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24.3.17

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: Marx, modernismo e modernização. In: ______. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

II TUDO O QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR: MARX, MODERNISMO E MODERNIZAÇÃO

Ao nascimento da mecanização e da indústria moderna (...) seguiu-se um violento abalo, como uma avalanche, em intensidade e extensão. Todos os limites da moral e da natureza, de idade e sexo, de dia e noite, foram rompidos. O capital celebrou suas orgias. O Capital, volume I

1.  A VISÃO DILUIDORA E SUA DIALÉTICA

Marx, num parágrafo comovente e evocativo, transmite o ritmo e o drama do ativismo burguês: A burguesia, em seu reinado de apenas um século, gerou um poder de produção mais massivo e colossal do que todas as gerações anteriores reunidas. Submissão das forças da natureza ao homem, maquinado, aplicação da química à agricultura e à indústria, navegação a vapor, ferrovias, telegrafia elétrica, esvaziamento de continentes inteiros para o cultivo, canalização de rios, populações inteiras expulsas de seu habitat — que século, antes, pôde sequer sonhar que esse poder produtivo dormia no seio do trabalho social?

Provaram que é possível, através da ação organizada e concertada, realmente mudar o mundo. Por que deveria o homem moderno, que viu do que é capaz a atividade humana, aceitar passivamente a estrutura da sociedade, tal como se lhe oferece? Já que a ação organizada e concertada pode mudar o mundo de tantas maneiras, por que não organizar, trabalhar e lutar juntos para mudá-lo ainda mais?

O constante revolucionar da produção, a ininterrupta perturbação de todas as relações sociais, a interminável incerteza e agitação distinguem a época burguesa de todas as épocas anteriores. Todas as relações fixas, imobilizadas, com sua aura de ideias e opiniões veneráveis, são descartadas; todas as novas relações, recém-formadas, se tornam obsoletas antes que se ossifiquem. Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens.

Então a experiência do autodesenvolvimento, livre das pressões e distorções do mercado, poderá prosseguir livre e espontaneamente; em vez 95 do pesadelo em que foi transformado pela sociedade burguesa, poderá tornar-se fonte de alegria e beleza para todos.

Tudo é feito para ser desfeito amanhã, despedaçado ou esfarrapado, pulverizado ou dissolvido, a fim de que possa ser reciclado ou substituído na semana seguinte e todo o processo possa seguir adiante, sempre adiante, talvez para sempre, sob formas cada vez mais lucrativas.

Burgueses alienaram-se de sua própria criatividade, pois não suportam olhar de frente o abismo moral, social e psíquico gerado por essa mesma criatividade. Algumas das mais vividas e tocantes imagens de Marx nos forçam ao confronto com esse abismo. Assim, “a moderna sociedade burguesa, uma sociedade que liberou tão formidáveis meios de produção e troca, é como a feiticeira incapaz de controlar os poderes ocultos desencadeados por seu feitiço".

Na sintaxe de Marx, a “burguesia” é sujeito — por força de suas atividades econômicas responsáveis pelas grandes mudanças — e os homens e mulheres modernos, de todas as classes, são objetos, já que todos se veem transformados: A burguesia rompeu com todos os laços feudais que subordinavam os homens aos seus “superiores naturais”, e não deixou entre homem e homem nenhum outro laço senão seus interesses nus, senão o empedernido salário. Transformou o êxtase paradisíaco do fanatismo piedoso, do entusiasmo cavaleiresco e do sentimentalismo filisteu na água congelada do cálculo egoísta. (...) A burguesia despiu o halo de todas as ocupações até então honoráveis, encaradas com reverente respeito. (...) A burguesia estirpou da família seu véu sentimental e transformou a relação familiar em simples relação monetária. (...) Em lugar da exploração mascarada sob ilusões religiosas e políticas, ela colocou uma exploração aberta, desavergonhada, direta e nua.

Os membros da burguesia, sobretudo os mais poderosos, em geral se esforçam por restringir, manipular e controlar seus mercados. Realmente, muito de sua energia criativa, ao longo dos séculos, tem sido canalizados para arranjos nesse sentido — monopólios por concessão, companhias acionistas, trustes, cartéis e conglomerados, tarifas protecionistas, subsídios estatais abertos ou disfarçados — tudo isso acompanhado de hinos em louvor do livre mercado.

“A burguesia despiu de seu halo todas as atividades até então honradas e vistas com reverente respeito. Transformou o médico, o advogado, o pregador, o poeta, o homem de ciência (Mann der Wissenschaft) em trabalhadores assalariados”. O halo, para Marx, é o símbolo primordial da experiência religiosa, a experiência de algo sagrado.

Assim, eles só escreverão livros, pintarão quadros, descobrirão leis físicas ou históricas, salvarão vidas, se alguém munido de capital estiver disposto a remunerá-los. Mas as pressões da sociedade burguesa são tão fortes que ninguém os remunerará sem o correspondente retorno — isto é, sem que o seu trabalho não colabore, de algum modo, para “incrementar o capital”.

Precisam competir (não raro de forma brutal e sem escrúpulos) pelo privilégio de serem comprados, apenas para poder prosseguir em seu trabalho. Assim que o trabalho é executado, eles se veem, tal como qualquer outro trabalhador, separados do produto do seu esforço. Seus bens e serviços são postos à venda, e são “as vicissitudes da competição e as flutuações de mercado”, mais do que qualquer intrínseca verdade, beleza ou valor — ou, no caso, qualquer falta de verdade, beleza ou valor —, que determinarão seu destino.

Sabemos que até mesmo as ideias mais subversivas precisam manifestar-se através dos meios disponíveis no mercado. Na medida em que atraiam e insuflem pessoas, essas ideias se expandirão e enriquecerão o mercado, colaborando, pois, para “incrementar o capital”. Assim, se admitirmos que a visão de Marx é adequada e precisa, teremos todas as razões para acreditar que a sociedade burguesa gerará um mercado para ideias radicais.

As afinidades entre Marx e os modernistas tornam-se ainda mais claras quando observamos a passagem inteira de onde a imagem foi extraída: “Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens”

“A burguesia”, afirma ele, “desempenhou um papel altamente revolucionário na história”. O que é surpreendente nas páginas seguintes é que Marx parece empenhado não em enterrar a burguesia, mas em exaltá-la. Ele compõe uma apaixonada, entusiasmada e quase lírica celebração dos trabalhos, ideias e realizações da burguesia.

O que fizeram os burgueses para merecer a exaltação de Marx? Antes de tudo, eles foram “os primeiros a mostrar do que a atividade humana é capaz”.

Marx não está primordialmente interessado nas coisas criadas pela burguesia. O que lhe interessa são os processos, os poderes, as expressões de vida humana e energia: homens no trabalho, movendo-se, cultivando, comunicando-se, organizando e reorganizando a natureza e a si mesmos.

Apesar de todos os maravilhosos meios de atividade desencadeados pela burguesia, a única atividade que de fato conta, para seus membros, é fazer dinheiro, acumular capital, armazenar excedentes; todos os seus empreendimentos são apenas meios para atingir esse fim, não têm em si senão um interesse transitório e intermediário.

Eles produziram novas imagens e paradigmas.

A segunda grande realização burguesa foi liberar a capacidade e o esforço humanos para o desenvolvimento: para a mudança permanente, para a perpétua sublevação e renovação de todos os modos de vida pessoal e social.

Quem quer que esteja ao alcance dessa economia se vê sob a pressão de uma incansável competição.

Sob pressão, todos os burgueses, do mais humilde ao mais poderoso, são forçados a inovar, simplesmente para manter seu negócio e a si mesmos à tona; quem quer que deixe de mudar, de maneira ativa, tornar-se-á vítima passiva das mudanças draconianamente impostas por aqueles que dominam o mercado.

A burguesia não pode subsistir sem constantemente revolucionar os meios de produção.

Nossas vidas são controladas por uma classe dominante de interesses bem definidos não só na mudança, mas na crise e no caos. “Ininterrupta perturbação, interminável incerteza e agitação”, em vez de subverter essa sociedade, resultam de fato no seu fortalecimento.

O único espectro que realmente amedronta a moderna classe dominante e que realmente põe em perigo o mundo criado por ela à sua imagem é aquilo por que as elites tradicionais (e, por extensão, as massas tradicionais) suspiravam: uma estabilidade sólida e prolongada.

Homens e mulheres modernos precisam aprender a aspirar à mudança: aprender a não lamentar com muita nostalgia as “relações fixas, imobilizadas” de um passado real ou de fantasia, mas a se deliciar na mobilidade, a se empenhar na renovação

Marx compreendeu aquilo que escapou à maioria de seus predecessores — que o ideal humanístico do autodesenvolvimento se dá a partir da emergente realidade do desenvolvimento econômico burguês.

O problema do capitalismo é que, aqui como em qualquer parte, ele destrói as possibilidades humanas por ele criadas. Estimula, ou melhor, força o autodesenvolvimento de todos, mas as pessoas só podem desenvolver-se de maneira restrita e distorcida.

As disponibilidades, impulsos e talentos que o mercado pode aproveitar são pressionados (quase sempre prematuramente) na direção do desenvolvimento e sugados até a exaustão; tudo o mais, em nós, tudo o mais que não é atraente para o mercado é reprimido de maneira drástica, ou se deteriora por falta de uso, ou nunca tem uma chance real de se manifestar.

Quanto mais furiosamente, mais implacavelmente lutarão contra ela, em nome de uma nova vida que ela própria os forçou a buscar. Aí então o capitalismo entrará em combustão pelo calor das suas próprias incandescentes energias.

Após a Revolução, depois que os privilégios de classe forem eliminados, depois que os trabalhadores puderem controlar os meios pelos quais o trabalho será organizado, então teremos uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um será a condição para o livre desenvolvimento de todos.

É crucial para Marx o ideal desenvolvimentista.

No primeiro volume de O Capital:
“... o indivíduo parcialmente desenvolvido, meramente portador de uma função social especializada, deve ser substituído pelo indivíduo plenamente desenvolvido, adaptável a várias atividades, pronto para aceitar qualquer mudança de produção, o indivíduo para quem as diferentes funções sociais que desempenha são apenas formas variadas de livre manifestação dos seus próprios poderes, naturais e adquiridos”.

Essa visão do comunismo é inquestionavelmente moderna, antes de mais nada em seu individualismo, porém mais ainda em seu ideal de desenvolvimento como forma de vida boa.

2. AUTODESTRUIÇÃO INOVADORA

Podemos, assim, compreender por que Marx se mostra tão excitado e entusiasmado com a burguesia e o mundo por ela criado.

Não obstante, a verdade é que, como Marx o vê, tudo o que a sociedade burguesa constrói é construído para ser posto abaixo.

Dada a capacidade burguesa de tirar proveito da destruição e do caos, não há qualquer razão aparente para que essas crises não possam prosseguir numa espiral interminável, destruindo pessoas, famílias, corporações, cidades, porém deixando intactas as estruturas e o poder da vida social burguesa.

Um governo comunista deverá tentar conter a inundação impondo restrições radicais não apenas a qualquer atividade e empresa econômica (todos os governos socialistas fizeram isso, como todos os Estados capitalistas), mas às manifestações pessoais, culturais e políticas. Contudo, na medida em que fosse bem-sucedida, essa estratégia não estaria traindo o objetivo marxista de livre desenvolvimento para cada um e para todos? Marx vislumbrou o comunismo como o coroamento da modernidade; porém, como pode o comunismo inserir-se no mundo moderno sem suprimir aquelas energias verdadeiramente modernas que ele promete liberar?

Por outro lado, se o comunismo der livre curso a essas energias, seu fluxo espontâneo não levará de roldão a nova formação social?

Podemos perceber como o comunismo, para se manter coeso, precisará sufocar as forças ativas, dinâmicas e desenvolvimentistas que lhe deram vida, precisará matar muitas das esperanças pelas quais valeu a pena lutar, precisará reproduzir as iniquidades e contradições da sociedade burguesa, sob novo nome.

3. NUDEZ: O HOMEM DESACOMODADO

A esperança de Marx é que, tão logo sejam “forçados a enfrentar (. .) suas verdadeiras condições de vida e suas relações com outros companheiros”, os homens desacomodados das classes operárias se unirão para combater o frio que enregela a todos. Essa união gerará a energia coletiva capaz de alimentar uma nova vida comunitária.

Os homens modernos talvez prefiram o solitário pathos e a grandiosidade do rousseauniano indivíduo liberado, ou o conforto coletivo e bem-vestido da máscara política de Burke, à tentativa marxista de fundir o melhor de ambos. Com efeito, a espécie de individualismo que despreza e teme contatos com outras pessoas como ameaças à integridade interior e a espécie de coletivismo que busca submergir o eu num papel social podem ser mais atraentes que a síntese marxista, pois são intelectual e emocionalmente mais acessíveis.

4. A METAMORFOSE DOS VALORES

Imenso poder do mercado na vida interior do homem moderno: este examina a lista de preços à procura de respostas a questões não apenas econômicas mas metafísicas

Marx aponta para o fato de que a sociedade burguesa não eliminou as velhas estruturas de valor, mas absorveu-as, mudadas.

Com isso, qualquer espécie de conduta humana se torna permissível no instante em que se mostre economicamente viável, tornando-se “valiosa”;

Eis aí a essência do niilismo moderno.

5. A PERDA DO HALO

Quando descreve os intelectuais como assalariados, Marx está tentando fazer-nos ver a cultura moderna como parte da moderna indústria. Arte, ciências físicas, teoria social (como a do próprio Marx), tudo isso são modos de produção; a burguesia controla os meios de produção na cultura, como em tudo o mais, e quem quer que pretenda criar deve operar em sua órbita de poder.

Eles, os intelectuais, são beneficiários da demanda burguesa de inovação permanente, que expande enormemente o mercado para seus produtos e habilidades, muitas vezes estimula sua audácia e imaginação criativas e — se eles forem astutos e bem-sucedidos o suficiente na exploração da necessidade de novas ideias — permite que eles se safem da pobreza crônica em que vive a maior parte dos trabalhadores.

Eles vendem não apenas sua energia física mas suas mentes, sua sensibilidade, seus sentimentos mais profundos, seus poderes visionários e imaginativos, virtualmente todo o se.u ser.

Isto quer dizer, porém, que todos os homens e movimentos que se proclamem inimigos do capitalismo talvez sejam exatamente a espécie de estimulantes que o capitalismo necessita

A intenção de Marx, ao arrancar os halos de suas cabeças, é mostrar que ninguém na sociedade burguesa pode ser tão puro, tão seguro ou tão livre. As teias e ambiguidades do mercado são de tal ordem que a todos capturam e emaranham.


Nunca será possível sobrepujar essas contradições se não as enfrentarmos direta e abertamente.

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