Problemas de Inferência e Prova na Observação
Participante*
O observador participante coleta dados através de
sua participação na vida cotidiana do grupo ou organização que estuda. Minha discussão
se refere ao tipo de estudo de observação participante que busca tanto
descobrir hipóteses quanto testa-las.
A seguir, tento descortinar e descrever as operações
analíticas básicas realizadas na observação participante, por três razões: tornar
estas operações mais claras para aqueles que não estão familiarizados com o método;
ao tentar uma descrição mais explícita e sistemática, ajudar aqueles que
trabalham como método a organizar suas próprias pesquisas; e, o que é mais
importante, propor algumas mudanças nos procedimentos analíticos e, particularmente,
no relato dos resultados, mudanças as quais tornarão mais acessíveis ao leitor
os processos através dos quais as conclusões são alcançadas e fundamentadas.
Os três estágios da análise de campo são: a seleção
e definição de problemas, conceitos e índices; o controle sobre a frequência e
a distribuição de fenômenos; e a incorporação de descobertas individuais num
modelo da organização em estudo. O quarto estágio de análise final envolve
problemas de apresentação de evidências e provas.
SELEÇÃO E DEFINIÇÃO DE PROBLEMAS, CONCEITOS E ÍNDICES
Neste estágio, o observador procura por problemas e
conceitos que ofereçam a perspectiva de produzir a maior compreensão da organização
que ele esta estudando, e por itens que possam servir como indicadores úteis de
fatos que sejam mais difíceis de observar. A conclusão típica que seus dados
produzem é, simplesmente, a de que um certo fenômeno existe. A conclusão nada
diz sabre a frequência ou distribuição do fenômeno observado.
A seleção de indicadores para variáveis mais
abstratas ocorrem de duas maneiras: o observador pode, inicialmente, adquirir consciência
de algum fenômeno muito específico e, depois, perceber que ele pode ser
utilizado como indicador de alguma classe mais ampla de fenômenos; ou ele pode
ter em mente o problema mais amplo, e buscar indicadores específicos para
utilizar em seu estudo.
Operações posteriores nos estágios seguintes podem forçá-lo
a abandonar a maioria de suas hipóteses provisórias.
Necessitaremos, finalmente, de uma definição sistemática
de leis para ser aplicada aos itens individuais de evidência.
A credibilidade de informantes
Teria o informante razões para mentir ou esconder
uma parte do que considera como sendo a verdade? Vaidade ou conveniência o
levariam a distorcer informações sobre seu próprio papel num acontecimento ou
em relação a ele? Teve ele realmente a oportunidade de testemunhar a ocorrência
que descreve, ou é a boataria a origem de seu conhecimento? Seus sentimentos
sobre as questões ou pessoas em discussão o levam a alterar sua história de
alguma maneira?
Ao aceitar a proposição sociológica de que as declarações
e descrições que um indivíduo faz sobre um acontecimento são produzidas a
partir de uma perspectiva a qual é função de sua posição no grupo, o observador
pode interpretar tais declarações e descrições como indicações da perspectiva
do indivíduo sobre o ponto em questão.
Declarações dirigidas ou espontâneas
Um calouro de Medicina pode comentar com o
observador ou com outro estudante que tem mais material para estudar do que
tempo disponível para fazê-lo; ou o observador pode perguntar, "Você acha
que te deram mais trabalho do que você pode aguentar?", e receber uma resposta
afirmativa.
Isto levanta uma importante questão: até que ponto
a declaração do informante seria a mesma na ausência do observador, seja ela
feita espontaneamente ou em resposta a uma pergunta?
A própria questão do observador pode levar o
informante a dar uma resposta que poderia nunca lhe ocorrer de outra maneira.
Ficamos mais seguros de que os estudantes estão
preocupados com o montante de trabalho que lhes foi conferido quando eles o
mencionam por iniciativa própria, e menos quando sentimos que a ideia pode ter
sido estimulada pela pergunta do observador.
A equação grupo-informante-observador
Por um lado, um informante pode, enquanto está sozinho
com o observador, dizer ou fazer coisas que reflitam com exatidão sua
perspectiva, mas que seriam inibidas pela presença do grupo. Por outro lado, a
presença de outros pode estimular comportamentos que revelam mais exatamente a
perspectiva da pessoa, mas que não seriam verificados exclusivamente na presença
do observador.
Devemos levar em consideração o papel do observador
no grupo, pois a maneira como os sujeitos de seu estudo definem este papel
afeta o que dirão para ele e o que o deixarão ver.
Se o observador realiza sua pesquisa incógnito,
participando como um membro plenamente integrado ao grupo, ele privará de
conhecimentos que normalmente são compartilhados por estes membros e que devem
ser escondidos de alguém de fora do grupo.
CONTROLE DA FREQUÊNCIA E DA DISTRIBUIÇÃO DE FENÔMENOS
O observador, de posse de muitos problemas,
conceitos e indicadores provisórios, deseja agora saber quais deles vale a pena
perseguir como focos principais de seu estudo.
Observações participantes têm sido ocasionalmente
coletadas numa forma padronizada capaz de ser transformada em dados estatísticos
legítimos. Porém, as exigências do campo geralmente impedem a coleta de dados
num formato que se adeque às premissas dos testes estatísticos, de tal modo que
o observador lide com o que tem sido chamado de ''quase-estatística".
O potencial de gerar conclusões que advêm da convergência
de muitos tipos de evidência reflete o fato de que variedades separadas de evidência
podem ser reconceituadas como deduções feitas a partir de uma proposição básica,
que, agora, foram verificadas no campo.
CONSTRUÇÃO DE MODELOS DE SISTEMAS SOCIAlS
O estágio final de análise no campo consiste na incorporação
de descobertas individuais ao modelo generalizado do sistema ou da organização
social em estudo ou de alguma parte desta organização. O conceito de sistema
social é um instrumento intelectual básico para a sociologia moderna.
A conclusão típica deste estágio da pesquisa é uma afirmação
sobre um conjunto de complicadas inter-relações entre muitas variáveis.
Os que trabalham com a observação geralmente
encaram as técnicas estatísticas correntemente disponíveis como inadequadas
para expressar suas concepções, e acham necessário utilizar palavras.
Quando, pela primeira vez, escutamos os estudantes
de Medicina aplicarem o termo "pitiático" aos pacientes, fizemos um esforço
para entender precisamente o que queriam dizer com isso. Descobrimos, através
de entrevistas com estudantes sobre exemplos aos quais tanto eles próprios
quanto o observador haviam presenciado, que o termo se referia de maneira
pejorativa a pacientes com muitos sintomas subjetivos, mas com patologias físicas
não discerníveis. Observações subsequentes indicaram que este uso da palavra
era uma característica sistemática do comportamento dos estudantes, e,
portanto, que deveríamos incorporar este fato a nosso modelo do comportamento
estudante/paciente. O caráter pejorativo do termo sugeria especificamente que investigássemos
as razoes pelas quais os estudantes não gostavam destes pacientes. Descobrimos
que esta aversão estava relacionada ao que descobrimos ser a perspectiva dos
estudantes da Escola de Medicina: a opinião de que estavam na universidade para
ganhar experiência no reconhecimento e no tratamento de doenças comuns, que
tinham maior probabilidade de serem encontradas na prática generalista.
Os
"pitiáticos", que presumivelmente não tinham doenças, não podiam
proporcionar tal experiência. Fomos assim levados a especificar as conexões
existentes na relação estudante-paciente e a visão da proposta de sua educação
profissional. Questões relativas à gênese desta perspectiva levaram a
descobertas sobre a organização do corpo discente e sobre a comunicação entre
estudantes, fenômenos que vínhamos atribuindo a outro modelo parcial. Visto que
a aversão pelos ''pitiáticos" advinha do fato de que não davam
oportunidade aos estudantes de assumirem responsabilidades médicas, podíamos
ainda ligar este aspecto do relacionamento estudante/paciente com um outro
modelo especulativo do sistema de valores e da organização hierárquica da
universidade, modelo no qual a responsabilidade médica desempenha um importante
papel.
ANÁLISE FINAL E APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS
A análise sistemática final, realizada depois que o
trabalho de campo está completo, consiste na rechecagem e na reconstrução dos
modelos, tão cuidadosamente e com tantas salvaguardas quanto permitirem os
dados.
A "análise de 'dados quase-estatísticos' pode
provavelmente ser feita de modo mais sistemático do que foi no passado, se se
conseguir pelo menos ter em mente a estrutura lógica da pesquisa quantitativa,
que fornece ao pesquisador qualitativo direções e orientações gerais."
No estágio de análise pós-trabalho de campo, o
observador prossegue de forma mais sistemática na operação de construção do modelo.
Considera o caráter de suas conclusões e decide sobre o tipo de evidência que
poderia causar sua rejeição, derivando testes posteriores através da dedução de
consequências lógicas e da avaliação sobre se os dados sustentam as deduções ou
não. Ele considera hipóteses alternativas razoáveis, e avalia se a evidência as
refuta ou não. Finalmente, ele completa
seu trabalho de estabelecimento de interconexões entre modelos parciais, de modo
a ultimar uma síntese global que incorpore todas as conclusões.
Os dados da observação participante consistem frequentemente
de tipos muito diferentes de observações, as quais não podem ser simplesmente
categorizadas e contadas sem perder algo de seu valor como evidência - pois,
como vimos, muitos pontos devem ser levados em consideração ao se utilizar cada
dado.
Ao trabalhar no material sobre o estudo da Escola
de Medicina, uma possível solução para este problema, com a qual estamos
fazendo uma experiência, é uma descrição da história natural de nossas conclusões,
apresentando as evidências tais como chegaram à atenção do observador durante
os sucessivos estágios de sua conceitualização do problema. O termo "história
natural" não implica a apresentação de cada um dos dados, mas somente das
formas características que os dados assumiram em cada estágio da pesquisa.
Isso envolve, levando em consideração as leis discutidas
acima, a forma que tomaram os dados e qualquer exceção significativa na apresentação
das várias afirmações de descobertas, assim como das inferências e conclusões esboçadas
a partir delas. Desse modo, a evidência é avaliada à medida que a analise
substantiva é apresentada. Se este método for empregado, o leitor será capaz de
acompanhar os detalhes da análise e ver como e em que bases se chegou a
qualquer das conclusões. Isto daria ao leitor, como dão os métodos estatísticos
de apresentação atuais, a oportunidade de fazer seu próprio julgamento quanto à
adequação da prova e ao grau de confiança a ser atribuído à conclusão.
CONCLUSÃO
A discussão pode servir igualmente para estimular
aqueles que trabalham com estas e outras técnicas semelhantes a tentar uma
maior formalização e sistematização das várias operações de que fazem uso, de
modo que a pesquisa qualitativa possa tornar-se um esforço de tipo mais
"científico" e menos "artístico".
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