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24.3.17

SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio G. (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Guanabara, 4a. ed., 1987.

A METRÓPOLE E A VIDA MENTAL

A especialização torna cada homem proporcionalmente mais dependente de forma direta das atividades suplementares de todos os outros.

O século XVIII conclamou o homem a que se libertasse de todas as dependências históricas quanto ao Estado e à religião, à moral e à economia

Os problemas mais graves da vida moderna derivam da reivindicação que faz o indivíduo de preservar a autonomia e individualidade de sua existência em face das esmagadoras forças sociais, da herança histórica, da cultura externa e da técnica de vida.

Nietzsche vê o pleno desenvolvimento do indivíduo condicionado pela mais impiedosa luta de indivíduos; o socialismo acredita na supressão de toda competição pela mesma razão. Seja como for, em todas estas posições, a mesma motivação básica está agindo: a pessoa resiste a ser nivelada e uniformizada por um mecanismo sócio-tecnológico

Com cada atravessar de rua, com o ritmo e a multiplicidade da vida econômica, ocupacional e social, a cidade faz um contraste profundo com a vida de cidade pequena e a vida rural no que se refere aos fundamentos sensoriais da vida psíquica. A metrópole extrai do homem, enquanto criatura que procede a discriminações, uma quantidade de consciência diferente da que a vida rural extrai.

O tipo metropolitano de homem — que, naturalmente, existe em mil variantes individuais — desenvolve um órgão que o protege das correntes e discrepâncias ameaçadoras de sua ambientação externa, as quais, do contrário, o desenraizariam. Ele reage com a cabeça, ao invés de com o coração.

Na esfera da psicologia econômica do pequeno grupo, é importante que, sob condições primitivas, a produção sirva ao cliente que solicita a mercadoria, de modo que o produtor e o consumidor se conheçam. A metrópole moderna, entretanto, é provida quase que inteiramente pela produção para o mercado, isto é, para compradores inteiramente desconhecidos, que nunca entram pessoalmente no campo de visão propriamente dito do produtor.

A vida metropolitana, assim, implica uma consciência elevada e uma predominância da inteligência no homem metropolitano.

A intelectualidade, assim, se destina a preservar a vida subjetiva contra o poder avassalador da vida metropolitana.

A economia monetária e o domínio do intelecto estão intrinsecamente vinculados. Eles partilham uma atitude que vê como prosaico o lidar com homens e coisas;

O dinheiro se refere unicamente ao que é comum a tudo: ele pergunta pelo valor de troca, reduz toda qualidade e individualidade à questão: quanto?

Nas relações racionais, trabalha-se com o homem como com um número, como um elemento que é em si mesmo indiferente.

Apenas a realização objetiva, mensurável, é de interesse. Assim, o homem metropolitano negocia com seus fornecedores e clientes, seus empregados domésticos e frequentemente até com pessoas com quem é obrigado a ter intercâmbio social. Estes aspectos da intelectualidade contrastam com a natureza do pequeno círculo, em que o inevitável conhecimento da individualidade produz, da mesma forma inevitavelmente, um tom mais cálido de comportamento, um comportamento que vai além de um mero balanceamento objetivo de serviços e retribuição.

A economia do dinheiro domina a metrópole;

A mente moderna se tornou mais e mais calculista. A exatidão calculista da vida prática, que a economia do dinheiro criou, corresponde ao ideal da ciência natural: transformar o mundo num problema aritmético, dispor todas as partes do mundo por meio de fórmulas matemáticas.

Assim, a técnica da vida metropolitana é inimaginável sem a mais pontual integração de todas as atividades e relações mútuas em um calendário estável e impessoal

Pontualidade, calculabilidade, exatidão, são introduzidas à força na vida pela complexidade e extensão da existência metropolitana e não estão apenas muito intimamente ligadas à sua economia do dinheiro e caráter intelectualístico.

Os mesmos fatores que assim redundaram na exatidão e precisão minuciosa da forma de vida redundaram também em uma estrutura da mais alta impessoalidade; por outro lado, promoveram uma subjetividade altamente pessoal. Não há talvez fenômeno psíquico que tenha sido tão incondicionalmente reservado à metrópole quanto a atitude blasé.

Portanto, as pessoas estúpidas, que não têm existência intelectual, não são exatamente: blasé.

O dinheiro, com toda sua ausência de cor e indiferença, torna-se o denominador comum de todos os valores; arranca irreparavelmente a essência das coisas, sua individualidade, seu valor específico e sua incomparabilidade

A essência da atitude blasé consiste no embotamento do poder de discriminar.

O significado e valores diferenciais das coisas, e daí as próprias coisas, são experimentados como destituídos de substância. Elas aparecem à pessoa blasé num tom uniformemente plano e fosco; objeto algum merece preferência sobre outro.

Esse estado de ânimo é o fiel reflexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada.

O dinheiro torna-se o mais assustador dos niveladores. Pois expressa todas as diferenças qualitativas das coisas em termos de “quanto?”

Nesse fenômeno, os nervos encontram na recusa a reagir a seus estímulos a última possibilidade de acomodar-se ao conteúdo e à forma da vida metropolitana.

Se houvesse, em resposta aos contínuos contatos externos com inúmeras pessoas, tantas reações interiores quanto as da cidade pequena, onde se conhece quase todo mundo que se encontra e onde se tem uma relação positiva com quase todos, a pessoa ficaria completamente atomizada internamente e chegaria a um estado psíquico inimaginável.

Como resultado dessa reserva, frequentemente nem sequer conhecemos de vista aqueles que, foram nossos vizinhos durante anos. E é esta reserva que, aos olhos da gente da cidade pequena, nos faz parecer frios e desalmados.

O que aparece no estilo metropolitano de vida diretamente como dissociação na realidade é apenas uma de suas formas elementares de socialização.

Quanto menor é o círculo que forma nosso meio e quanto mais restritas aquelas relações com os outros que dissolvem os limites do individual, tanto mais ansiosamente o círculo guarda as realizações, a conduta de vida e a perspectiva do indivíduo e tanto mais prontamente uma especialização quantitativa e qualitativa romperia a estrutura de todo o pequeno círculo.

A reserva e indiferença recíprocas e as condições de vida intelectual de grandes círculos nunca são sentidas mais fortemente pelo indivíduo, no impacto que causam em sua independência, do que na multidão mais concentrada na grande cidade.

A pessoa em nenhum lugar se sente tão solitária e perdida quanto na multidão metropolitana.

O ponto essencial é que a particularidade e incomparabilidade que, em última análise, todo ser humano possui, sejam de alguma forma expressas na elaboração de um modo de vida.

Apenas nosso caráter inconfundível pode provar que nosso modo de vida não foi imposto por outros.

As cidades são, em primeiro lugar, sede da mais alta divisão econômica do trabalho.

Ao mesmo tempo, a concentração de indivíduos e sua luta por consumidores compelem o indivíduo a especializar-se em uma função na qual não possa ser prontamente substituído por outro.

É um fato decisivo que a vida da cidade transformou a luta com a natureza pela vida em uma luta entre os homens pelo lucro, que aqui não é conferido pela natureza, mas pelos outros homens.

Tudo isso forma a transição para a individualização de traços mentais e psíquicos que a cidade ocasiona em proporção a seu tamanho.

Finalmente, o homem é tentado a adotar as peculiaridades mais tendenciosas, isto é, as extravagâncias especificamente metropolitanas do maneirismo, capricho e preciosismo.

Onde o aumento quantitativo em importância e o dispêndio de energia atingem seus limites, a pessoa se volta para diferenças qualitativas, de modo a atrair, por alguma forma, a atenção do círculo social, explorando sua sensibilidade a diferenças.

Agora, o significado dessas extravagâncias não jaz absolutamente no conteúdo de tal comportamento, mas antes na sua forma de “ser diferente”, de sobressair de forma notável e assim atrair atenção.

A razão mais profunda, entretanto, pela qual a metrópole conduz ao impulso da existência pessoal mais individual — sem embargo de quão justificada e bem sucedida — parece-me ser a seguinte: o desenvolvimento da cultura moderna é caracterizado pela preponderância do que se poderia chamar de o “espírito objetivo” sobre o “espírito subjetivo”.

A divisão de trabalho reclama do indivíduo um aperfeiçoamento cada vez mais unilateral. E um avanço grande no sentido de uma busca unilateral com muita frequência significa a morte para a personalidade do indivíduo.

No século XIX, através de Goethe e do romantismo, por um lado, e através da divisão econômica do trabalho, por outro, outro ideal se levantou: os indivíduos liberados de vínculos históricos agora desejavam distinguir-se um do outro. A escala dos valores humanos já não é constituída pelo “ser humano geral” em cada indivíduo, mas antes pela unicidade e imprescindibilidade qualitativas do homem.


É função da metrópole fornecer a arena para este combate e a reconciliação dos combatentes. Pois a metrópole apresenta as condições peculiares que nos são reveladas como as oportunidades e os estímulos para o desenvolvimento de ambas essas maneiras de conferir papéis aos homens.

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