio natural no seio do qual devem se elaborar a moral e o direito profissionais.

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Para conseguir fazer respeitar seus interesses e desempenhar um papel na vida pública, os artesãos tiveram de recorrer a procedimentos irregulares e extralegais. Só triunfaram sobre o desprezo de que eram objeto por meio de intrigas, complôs, agitação clandestina26. É a melhor prova de que, por si, a sociedade romana não lhes era aberta.

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Em algumas cidades, o modo de eleição era complicado, mas, em todas, a organização política e municipal era intimamente ligada à organização do trabalho."

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Já que o mercado, de municipal que era, tomou-se nacional e internacional, a corporação deve adquirir a mesma extensão. Em vez de ser limitada apenas aos artesãos de uma cidade, ela deve ampliar-se, de maneira a compreender todos os membros da profissão, dispersos em toda a extensão do território33; porque, qualquer que seja a região em que se encontram, quer morem na cidade, quer no campo, todos são solidários uns com os outros e participam de uma vida comum.

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De vários horizontes, vem o pedido de que os colégios eleitorais sejam formados por profissões, e não por circunscrições territoriais, sendo certo que, dessa maneira, as assembleias políticas exprimiriam mais exatamente a diversidade dos interesses sociais e suas relações; elas seriam um resumo mais fiel da vida social em seu conjunto.

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Uma sociedade composta de uma poeira infinita de indivíduos desorganizados, que um Estado hipertrofiado se esforça por encerrar e reter, constitui uma verdadeira monstruosidade sociológica. Porque a atividade coletiva é sempre demasiado complexa para poder ser expressa unicamente pelo órgão do Estado; além disso, o Estado está demasiado distante dos indivíduos.

Uma nação só se pode manter se, entre o Estado e os particulares, se intercalar toda uma série de grupos secundários bastante próximos dos indivíduos para atraí-los fortemente em sua esfera de ação e arrastá-los, assim, na torrente geral da vida social.

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"Enquanto houver ricos e pobres de nascimento, não poderá haver contrato justo", nem uma justa repartição das condições sociais.

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PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO

Os fatos morais são fenômenos como os outros; eles consistem em regras de ação que se reconhecem por certas características distintivas; logo, deve ser possível observá-los, descrevê-los, classificá-los e procurar as leis que os explicam.

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A moral se forma, se transforma e se mantém por uma série de razões de ordem experimental; são apenas essas as razões que a ciência da moral procura determinar.

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É necessário desfazer-se dessas maneiras de ver e de julgar, que um longo hábito fixou em nós; é necessário submeter-se rigorosamente à disciplina da dúvida metódica.

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Devemos encarregar-nos de não admitir nenhuma explicação que não se baseie em provas autênticas. Julgaremos os procedimentos que empregamos para dar a nossas demonstrações o máximo rigor possível.

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Quanto à questão que originou este trabalho, é a das relações entre a personalidade individual e a solidariedade social. Como é que, ao mesmo passo que se torna mais autônomo, o indivíduo depende mais intimamente da sociedade? Como pode ser, ao mesmo tempo, mais pessoal e mais solidário? Pois é inconteste que esses dois movimentos, por mais contraditórios que pareçam, seguem-se paralelamente. É este o problema que nos colocamos.

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INTRODUÇÃO
O PROBLEMA

Não há mais ilusão quanto às tendências de nossa indústria moderna; ela vai cada vez mais no sentido dos mecanismos poderosos, dos grandes agrupamentos de forças e capitais e, por conseguinte, da extrema divisão do trabalho.

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Será nosso dever procurar tornar-nos um ser acabado e completo, um todo autossuficiente, ou, ao contrário, não ser mais que a parte de um todo, o órgão de um organismo? Numa palavra, a divisão do trabalho, ao mesmo tempo em que lei da natureza, também é uma regra moral de conduta humana?

Passou o tempo em que o homem perfeito parecia-nos ser aquele que, sabendo interessar-se por tudo sem se dedicar exclusivamente a nada, capaz de provar tudo e tudo compreender, tinha meios de reunir e condensar nele o que havia de mais requintado na civilização.

O homem de bem de outrora já não é, para nós, senão um diletante, e recusamos ao diletantismo todo e qualquer valor moral; vemos, antes, a perfeição no homem competente que procura, não ser completo, mas produzir, que tem uma tarefa delimitada e que a ela se dedica, que faz seu serviço, traça seu caminho.

A medida de nossa perfeição não se encontra mais em nossa complacência para conosco mesmos, nos aplausos da multidão ou no sorriso aprovador de um diletantismo precioso, mas na soma dos serviços prestados e em nossa capacidade de prestarmos outros mais."

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Cada vez mais, julgamos necessário não submeter todas as nossas crianças a uma cultura uniforme, como se devessem levar todas a mesma vida, mas formá-las de maneira diferente, tendo em vista as diferentes funções que serão chamadas a preencher.

Tocqueville não é menos severo: "À medida que o princípio da divisão do trabalho recebe uma aplicação mais completa, a arte progride, o artesão retrocede."

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Nosso trabalho se dividirá, pois, em três partes principais: - procuraremos, primeiro, saber qual a função da divisão do trabalho, isto é, a que necessidade social ela corresponde; - determinaremos, em seguida, as causas e as condições de que depende;

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Enfim, procuraremos classificar as principais formas anormais que ela apresenta, a fim de evitar que sejam confundidas com as outras. Este estudo oferecerá, além disso, o interesse de que, aqui como em biologia, o patológico nos ajudará a compreender melhor o fisiológico.

LIVRO I
A FUNÇÃO DA DIVISÃO DO TRABALHO

CAPÍTULO I
MÉTODO PARA DETERMINAR ESSA FUNÇÃO

Perguntar-se qual é a função da divisão do trabalho é, portanto, procurar a que necessidade ela corresponde.

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É nos grandes centros industriais que os crimes e os suicídios são mais numerosos;

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Se tantas controvérsias se produziram acerca do caráter moral da civilização é porque, com demasiada frequência, os moralistas não têm critério objetivo para distinguir os fatos morais dos fatos que não o são.

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Veremos, de fato, que, por si, a civilização não tem valor intrínseco e absoluto; o que lhe dá seu preço é o fato de corresponder a certas necessidades. Ora, essa proposição será demonstrada adiante4, tais necessidades são, elas mesmas, consequências da divisão do trabalho. É por esta ser inseparável a um acréscimo de fadiga, que o homem é obrigado a procurar, como acréscimo de reparações, esses bens da civilização que, de outro modo, não teriam interesse para ele.

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Todo o mundo sabe que gostamos de quem conosco se parece, de quem pensa e sente como nós. Mas o fenômeno contrário não é menos frequentemente encontrado. É muito frequente nos sentirmos atraídos por pessoas que não se parecem conosco, precisamente por não se parecerem conosco.

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Assim, o teórico de espírito racional e sutil tem com frequência uma simpatia toda especial pelos homens práticos, de senso direto, intuições rápidas; o tímido, pelas pessoas decididas e resolutas, o fraco pelo forte, e vice-versa.

Por mais ricamente dotados que sejamos, sempre nos falta alguma coisa, e os melhores dentre nós têm o sentimento de sua insuficiência. É por isso que procuramos, em nossos amigos, as qualidades que nos faltam.

Formam-se, assim, pequenas associações de amigos em que cada um tem seu papel conforme a seu caráter, em que há um verdadeiro intercâmbio de serviços. Um protege, o outro consola; este aconselha, aquele executa, e é essa partilha de funções, ou, para empregarmos a expressão consagrada, essa divisão do trabalho que determina essas relações de amizade.

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Ossadas pré-históricas atestam que a diferença entre a força do homem e a da mulher era, relativamente, muito menor do que hoje.

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"O volume do crânio do homem e da mulher, mesmo quando comparamos sujeitos da mesma idade, mesma estatura e mesmo peso, apresenta diferenças consideráveis a favor do homem, e essa desigualdade também vai crescendo com a civilização, de sorte que, do ponto de vista da massa do cérebro e, por conseguinte, da inteligência, a mulher tende a se diferenciar cada vez mais do homem. A diferença existente, por exemplo, entre a média dos crânios dos parisienses contemporâneos e das parisienses é quase o dobro da observada entre os crânios masculinos e femininos do Egito antigo."

Essas semelhanças anatômicas são acompanhadas por semelhanças funcionais. Com efeito, nessas mesmas sociedades as funções femininas não se distinguem nitidamente das funções masculinas; ambos os sexos levam mais ou menos a mesma existência.

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O estado do casamento nas sociedades em que os dois sexos são pouco diferenciados atesta, pois, que a própria solidariedade conjugal é muito frágil nelas.

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Hoje, entre os povos cultos, a mulher leva uma existência totalmente diferente da do homem.

Não só a estatura, o peso, as formas gerais são muito dessemelhantes entre o homem e a mulher, mas o Dr. Lebon demonstrou, como vimos, que, com o progresso da civilização, o cérebro dos dois sexos se diferencia cada vez mais.

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Em todos esses exemplos, o mais notável efeito da divisão do trabalho não é aumentar o rendimento das funções divididas, mas tomá-las solidárias. Seu papel, em todos esses casos, não é simplesmente embelezar ou melhorar sociedades existentes, mas tomar possíveis sociedades que, sem elas, não existiriam.

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Somos levados, assim, a nos perguntar se a divisão do trabalho não desempenharia o mesmo papel em grupos mais extensos, se, nas sociedades contemporâneas, em que teve o desenvolvimento que sabemos, ela não teria a função de integrar o corpo social, assegurar sua unidade.

É legítimo supor que a divisão do trabalho é a fonte, se não única, pelo menos principal da solidariedade social.

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De fato, onde existe a solidariedade social, apesar de seu caráter imaterial, ela não permanece no estado de pura potencialidade, mas manifesta sua presença através de efeitos sensíveis. Onde é forte, inclina fortemente· os homens uns para os outros, coloca-os frequentemente em contato, multiplica as ocasiões que têm de se relacionar.

Quanto mais os membros de uma sociedade são solidários, mais mantêm relações diversas seja uns com os outros, seja com o grupo tomado coletivamente, pois, se seus encontros fossem raros, só dependeriam uns dos outros de maneira intermitente e fraca.

Por outro lado, o número dessas relações é necessariamente proporcional ao das regras jurídicas que as determinam.

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Só podemos conhecer cientificamente as causas pelos efeitos que elas produzem; e, para melhor determinar sua natureza, a ciência apenas escolhe entre esses resultados os que são mais objetivos e que melhor se prestam à medida. Ela estuda o calor através das variações de volume que as mudanças de temperatura produzem nos corpos, a eletricidade através de seus efeitos físico-químicos, a força através do movimento. Por que a solidariedade social seria uma exceção?

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O estudo da solidariedade pertence, pois, ao domínio da sociologia. É um fato social que só pode ser bem conhecido por intermédio de seus efeitos sociais.

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Uma vez que o direito reproduz as formas principais da solidariedade social, só nos resta classificar as diferentes espécies de direito para descobrirmos, em seguida, quais são as diferentes espécies de solidariedade social que correspondem a elas.

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CAPÍTULO II
SOLIDARIEDADE MECÂNICA OU POR SIMILITUDES

O vínculo de solidariedade social a que corresponde o direito repressivo é aquele cuja ruptura constitui o crime. Chamamos por esse nome todo ato que, num grau qualquer, determina contra seu autor essa reação característica a que chamamos ·pena. Procurar qual é esse vínculo é, portanto, perguntar-se qual a causa da pena, ou, mais claramente, em que consiste essencialmente o crime.

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Embora o ato criminoso seja certamente prejudicial à sociedade, nem por isso o grau de nocividade que ele apresenta é regularmente proporcional à intensidade da repressão que recebe. No direito penal dos povos mais civilizados, o assassinato é universalmente considerado o maior dos crimes. No entanto, uma crise econômica, uma jogada na Bolsa, até mesmo uma falência podem desorganizar o corpo social de maneira muito mais grave do que um homicídio isolado.

O que é um homem a menos na sociedade? O que é uma célula a menos no organismo?

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Não seria possível fazer uma lista dos sentimentos cuja violação constitui o ato criminoso; eles só se distinguem dos outros por es-. ta característica: a de que são comuns à grande média dos indivíduos da mesma sociedade. Por isso, as regras que proíbem esses atos e que o direito penal sanciona são as únicas a que o famoso axioma jurídico ninguém pode ignorar a lei se aplica sem ficção.

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Quando um direito consuetudinário passa ao estado de direito escrito e se codifica, é porque questões litigiosas reclamam uma solução mais definida; se o costume continuasse a funcionar silenciosamente, sem provocar discussão nem dificuldades, não haveria motivo para ele se transformar.

Inversamente, se as regras cuja violação é punida pela pena não precisam receber uma expressão jurídica, é porque não são objeto de nenhuma contestação, é porq1Je todo o mundo sente a sua autoridade3.

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Agora estamos em condição de concluir. O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida própria; podemos chamá-lo de consciência coletiva ou comum.

Ela é, pois, bem diferente das consciências particulares, conquanto só seja realizada nos indivíduos. Ela é o tipo psíquico da sociedade.

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Portanto, resumindo a análise que precede, podemos dizer que um ato é criminoso quando ofende os estados fortes e definidos da consciência coletiva.

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Não se deve dizer que um ato ofenda a consciência comum por ser criminoso, mas que é criminoso porque ofende a consciência comum. Não o reprovamos por ser um crime, mas é um crime porque o reprovamos.

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Onde quer que um poder diretor se estabeleça, sua primeira e principal função é fazer respeitar as crenças, as tradições, as práticas coletivas, isto é, defender a consciência comum contra todos os inimigos de dentro como de fora. Toma-se, assim, um símbolo, a expressão viva aos olhos de todos.

É o tipo coletivo encarnado. Portanto, ele participa da autoridade que este último exerce sobre as consciências, e é daí que vem sua força.

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O crime não é apenas a lesão de interesses, inclusive consideráveis, é uma ofensa a uma autoridade de certa forma transcendente. Ora, experimentalmente, não há f orça moral superior ao indivíduo, salvo a f orça coletiva.

Em primeiro lugar, a pena consiste numa reação passional. Essa característica é tanto mais aparente quanto menos cultas são as sociedades. De f ato, os povos primitivos punem por punir, fazem o culpado sofrer unicamente para fazê-lo sofrer e sem esperar, para si, nenhuma vantagem do sofrimento que lhe impõem.

Mas hoje, dizem, a natureza da pena mudou; não é mais para se vingar que a sociedade pune, é para se defender. A dor que ela inflige não é mais, em suas mãos, senão um instrumento metódico de proteção.

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O instinto da vingança nada mais é, em suma, do que o instinto de conservação exasperado pelo perigo.

É uma arma defensiva que tem seu preço; mas é uma arma grosseira.

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Diz-se que não fazemos o culpado sofrer por sofrer; não é menos verdade, porém, que achamos justo que sofra.

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A pena permaneceu, para nós, o que era para nossos pais: ainda é um ato de vingança, já que é uma expiação. O que vingamos, o que o criminoso expia, é o ultraje à moral.

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A natureza da pena não mudou essencialmente. Tudo o que se pode dizer é que a necessidade de vingança está mais bem dirigida hoje do que ontem.

O espírito de previdência que se despertou não deixa mais o campo tão livre à ação cega da paixão; ele a contém em certos limites, opõe-se às violências absurdas, aos estragos sem razão de ser.

Podemos dizer, portanto, que a pena consiste numa reação passional de intensidade graduada.

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Se hoje ·a sociedade se acha armada do direito de punir, só pode ser, ao que parece, em virtude de uma espécie de delegação dos indivíduos. Ela não é mais que a mandatária destes. São os interesses deles que ela gere em seu lugar, provavelmente porque os gere melhor

No início, os próprios indivíduos se vingavam; agora, é ela que os vinga.

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Ora, a religião é coisa essencialmente social. Longe de perseguir fins individuais, ela exerce sobre o indivíduo uma coerção permanente. Ela o obriga a práticas que o incomodam, a sacrifícios, pequenos ou grandes, que lhe custam.

Portanto, se o direito criminal é, primitivamente, um direito religioso, podemos estar certos de que os interesses a que serve são sociais. São as ofensas a eles próprios que os deuses vingam com a pena, não as dos particulares; ora, as ofensas contra os deuses são ofensas contra a sociedade.

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A pena consiste, pois, essencialmente, numa reação passional, de intensidade graduada, que a sociedade exerce por intermédio de um corpo constituído contra aqueles de seus membros que violaram certas regras de conduta.

Todo estado forte da consciência é uma fonte de vida, é um f ator essencial de nossa vitalidade geral. Por conseguinte, tudo o que tende a enfraquecê-lo nos diminui e nos deprime; resulta daí uma impressão de confusão e de mal-estar análoga à que sentimos quando uma função importante é suspensa ou retardada. É inevitável, pois, que reajamos energicamente contra a causa que nos ameaça com tal diminuição, que nos esforcemos por afastá-la, a fim de mantermos a integridade de nossa consciência.

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Eis por que uma convicção oposta à nossa não pode se manifestar em nossa presença sem nos perturbar: é que, ao mesmo tempo, ela penetra em nós e, encontrando-se em antagonismo com tudo o que em nós encontra , determina verdadeiras desordens.

Quando se trata de uma crença que nos é cara, não permitimos e não podemos permitir que seja impunemente ofendida.

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Do mesmo modo que estados de consciência contrários se enfraquecem reciprocamente, estados de consciência idênticos, intercambiando-se, fortalecem-se uns aos outros. Enquanto os primeiros se subtraem, os segundos se adicionam. Se alguém exprime diante de nós uma ideia que já era nossa, a representação que fazemos dela vem se somar à nossa própria ideia, superpor-se a ela, confundir-se com ela, comunica-lhe o que ela própria tem de vitalidade; dessa fusão sai uma nova ideia, que absorve as precedentes e, em consequência, é mais viva do que cada uma delas considerada isoladamente. Eis por que, nas assembleias numerosas, uma emoção pode adquirir tamanha violência: é que a vivacidade com a qual ela se produz em cada consciência ressoa em todas as demais.

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Quanto ao caráter social dessa reação, ele deriva da natureza social dos sentimentos ofendidos. Dado que estes se encontram em todas as consciências, a infração cometida provoca, em todos os que a testemunham ou que sabem da sua existência, uma mesma indignação.

A reação não só é geral, como é coletiva, o que não é a mesma coisa; ela não se produz isoladamente em cada um, mas com um conjunto e uma unidade.

Como a contradição é um perigo que os exaspera, ela amplifica sua força de atração.

Nunca o crente se sente tão fortemente ligado a seus correligionários como nas épocas de perseguição.

Basta ver o que se produz, sobretudo numa pequena cidade, quando algum escândalo moral acaba de ser cometido. As pessoas se param na rua, se visitam, encontram-se nos lugares combinados para falar do acontecimento e se indignam em comum.

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Portanto, se, quando o crime se produz, as consciências que ele ofende não se unissem para se atestar que permanecem em comunhão, que esse caso particular é uma anomalia, elas não poderiam deixar de ser abaladas a longo prazo. Mas é preciso que elas se reconfortem, garantindo-se mutuamente que estão sempre em uníssono; o único meio para isso é reagirem em comum.

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Vê-se, assim, que espécie de solidariedade o direito penal simboliza. Todo o mundo sabe, de fato, que existe uma coesão social cuja causa está numa certa conformidade de todas as consciências particulares a um tipo comum que não é outro senão o tipo psíquico da sociedade. Com efeito, nessas condições, não só todos os membros do grupo são individualmente atraídos uns pelos outros, por se assemelharem, mas também são apegados ao que é a condição de existência desse tipo coletivo, isto é, a sociedade que formam por sua reunião.

Daí resulta uma solidariedade que, nascida das semelhanças, vincula diretamente o indivíduo à sociedade;

De fato, como são os mesmos em toda parte, esses móbiles coletivos produzem em toda parte os mesmos efeitos.

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A força que é chocada pelo crime e que o reprime é, portanto, a mesma; ela é um produto das similitudes sociais mais essenciais e tem por efeito manter a coesão social que resulta dessas similitudes.

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A pena não serve para corrigir o culpado ou intimidar seus possíveis imitadores;

Sua verdadeira função é manter intacta a coesão social, mantendo toda a vitalidade da consciência comum.

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Para se ter uma ideia exata da pena, é preciso reconciliar as duas teorias contrárias que foram oferecidas para ela: a que vê nela uma expiação e a que faz dela uma arma de defesa social.

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Resulta deste capítulo que existe uma solidariedade social proveniente do fato de que certo número de estados de consciência são comuns a todos os membros da mesma sociedade. É ela que o direito repressivo figura materialmente, pelo menos no que ela tem de essencial.

O papel que ela representa na integração geral da sociedade depende, evidentemente, da maior ou menor extensão da vida social que a consciência comum abraça e regulamenta. Quanto mais houver relações diversas em que esta última faz sentir sua ação, mais ela cria vínculos que ligam o indivíduo ao grupo; e mais, por conseguinte, a coesão social deriva completamente dessa causa e traz a sua marca.

O número dessas relações é ele mesmo proporcional ao das regras repressivas; determinando que fração do aparelho jurídico representa o direito penal, mediremos, portanto, ao mesmo tempo, a importância relativa dessa solidariedade.

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CAPÍTULO III
A SOLIDARIEDADE DEVIDA À DIVISÃO DO TRABALHO OU ORGÂNICA

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As regras relativas aos direitos reais e às relações pessoais que se estabelecem em sua ocasião formam um sistema definido que tem por função, não ligar as diferentes partes da sociedade umas às outras, mas, ao contrário, põr umas fora das outras, assinalar nitidamente as barreiras que as separam.

Portanto, elas não correspondem a um vínculo social positivo; a própria expressão de solidariedade negativa de que nos servimos não é perfeitamente exata. Não é uma solidariedade verdadeira, com uma existência própria e uma natureza especial, mas antes o lado negativo de toda espécie de solidariedade. A primeira condição para que um todo seja coerente é que as partes que o compõem não se choquem em movimentos discordantes. Mas esse acordo externo não faz a sua coesão; ao contrário, a supõe. A solidariedade negativa só é possível onde existe uma outra, de natureza positiva, de que é, ao mesmo tempo, a resultante e a condição.

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De fato, para que o homem reconhecesse direitos a outrem, não apenas em lógica, mas na prática da vida, foi necessário que ele consentisse limitar os seus e, por conseguinte, essa limitação mútua só pôde ser feita num espírito de entendimento e concórdia.

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Na realidade, para que os homens se reconheçam e se garantam mutuamente direitos, é preciso em primeiro lugar que se amem, que, por alguma razão, se apeguem uns aos outros e a uma mesma sociedade de que fazem parte.

a solidariedade negativa nada mais é que uma emanação de outra solidariedade de natureza positiva: é a repercussão na esfera dos direitos reais de sentimentos sociais que vêm de outra fonte.

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Ela se encontra necessariamente onde quer que os homens vivam uma vida comum, resulte esta da divisão do trabalho social ou da atração do semelhante pelo semelhante.

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O contrato é, por excelência, a expressão jurídica da cooperação.

O compromisso de uma parte resulta ou do compromisso assumido pela outra, ou de um serviço já prestado por esta última9. Ora, essa reciprocidade só é possível onde há cooperação, e esta, por sua vez, não existe sem a divisão do trabalho.

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Em resumo, as relações que o direito cooperativo com sanções restitutivas regula e a solidariedade que elas exprimem resultam da divisão do trabalho social.

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Enquanto as funções têm certa generalidade, todo o mundo pode ter algum sentimento a seu respeito; no entanto, quanto mais se especializam, mais também se circunscreve o número dos que têm consciência de cada uma delas; e mais, por conseguinte, elas vão além da consciência comum.

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Em definitivo, esse direito tem na sociedade um papel análogo ao do sistema nervoso no organismo. De fato, este tem por tarefa regular as diferentes funções do corpo, de maneira a fazê-las concorrer harmonicamente; ele exprime, assim, naturalmente, o estado de concentração a que chegou o organismo, em consequência da divisão do trabalho fisiológico.

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Reconheceremos apenas duas espécies de solidariedades positivas, que as seguintes características distinguem: 1º A primeira liga diretamente o indivíduo à sociedade, sem nenhum intermediário. Na segunda, ele depende da sociedade, porque depende das partes que a compõem.

No primeiro, o que chamamos por esse nome é um conjunto mais ou menos organizado de crenças e de sentimentos comuns a todos os membros do grupo: é o tipo coletivo.

Ao contrário, a sociedade de que somos solidários no segundo caso é um sistema de funções diferentes e especiais unidas por relações definidas. Aliás, essas duas sociedades são uma só coisa. São duas faces de uma única e mesma realidade, mas que, ainda assim, pedem para ser distinguidas.

A primeira só pode ser forte na medida em que as ideias e as tendências comuns a todos os membros da sociedade superem em número e intensidade as que pertencem pessoalmente a cada um deles.

Ora, o que faz nossa personalidade é o que cada um de nós tem de próprio e de característico, o que nos distingue dos outros. Portanto, essa solidariedade só pode crescer na razão inversa da personalidade.

Há em cada uma de nossas consciências, como dissemos, duas consciências: uma, que é comum a nós e ao nosso grupo inteiro e que, por conseguinte, não é nós mesmos, mas a sociedade que vive e age em nós; a outra, que, ao contrário, só nos representa no que temos de pessoal e distinto, no que faz de nós um indivíduo14.

A solidariedade que deriva das semelhanças se encontra em seu apogeu quando a consciência coletiva recobre exatamente nossa consciência total e coincide em todos os pontos com ela. Mas, nesse momento, nossa individualidade é nula. Ela só pode nascer se a comunidade ocupar menos lugar em nós.

Se o ideal é ter uma fisionomia própria e pessoal, esse ideal não poderia ser parecer-se com todo o mundo. Ademais, no momento em que essa solidariedade exerce sua ação, nossa personalidade se esvai, podemos dizer, por definição, pois não somos mais nós mesmos, e sim o ser coletivo.

É por isso que propomos chamar de mecânica essa espécie de solidariedade. Essa palavra não significa que ela seja produzida por meios mecânicos e de modo artificial. Só a denominamos assim por analogia com a coesão que une entre si os elementos dos corpos brutos

A consciência individual, considerada sob esse aspecto, é uma simples dependência do tipo coletivo e segue todos os seus movimentos, como o objeto possuído segue aqueles que seu proprietário lhe imprime. Nas sociedades em que essa solidariedade é muito desenvolvida, o indivíduo não se pertence, como veremos adiante; ele é, literalmente, uma coisa de que a sociedade dispõe.

Bem diverso é o caso da solidariedade produzida pela divisão do trabalho. Enquanto a precedente implica que os indivíduos se assemelham, esta supõe que eles diferem uns dos outros. A primeira só é possível na medida em que a personalidade individual é absorvida na personalidade coletiva; a segunda só é possível se cada um tiver uma esfera de ação própria, por conseguinte, uma personalidade.

Cada um depende tanto mais estreitamente da sociedade quanto mais dividido for o trabalho nela.

A individualidade do todo aumenta ao mesmo tempo em que a das partes; a sociedade torna-se mais capaz de se mover em conjunto, ao mesmo tempo em que cada um de seus elementos tem mais movimentos próprios.

De fato, cada órgão aí tem sua fisionomia especial, sua autonomia, e contudo a unidade do organismo é tanto maior quanto mais acentuada essa individuação das partes. Devido a essa analogia, propomos chamar de orgânica a solidariedade devida à divisão do trabalho.

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CAPÍTULO VII
SOLIDARIEDADE ORGÂNICA E SOLIDARIEDADE CONTRATUAL

IV

As seguintes proposições resumem esta primeira parte de nosso trabalho.

A vida social deriva de uma dupla fonte: a similitude das consciências e a divisão do trabalho social. O indivíduo é socializado no primeiro caso, porque, não tendo individualidade própria, confunde-se, como seus semelhantes, no seio de um mesmo tipo coletivo; no segundo, porque, tendo uma fisionomia e uma atividade pessoais que o distinguem dos outros, depende deles na mesma medida em que se distingue e, por conseguinte, da sociedade que resulta de sua união.

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Os homens não podem viver juntos sem se entenderem e, por conseguinte, sem fazerem sacrifícios mútuos, sem se ligarem uns aos outros de maneira forte e duradoura. Toda sociedade é uma sociedade moral. Sob certos aspectos, esse caráter é até mais pronunciado nas sociedades organizadas. Como o indivíduo não se basta, é da sociedade que ele recebe tudo o que lhe é necessário, como é para ela que ele trabalha. Forma-se, assim, um sentimento fortíssimo do estado de dependência em que se encontra: ele se acostuma a estimar-se por seu justo valor, isto é, a só se ver como parte de um todo, o órgão de um organismo. Tais sentimentos são capazes de inspirar não apenas esses sacrifícios cotidianos que garantem o desenvolvimento regular da vida social cotidiana, mas também, eventualmente, atos de renúncia completa e de abnegação exclusiva. Por seu lado, a sociedade aprende a ver os membros que a compõem não mais como coisas sobre as quais tem direitos, mas como cooperadores que ela não pode dispensar e para com os quais tem deveres.

LIVRO II
AS CAUSAS E AS CONDIÇÕES

CAPÍTULO V
CONSEQÜÊNCIAS DO QUE PRECEDE

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Não se deve, com Spencer, apresentar a vida social como uma simples resultante das naturezas individuais, pois, ao contrário, são antes estas que resultam daquela. Os fatos sociais não são o simples desenvolvimento dos fatos psíquicos: os segundos, sim, é que, em grande parte, não são mais que o prolongamento dos primeiros no interior das consciências. Essa proposição é importantíssima pois o ponto de vista contrário expõe a cada instante o sociólogo a tomar a causa pelo efeito e vice-versa. Por exemplo, se, como aconteceu com frequência, se vir na organização da família a expressão logicamente necessária de sentimentos humanos inerentes a toda consciência, inverte-se a ordem real dos fatos; muito ao contrário, foi a organização social das relações de parentesco que determinou os sentimentos respectivos dos pais e dos filhos. Estes teriam sido bem diferentes se a estrutura social tivesse sido diferente, e a prova disso é que, de fato, o amor paterno é desconhecido numa multidão de sociedades.

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A maior parte de nossos estados de consciência não se teria produzido em seres isolados e se teria produzido de maneira totalmente diferente em seres agrupados de outra maneira. Eles derivam, pois, não da natureza psicológica do homem em geral, mas da maneira como os homens, uma vez associados, se afetam mutuamente, conforme sejam mais ou menos numerosos, mais ou menos próximos.

LIVRO III
AS FORMAS ANORMAIS

CAPÍTULO I
A DIVISÃO DO TRABALHO ANÔMICA

Conquanto, normalmente, a divisão do trabalho produza a solidariedade social, algumas vezes, porém, ela apresenta resultados totalmente diferentes, até mesmo opostos.

Por sinal, o estudo das formas desviadas permitir-nos-á determinar melhor as condições de existência do estado normal.

A patologia, neste como em outros casos, é um precioso auxiliar da fisiologia.

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O indivíduo, debruçado em sua tarefa, isola-se em sua atividade especial; ele já não sente os colaboradores que trabalham a seu lado na mesma obra, já não tem sequer a noção dessa obra comum.

Se, de fato, por um lado, a separação das funções sociais possibilita ao espírito de detalhe um feliz desenvolvimento, impossível de qualquer outra maneira, ela tende espontaneamente, por outro lado, a sufocar o espírito de conjunto ou, pelo menos, a entraválo profundamente.

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A diversidade das funções é útil e necessária; mas, como a unidade, que não é menos indispensável, não resulta espontaneamente dela, o cuidado com realizá-la e mantê-la deverá constituir, no organismo social, uma função especial, representada por um órgão independente. Esse órgão é o Estado, ou o governo. "A destinação social do governo", diz Comte, "parece-me sobretudo consistir em conter suficientemente e em prevenir na medida do possível essa fatal disposição à dispersão fundamental das ideias, dos sentimentos e dos interesses, resultado inevitável do próprio princípio do desenvolvimento humano, e, se ela pudesse prosseguir sem obstáculos seu curso natural, acabaria inevitavelmente por deter a progressão social sob todos os aspectos importantes”.

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A diversidade funcional acarreta uma diversidade moral que nada seria capaz de prevenir, sendo inevitável que uma cresça ao mesmo tempo em que a outra.

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O contrato nada mais é que uma trégua, e bastante precária; ele apenas suspende por algum tempo as hostilidades. Sem dúvida, por mais precisa que uma regulamentação seja, sempre deixará um espaço livre para muitos atritos. Mas não é necessário, nem mesmo possível, que a vida social seja sem lutas. O papel da solidariedade não é suprimir a concorrência, mas sim moderá-la.

A regra não cria, pois, o estado de dependência mútua em que se acham os órgãos solidários, mas apenas o exprime de uma maneira sensível e definida, em função de uma situação dada.

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O que é certo é que essa falta de regulamentação não permite a harmonia regular das funções.

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Se a divisão do trabalho não produz a solidariedade, é porque as relações entre os órgãos não são regulamentadas, é porque elas estão num estado de anomia.

O estado de anomia é impossível onde quer que os órgãos solidários se encontrem em contato suficiente e suficientemente prolongado.

De fato, sendo contíguos, eles são facilmente advertidos, em cada circunstância, da necessidade que têm uns dos outros e, por conseguinte, possuem um sentimento vivíssimo e contínuo de sua dependência mútua.

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À medida que o mercado se amplia, a grande indústria aparece. Ora, ela tem como efeito transformar as relações entre patrões e operários. Uma maior fadiga do sistema nervoso somada à influência contagiosa das grandes aglomerações aumenta as necessidades destes últimos. O trabalho à máquina substitui o do homem; o trabalho na manufatura, o da pequena oficina. O operário é arregimentado, tirado da sua família o dia inteiro, vive cada vez mais separado daquele que o emprega, etc. Essa novas condições da vida industrial requerem, naturalmente, uma nova organização; mas como essas transformações se consumaram com uma extrema rapidez, os interesses em conflito ainda não tiveram tempo de se equilibrar26.

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O que precede priva de todo e qualquer fundamento uma das mais graves criticas que se fez à divisão do trabalho. Ela foi acusada, com frequência, de diminuir o indivíduo, reduzindo-o ao papel de máquina. E, de fato, se não sabe a que tendem essas operações que reclamam dele, se não as vincula a nenhum objetivo, só pqde realizá-las por rotina. Todos os dias, ele repete os mesmos movimentos com uma regularidade monótona, mas sem se interessar por eles, nem compreendê-los. Não é mais a célula viva de um organismo vivo, que vibra sem cessar em contato com as células próximas, que age sobre elas e responde, por sua vez, à sua ação, se dilata, se contrai, se dobra e se transforma segundo as necessidades e as circunstâncias; não é mais que uma engrenagem inerte, que uma f orça externa aciona e que sempre se move no mesmo sentido e da mesma maneira.

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Se a moral tem por objetivo o aperfeiçoamento individual, ela não pode permitir que se arruíne a esse ponto o indivíduo e, se tem por fim a sociedade, não pode deixar secar a própria fonte da vida social; porque o mal não ameaça apenas as funções econômicas, mas todas as funções sociais, por mais elevadas  que sejam.

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A divisão do trabalho supõe que o trabalhador, longe de permanecer debruçado sobre sua tarefa, não perca de vista seus colaboradores, aja sobre eles e sofra sua ação. Ele não é, pois, uma máquina que repete movimentos cuja direção não percebe, mas sabe que tendem a algum lugar, a uma finalidade que ele concebe mais ou menos distintamente. Ele sente servir a algo. Para tanto, não é necessário que abarque vastas proporções do horizonte social, mas basta que perceba o suficiente dele para compreender que suas ações têm uma finalidade fora de si mesmas. Assim, por mais especial, por mais uniforme que possa ser sua atividade, ela será a atividade de um ser inteligente, pois terá um sentido, e ele o sabe.

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CAPÍTULO II
A DIVISÃO DO TRABALHO FORÇADA

No entanto, não basta haver regras, pois, algumas vezes, essas próprias regras são a causa do mal. É o que acontece nas guerras de classes. A instituição das classes ou das castas constitui uma organização da divisão do trabalho, e uma organização estritamente regulamentada; no entanto, ela é, com frequência, uma fonte de dissensões. Não estando satisfeitas, ou não mais o estando, com o papel que o costume ou a lei lhes atribui, as classes inferiores aspiram às funções que lhes são vedadas e delas procuram despojar os que as exercem. Daí as guerras intestinas que se devem à maneira como o trabalho é distribuído.

Não se observa nada semelhante no organismo. Sem dúvida, nos momentos de crise, os diferentes tecidos guerreiam-se e alimentam-se uns à custa dos outros. Mas nunca uma célula ou um órgão procura usurpar um outro papel que não aquele que lhe cabe.

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Cada elemento anatômico visa mecanicamente seu objetivo. Sua constituição, sua posição no organismo determina sua vocação; sua tarefa é uma consequência da sua natureza.

Para que a divisão do trabalho produza a solidariedade, não basta, pois, que cada um tenha a sua tarefa, é necessário, além disso, que essa tarefa lhe convenha.

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Se nada tolhe ou favorece indevidamente os concorrentes que disputam as tarefas entre si, é inevitável que só as consigam os mais aptos a cada gênero de atividade. A única causa que determina, então, a maneira como o trabalho se divide é a diversidade das capacidades.

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Podemos dizer, portanto, que a divisão do trabalho só produz a solidariedade se for espontânea e na medida em que for espontânea.

A espontaneidade supõe não apenas que os indivíduos não sejam relegados à força a funções determinadas, mas também que nenhum obstáculo, de qualquer natureza, os impeça de ocupar, no âmbito social, a posição proporcional a suas faculdades.

Numa palavra, o trabalho só se divide espontaneamente se a sociedade for constituída de maneira que as desigualdades sociais exprimam exatamente as desigualdades naturais.

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Depois de desaparecer juridicamente, o regime das castas sobrevive a si mesmo nos costumes, graças à persistência de certos preconceitos, certo favor se prende a uns, certo desfavor a outros, independentemente de seus méritos. Enfim, mesmo que, por assim dizer, não reste mais nenhum resquício de todos esses vestígios do passado, a transmissão hereditária da riqueza basta para tomar bastante desiguais as condições exteriores em que a luta é travada; pois ela constitui, em benefício de alguns, vantagens que não correspondem necessariamente a seu valor pessoal.

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Mesmo esta última desigualdade, que vem do fato de haver ricos e pobres de nascimento, sem desaparecer completamente, é pelo menos um pouco atenuada. A sociedade esforça-se por reduzi-la na medida do possível, assistindo por diversos meios os que se encontram numa situação demasiado desvantajosa e ajudando-os a dela sair. Ela atesta, assim, que se sente obrigada a abrir espaço para todos os méritos e que reconhece como injusta uma inferioridade que não é pessoalmente merecida.

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Eis por que, nas sociedades organizadas, é indispensável que a divisão do trabalho se aproxime cada vez mais desse ideal de espontaneidade que acabamos de definir. Se elas se esforçam, e devem se esforçar, para eliminar na medida do possível as desigualdades exteriores, não é apenas porque essa empresa é bela, mas porque sua existência está comprometida no problema. Pois elas só se podem manter se todas as partes que as formam são solidárias, e a solidariedade só é possível com essa condição.

CAPÍTULO III
OUTRA FORMA ANORMAL
CONCLUSÃO

Uma última consideração vai mostrar a que ponto a divisão do trabalho está ligada a toda a nossa vida moral. É um sonho desde há muito afagado pelos homens o de conseguir, enfim, realizar nos fatos o ideal da fraternidade humana. Os povos anseiam por um estado em que a guerra não seria mais a lei das relações internacionais, em que as relações das sociedades entre si seriam regidas pacificamente.

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Ora, elas só podem ser satisfeitas se todos os·homens formarem uma mesma sociedade, submetida às mesmas leis.

A única força capaz de servir de moderadora para o egoísmo individual é a do grupo; a única que pode servir de moderadora para o egoísmo dos grupos é a de outro grupo que os englobe.

Já vimos que tende a se formar, acima dos povos europeus, por um movimento espontâneo, uma sociedade europeia que tem, desde já, algum sentimento de si e um começo de organização.

Se a formação de uma sociedade humana única é para sempre impossível - o que, todavia, não está demonstrado _6, pelo menos a formação de sociedades cada vez mais vastas nos aproxima indefinidamente desse objetivo.

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A divisão do trabalho dá origem a regras que asseguram o concurso pacífico e regular das funções divididas.

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O remédio para o mal não está em procurar ressuscitar, apesar dos pesares, tradições e práticas que, não mais correspondendo às presentes condições do · estado social, só poderiam ter uma vida artificial e aparente. O que é necessário é fazer cessar essa anomia, é encontrar os meios para fazer esses órgãos que ainda se chocam em movimentos discordantes concorrerem harmoniosamente, é introduzir em suas relações mais justiça, atenuando cada vez mais essas desigualdades externas que são a fonte do mal.

Em suma, nosso primeiro dever atualmente é criar uma moral. Tal obra não poderia ser improvisada no silêncio de um gabinete; ela só se pode erguer por si mesma, pouco a pouco, sob a pressão das causas internas que a tornam necessária. Mas a reflexão pode e deve servir para assinalar o objetivo que se deve alcançar. Foi o que procuramos fazer.

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