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5.11.16

BECKER, Howard. Problemas de Inferência e Prova na Observação Participante. In Métodos de pesquisa em Ciências Sociais. Cap. 2 São Paulo: Hucitec, 1994.

Problemas de Inferência e Prova na Observação Participante*


O observador participante coleta dados através de sua participação na vida cotidiana do grupo ou organização que estuda. Minha discussão se refere ao tipo de estudo de observação participante que busca tanto descobrir hipóteses quanto testa-las.

A seguir, tento descortinar e descrever as operações analíticas básicas realizadas na observação participante, por três razões: tornar estas operações mais claras para aqueles que não estão familiarizados com o método; ao tentar uma descrição mais explícita e sistemática, ajudar aqueles que trabalham como método a organizar suas próprias pesquisas; e, o que é mais importante, propor algumas mudanças nos procedimentos analíticos e, particularmente, no relato dos resultados, mudanças as quais tornarão mais acessíveis ao leitor os processos através dos quais as conclusões são alcançadas e fundamentadas.

Os três estágios da análise de campo são: a seleção e definição de problemas, conceitos e índices; o controle sobre a frequência e a distribuição de fenômenos; e a incorporação de descobertas individuais num modelo da organização em estudo. O quarto estágio de análise final envolve problemas de apresentação de evidências e provas.

SELEÇÃO E DEFINIÇÃO DE PROBLEMAS, CONCEITOS E ÍNDICES


Neste estágio, o observador procura por problemas e conceitos que ofereçam a perspectiva de produzir a maior compreensão da organização que ele esta estudando, e por itens que possam servir como indicadores úteis de fatos que sejam mais difíceis de observar. A conclusão típica que seus dados produzem é, simplesmente, a de que um certo fenômeno existe. A conclusão nada diz sabre a frequência ou distribuição do fenômeno observado.

A seleção de indicadores para variáveis mais abstratas ocorrem de duas maneiras: o observador pode, inicialmente, adquirir consciência de algum fenômeno muito específico e, depois, perceber que ele pode ser utilizado como indicador de alguma classe mais ampla de fenômenos; ou ele pode ter em mente o problema mais amplo, e buscar indicadores específicos para utilizar em seu estudo.

Operações posteriores nos estágios seguintes podem forçá-lo a abandonar a maioria de suas hipóteses provisórias.

Necessitaremos, finalmente, de uma definição sistemática de leis para ser aplicada aos itens individuais de evidência.

A credibilidade de informantes


Teria o informante razões para mentir ou esconder uma parte do que considera como sendo a verdade? Vaidade ou conveniência o levariam a distorcer informações sobre seu próprio papel num acontecimento ou em relação a ele? Teve ele realmente a oportunidade de testemunhar a ocorrência que descreve, ou é a boataria a origem de seu conhecimento? Seus sentimentos sobre as questões ou pessoas em discussão o levam a alterar sua história de alguma maneira?

Ao aceitar a proposição sociológica de que as declarações e descrições que um indivíduo faz sobre um acontecimento são produzidas a partir de uma perspectiva a qual é função de sua posição no grupo, o observador pode interpretar tais declarações e descrições como indicações da perspectiva do indivíduo sobre o ponto em questão.

Declarações dirigidas ou espontâneas


Um calouro de Medicina pode comentar com o observador ou com outro estudante que tem mais material para estudar do que tempo disponível para fazê-lo; ou o observador pode perguntar, "Você acha que te deram mais trabalho do que você pode aguentar?", e receber uma resposta afirmativa.

Isto levanta uma importante questão: até que ponto a declaração do informante seria a mesma na ausência do observador, seja ela feita espontaneamente ou em resposta a uma pergunta?

A própria questão do observador pode levar o informante a dar uma resposta que poderia nunca lhe ocorrer de outra maneira.

Ficamos mais seguros de que os estudantes estão preocupados com o montante de trabalho que lhes foi conferido quando eles o mencionam por iniciativa própria, e menos quando sentimos que a ideia pode ter sido estimulada pela pergunta do observador.

A equação grupo-informante-observador


Por um lado, um informante pode, enquanto está sozinho com o observador, dizer ou fazer coisas que reflitam com exatidão sua perspectiva, mas que seriam inibidas pela presença do grupo. Por outro lado, a presença de outros pode estimular comportamentos que revelam mais exatamente a perspectiva da pessoa, mas que não seriam verificados exclusivamente na presença do observador.

Devemos levar em consideração o papel do observador no grupo, pois a maneira como os sujeitos de seu estudo definem este papel afeta o que dirão para ele e o que o deixarão ver.

Se o observador realiza sua pesquisa incógnito, participando como um membro plenamente integrado ao grupo, ele privará de conhecimentos que normalmente são compartilhados por estes membros e que devem ser escondidos de alguém de fora do grupo.

CONTROLE DA FREQUÊNCIA E DA DISTRIBUIÇÃO DE FENÔMENOS


O observador, de posse de muitos problemas, conceitos e indicadores provisórios, deseja agora saber quais deles vale a pena perseguir como focos principais de seu estudo.

Observações participantes têm sido ocasionalmente coletadas numa forma padronizada capaz de ser transformada em dados estatísticos legítimos. Porém, as exigências do campo geralmente impedem a coleta de dados num formato que se adeque às premissas dos testes estatísticos, de tal modo que o observador lide com o que tem sido chamado de ''quase-estatística".

O potencial de gerar conclusões que advêm da convergência de muitos tipos de evidência reflete o fato de que variedades separadas de evidência podem ser reconceituadas como deduções feitas a partir de uma proposição básica, que, agora, foram verificadas no campo.

CONSTRUÇÃO DE MODELOS DE SISTEMAS SOCIAlS


O estágio final de análise no campo consiste na incorporação de descobertas individuais ao modelo generalizado do sistema ou da organização social em estudo ou de alguma parte desta organização. O conceito de sistema social é um instrumento intelectual básico para a sociologia moderna.

A conclusão típica deste estágio da pesquisa é uma afirmação sobre um conjunto de complicadas inter-relações entre muitas variáveis.

Os que trabalham com a observação geralmente encaram as técnicas estatísticas correntemente disponíveis como inadequadas para expressar suas concepções, e acham necessário utilizar palavras.

Quando, pela primeira vez, escutamos os estudantes de Medicina aplicarem o termo "pitiático" aos pacientes, fizemos um esforço para entender precisamente o que queriam dizer com isso. Descobrimos, através de entrevistas com estudantes sobre exemplos aos quais tanto eles próprios quanto o observador haviam presenciado, que o termo se referia de maneira pejorativa a pacientes com muitos sintomas subjetivos, mas com patologias físicas não discerníveis. Observações subsequentes indicaram que este uso da palavra era uma característica sistemática do comportamento dos estudantes, e, portanto, que deveríamos incorporar este fato a nosso modelo do comportamento estudante/paciente. O caráter pejorativo do termo sugeria especificamente que investigássemos as razoes pelas quais os estudantes não gostavam destes pacientes. Descobrimos que esta aversão estava relacionada ao que descobrimos ser a perspectiva dos estudantes da Escola de Medicina: a opinião de que estavam na universidade para ganhar experiência no reconhecimento e no tratamento de doenças comuns, que tinham maior probabilidade de serem encontradas na prática generalista. 

Os "pitiáticos", que presumivelmente não tinham doenças, não podiam proporcionar tal experiência. Fomos assim levados a especificar as conexões existentes na relação estudante-paciente e a visão da proposta de sua educação profissional. Questões relativas à gênese desta perspectiva levaram a descobertas sobre a organização do corpo discente e sobre a comunicação entre estudantes, fenômenos que vínhamos atribuindo a outro modelo parcial. Visto que a aversão pelos ''pitiáticos" advinha do fato de que não davam oportunidade aos estudantes de assumirem responsabilidades médicas, podíamos ainda ligar este aspecto do relacionamento estudante/paciente com um outro modelo especulativo do sistema de valores e da organização hierárquica da universidade, modelo no qual a responsabilidade médica desempenha um importante papel.

ANÁLISE FINAL E APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS


A análise sistemática final, realizada depois que o trabalho de campo está completo, consiste na rechecagem e na reconstrução dos modelos, tão cuidadosamente e com tantas salvaguardas quanto permitirem os dados.

A "análise de 'dados quase-estatísticos' pode provavelmente ser feita de modo mais sistemático do que foi no passado, se se conseguir pelo menos ter em mente a estrutura lógica da pesquisa quantitativa, que fornece ao pesquisador qualitativo direções e orientações gerais."

No estágio de análise pós-trabalho de campo, o observador prossegue de forma mais sistemática na operação de construção do modelo. Considera o caráter de suas conclusões e decide sobre o tipo de evidência que poderia causar sua rejeição, derivando testes posteriores através da dedução de consequências lógicas e da avaliação sobre se os dados sustentam as deduções ou não. Ele considera hipóteses alternativas razoáveis, e avalia se a evidência as refuta ou não.  Finalmente, ele completa seu trabalho de estabelecimento de interconexões entre modelos parciais, de modo a ultimar uma síntese global que incorpore todas as conclusões.

Os dados da observação participante consistem frequentemente de tipos muito diferentes de observações, as quais não podem ser simplesmente categorizadas e contadas sem perder algo de seu valor como evidência - pois, como vimos, muitos pontos devem ser levados em consideração ao se utilizar cada dado.

Ao trabalhar no material sobre o estudo da Escola de Medicina, uma possível solução para este problema, com a qual estamos fazendo uma experiência, é uma descrição da história natural de nossas conclusões, apresentando as evidências tais como chegaram à atenção do observador durante os sucessivos estágios de sua conceitualização do problema. O termo "história natural" não implica a apresentação de cada um dos dados, mas somente das formas características que os dados assumiram em cada estágio da pesquisa.

Isso envolve, levando em consideração as leis discutidas acima, a forma que tomaram os dados e qualquer exceção significativa na apresentação das várias afirmações de descobertas, assim como das inferências e conclusões esboçadas a partir delas. Desse modo, a evidência é avaliada à medida que a analise substantiva é apresentada. Se este método for empregado, o leitor será capaz de acompanhar os detalhes da análise e ver como e em que bases se chegou a qualquer das conclusões. Isto daria ao leitor, como dão os métodos estatísticos de apresentação atuais, a oportunidade de fazer seu próprio julgamento quanto à adequação da prova e ao grau de confiança a ser atribuído à conclusão.

CONCLUSÃO



A discussão pode servir igualmente para estimular aqueles que trabalham com estas e outras técnicas semelhantes a tentar uma maior formalização e sistematização das várias operações de que fazem uso, de modo que a pesquisa qualitativa possa tornar-se um esforço de tipo mais "científico" e menos "artístico".

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