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24.5.17

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

Introdução

Objeto da pesquisa
Sociologia religiosa e teoria do conhecimento

A sociologia, como toda ciência positiva, tem por objeto acima de tudo explicar uma realidade atual, próxima de nós, capaz portanto de afetar nossas ideias e nossos atos: essa realidade é o homem e, mais especialmente, o homem de hoje, pois não há outro que estejamos mais interessados em conhecer bem.

Quando abordamos o estudo das religiões primitivas, é com a certeza de que elas pertencem ao real e o exprimem.
Os ritos mais bárbaros ou os mais extravagantes, os mitos mais estranhos traduzem alguma necessidade humana, algum aspecto da vida, seja individual ou social.
Portanto, não há religiões falsas. Todas são verdadeiras a seu modo: todas correspondem ainda que de maneiras diferentes, a condições dadas da existência humana.

Se, de fato, é útil saber em que consiste esta ou aquela religião particular, importa ainda mais examinar o que é a religião de uma maneira geral.

Na base de todos os sistemas de crenças e de todos os cultos, deve necessariamente haver um certo número de representações fundamentais e de atitudes rituais que, apesar da diversidade de formas que tanto umas como outras puderam revestir, têm sempre a mesma significação objetiva e desempenham por toda parte as mesmas funções. São esses elementos permanentes que constituem o que há de eterno e de humano na religião, eles são o conteúdo objetivo da ideia que se exprime quando se fala da religião em geral.

Como descobrir o fundo comum da vida religiosa sob a luxuriante vegetação que a recobre?
Nas sociedades inferiores. O menor desenvolvimento das individualidades, a menor extensão do grupo, a homogeneidade das circunstâncias exteriores, tudo contribui para reduzir as diferenças e as variações ao mínimo.

O acessório, o secundário, os desenvolvimentos de luxo não vieram ainda ocultar o principal. Tudo é reduzido ao indispensável, àquilo sem o que não poderia haver religião.
As civilizações primitivas constituem, portanto, casos privilegiados por serem casos simples.

À medida que o pensamento religioso progride na história, as causas que o chamaram à existência, embora sempre permanecendo ativas, não são mais percebidas, se não através de um vasto sistema de interpretações que as deformam.
Nas religiões primitivas, o fato religioso traz ainda visível a marca de suas origens.

Toda religião, com efeito, tem um lado pelo qual vai além do círculo das ideias propriamente religiosas e, sendo assim, o estudo dos fenômenos religiosos fornece um meio de renovar problemas que até agora só foram debatidos entre filósofos.
Há muito se sabe que os primeiros sistemas de representações que o homem produziu do mundo e de si próprio são de origem religiosa. Não há religião que não seja uma cosmologia ao mesmo tempo que uma especulação sobre o divino. Se a filosofia e as ciências nasceram da religião, é que a própria religião começou por fazer as vezes de ciências e de filosofia. Mas o que foi menos notado é que ela não se limitou a enriquecer com um certo número de ideias um espírito humano previamente informado, também contribuiu para formar esse espírito. Os homens não lhe devem apenas, em parte notável, a matéria de seus conhecimentos, mas igualmente a forma segundo a qual esses conhecimentos são elaborados.

Na raiz de nossos julgamentos, há um certo número de noções essenciais que dominam toda a nossa vida intelectual, são aquelas que os filósofos, desde Aristóteles, chamam de categorias do entendimento: noções de tempo, espaço, gênero, número, causa, substância, personalidade, etc. Elas correspondem às propriedades mais universais das coisas.

Ora, quando analisamos metodicamente as crenças religiosas primitivas, encontramos naturalmente em nosso caminho as principais dessas categorias. Elas nasceram na religião e da religião, são um produto do pensamento religioso.

A conclusão geral do livro que se irá ler é que a religião é uma coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas, os ritos são maneiras de agir que só surgem no interior de grupos coordenados e se destinam a suscitar, manter ou refazer alguns estados mentais desses grupos. Mas, então, se as categorias são de origem religiosa, elas devem participar da natureza comum a todos os fatos religiosos: também elas devem ser coisas sociais, produtos do pensamento coletivo.

Só podemos conceber o tempo se nele distinguirmos momentos diferentes.
Não é o meu tempo que está assim organizado, é o tempo tal como é objetivamente pensado por todos os homens de uma mesma civilização. Apenas isso já é suficiente para fazer entrever que uma tal organização deve ser coletiva. E, de fato, a observação estabelece que esses pontos de referência indispensáveis, em relação aos quais todas as coisas se classificam temporalmente, são tomados da vida social. As divisões em dias, semanas, meses, anos, etc, correspondem à periodicidade dos ritos, das festas, das cerimônias públicas. Um calendário exprime o ritmo da atividade coletiva, ao mesmo tempo que tem por função assegurar sua regularidade.

Na medida em que participar da sociedade, o indivíduo naturalmente ultrapassa a si mesmo, seja quando pensa, seja quando age.

Quando tentamos, mesmo em nosso foro interior, libertar-nos dessas noções fundamentais, sentimos que não somos completamente livres, que algo resiste a nós, dentro e fora de nós. Fora de nós, há a opinião que nos julga, mas, além disso, como a sociedade é também representada em nós, ela se opõe desde dentro de nós a essas veleidades revolucionárias.

Assim renovada, a teoria do conhecimento parece destinada a reunir as vantagens contrárias das duas teorias rivais, sem seus inconvenientes. Ela conserva todos os princípios essenciais do apriorismo, mas, ao mesmo tempo, inspira-se nesse espírito de positividade que o empirismo procurava satisfazer. Conserva o poder específico da razão, mas justifica-o, e sem sair do mundo observável. Afirma como real a dualidade de nossa vida intelectual, mas explica-a, e mediante causas naturais. As categorias deixam de ser consideradas fatos primeiros e não analisáveis. No entanto, permanecem de uma complexidade que análises simplistas como aquelas com que se contentava o empirismo não poderiam vencer. Pois elas aparecem, então, não mais como noções muito simples que qualquer um é capaz de extrair de suas observações pessoais e que a imaginação popular desastradamente teria complicado, mas, ao contrário, como hábeis instrumentos de pensamento, que os grupos humanos laboriosamente forjaram ao longo do séculos e nos quais acumularam o melhor de seu capital intelectual. Toda uma parte da história da humanidade nelas se encontra como que resumida.

Conclusão

Por mais simples que seja o sistema que estudamos, nós reencontramos nele todas as grandes ideias e todas as principais atitudes rituais que estão na base das religiões mais avançadas.
Portanto, temos fundamentos para esperar que os resultados aos quais chegamos não são particulares apenas ao totemismo, mas podem auxiliar-nos a compreender o que é a religião em geral.

Os crentes sentem que a verdadeira função da religião não é fazermos pensar, enriquecer nosso conhecimento, mas a de fazer-nos agir, auxiliar-nos a viver. O fiel que se comunicou com seu Deus não é apenas um homem que vê novas verdades que o descrente ignora, ele é um homem que pode mais. Ele sente em si mais força, seja para suportar as dificuldades da existência, seja para vencê-las. Ele está como que elevado acima das misérias humanas porque está elevado acima de sua condição de homem, acredita-se salvo do mal, sob qualquer forma, aliás, que ele conceba o mal. O primeiro artigo de toda a fé é a crença na salvação pela fé. Uma ideia, com efeito, não é senão um elemento de nós mesmos. Como poderia ela conferir-nos poderes superiores àqueles que temos por nossa natureza? 

É preciso que ajamos e que repitamos os atos que são assim necessários, todas as vezes em que isso é útil para renovar seus efeitos. Desse ponto de vista, entrevê-se como este conjunto de atos regularmente repetidos, que constitui o culto, retoma toda a sua importância.

É o culto que suscita estas impressões de alegria, de paz interior, de serenidade, de entusiasmo, que são, para o fiel, a prova experimental de suas crenças. O culto não é simplesmente um sistema de signos pelos quais a fé se traduz para o exterior, ele é a coleção dos meios pelos quais ela se cria e se recria periodicamente.

A causa objetiva, universal e eterna destas sensações sui generis das quais é feita a experiência religiosa, é a sociedade.
Pois quem faz o homem é este conjunto de bens intelectuais que constitui a civilização e a civilização é obra da sociedade. E assim se explica o papel preponderante do culto em todas as religiões, quaisquer que sejam.

Quase todas as grandes instituições sociais nasceram da religião. Ora, para que os principais aspectos da vida coletiva tenham começado por aspectos variados da vida religiosa, é preciso evidentemente que a vida religiosa seja a forma eminente e como que uma expressão abreviada da vida coletiva inteira. Se a religião engendrou tudo o que há de essencial na sociedade, é porque a ideia da sociedade é a alma da religião.
As forças religiosas são, pois, forças humanas, forças morais.

Prendendo-se às aparências, os ritos frequentemente parecem o efeito de operações puramente manuais: são unções, lavagens, refeições.
Mas estas manobras materiais são o invólucro exterior sobre o qual se dissimulam operações mentais. Finalmente, trata-se não de exercer um tipo de coação física sobre força cegas e, aliás, imaginárias, mas de atingir consciências, de tonificá-las, discipliná-las.

Mas, de início, é simplificar arbitrariamente as coisas ver a religião só por seu lado idealista: ela é realista a sua maneira.
Longe de a religião ignorar a sociedade real e dela fazer abstração, ela é sua imagem: reflete todos os seus aspectos, mesmo os mais vulgares e os mais repugnantes.

O homem tem uma faculdade natural de idealizar, isto é, de substituir o mundo da realidade por um mundo diferente para onde ele se transporta pelo pensamento. Mas isto é trocar os termos do problema, sem resolvê-lo, nem fazer progredir. Esta idealização sistemática é uma característica essencial das religiões.

Apenas o homem tem a faculdade de conceber o ideal e de acrescentar ao real. O que define o sagrado é o fato de ser acrescentado ao real. Ora, o ideal corresponde à mesma definição.
Ao mundo real em que se escoa sua vida profana, ele superpõe um outro que, num sentido, existe apenas em seu pensamento, mas ao qual ele atribui, em relação ao primeiro, um tipo de dignidade mais elevada. Ele é portanto, sobre seu duplo aspecto, um mundo ideal.

A sociedade ideal não está fora da sociedade real, mas faz parte dela. Pois uma sociedade não é simplesmente constituída pela massa dos indivíduos que a compõem, pelos movimentos que eles realizam, mas, antes de tudo, pela ideia que ela faz de si mesma.

Portanto, em vez de o ideal coletivo, expresso pela religião, ser devido a um não sei que poder inato do indivíduo, foi, muito pelo contrário, na escola da vida coletiva que o indivíduo aprendeu a idealizar.

Assim, tanto no indivíduo quanto no grupo, a faculdade de idealizar não tem nada de misterioso. Não é um tipo de luxo do qual o homem poderia privar-se, mas uma condição de sua existência. Ele não seria um ser social, isto é, não seria um homem, se não a tivesse adquirido. Sem dúvida, encarnando-se nos indivíduos, os ideais coletivos tendem a individualizar-se. Cada um os compreende à sua maneira, os marcar com o seu cunho, retiram-se elementos, acrescentam se outros. O ideal pessoal destaca-se assim do ideal social, na medida em que a personalidade individual se desenvolve e se torna uma fonte autônoma de ação. Mas, para compreender esta aptidão, tão singular na aparência, de viver fora do real, é suficiente relacioná-la às condições sociais das quais ela depende.
Portanto, é preciso guardar-se de ver nesta teoria da religião um simples rejuvenescimento do materialismo histórico. Mostrando na religião uma coisa essencialmente social, não pretendemos de maneira alguma dizer que ela se limita a traduzir, em uma outra linguagem, as formas materiais da sociedade e suas necessidades imediatas e vitais. A consciência coletiva é outra coisa que um simples epifenômeno de sua base morfológica.

Fé é, antes de tudo, calor, vida, entusiasmo, exaltação de toda atividade mental, transporte do indivíduo acima de si mesmo. Ora, como poderia ele, sem sair de si, acrescer algo às energias que possui? Como poderia ultrapassar-se apenas com suas forças? O único foco de calor junto ao qual podemos nos reaquecer moralmente é o formado pela sociedade de nossos semelhantes; as únicas forças morais pelas quais podemos sustentar e aumentar as nossas são aquelas que outro nos fornece.

O homem que tem uma verdadeira fé experimenta invencívelmente a necessidade de difundi-la; para isto, ele sai de seu isolamento, aproxima-se dos outros, procura convencê-los e é o ardor das convicções por ele suscitadas que vem reconfortar a sua. A fé estiolar-se-ia rapidamente se permanecesse sozinha.

Portanto, há na religião algo de eterno que está destinado a sobreviver à todos os símbolos particulares nos quais o pensamento religioso sucessivamente se envolveu. Não pode haver sociedade que não sinta necessidade de conservar e de reforçar, em intervalos regulares, os sentimentos coletivos e as ideias coletivas que fazem sua unidade e sua personalidade.

Mas as festas, os ritos, o culto, não constitui toda a religião. Esta não é apenas um sistema de práticas: é também um sistema de ideias, cujo objetivo é exprimir o mundo.

Constatamos que as realidades às quais se aplica agora a especulação religiosa são aquelas mesmas que serviram mais tarde de objeto à reflexão dos sábios: a natureza, o homem e a sociedade.

Estas realidades, a religião esforça-se por traduzi-las em uma linguagem inteligível que não difere em natureza daquela que a ciência emprega; nos dois lados, trata-se de ligar as coisas umas às outras, de estabelecer entre elas relações internas, classificá-las e sistematizá-las.

Saída da religião, a ciência tende a substituí-la em tudo o que concerne às funções cognitivas e intelectuais.
Durante muito tempo, a ideia de submeter a vida psíquica à ciência tinha o efeito de um tipo de profanação.

O que a ciência contesta à religião não é o direito de existir, é o direito de dogmatizar sobre a natureza das coisas, é a espécie de competência especial que ela se atribuía para conhecer o homem e o mundo.

A matéria do pensamento lógico está feita de conceitos. Procurar como a sociedade pode ter desempenhado um papel da gênese do pensamento lógico significa, portanto, perguntar-se como ela pode ter tomado partido na formação dos conceitos.

O conceito é, senão universal, pelo menos universalizável. Um conceito não é meu conceito; ele é comum com outros homens ou, em todo caso, ele pode ser feliz comunicado. O conceito é uma representação essencialmente impessoal: é por ele que as inteligências humanas se comunicam.

Se ele é comum a todos, é porque é obra da comunidade.
Todas as vezes que estamos em presença de um tipo de pensamento ou de ação que se impõe uniformemente às vontades ou às inteligências particulares, essa pressão exercida sobre o indivíduo revela a intervenção da coletividade.

Conceber uma coisa é, ao mesmo tempo, apreender seus elementos essenciais, situá-la em um conjunto; pois cada civilização tem seu sistema organizado de conceitos que a caracteriza.

O homem chegou a conceber todo um mundo de ideais estáveis, lugar comum das inteligências. Com efeito, pensar logicamente é sempre, em alguma medida, pensar de maneira impessoal. Impessoalidade, estabilidade, eis as duas características da verdade.

Se hoje é suficiente em geral que eles tragam o selo da ciência para encontrar um tipo de crédito privilegiado, é porque nós temos fé na ciência.

A partir do momento em que se reconheceu que acima do indivíduo existe a sociedade e que esta não é um ser nominal e de razão, mas um sistema de forças atuantes, uma nova maneira de explicar o homem tornou se possível.

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