Páginas

20.6.17

ALMEIDA, Ronaldo & D'ANDREA, Tiarajú. (2004), Pobreza e redes sociais em uma favela paulistana. Novos Estudos, São Paulo, 68:94-106, mar.

O estudo constata a diversidade da configuração da pobreza no espaço metropolitano, que varia conforme o maior ou menor acesso dos indivíduos a uma "estrutura de oportunidades" e o "capital social" presente em cada contexto.

Este artigo enfoca os vínculos societários mantidos pelos moradores de Paraisópolis, favela localizada na zona sul da cidade de São Paulo. A partir de pesquisa etnográfica ali realizada, constatou-se que esses vínculos — de parentesco, de vizinhança, entre conterrâneos, com instituições religiosas e do Terceiro Setor — constituem redes sociais pelas quais circulam benefícios materiais (por vezes em forma de informações e conta-tos) e afetivos (amizades, matrimônios, apoio emocional etc.) que contri-buem para fomentar a integração socioeconômica dos membros daquela comunidade, atenuando a sua condição de vulnerabilidade. Nesse emara-nhado de redes sociais destacam-se as de caráter religioso, que constituem o vínculo associativo de maior alcance na favela, assim como na própria Região Metropolitana de São Paulo, sobretudo entre as camadas mais pobres.

a constatação mais geral da pesquisa, e por conseguinte o pressuposto deste artigo, é a existência de diferenciadas pobrezas urbanas, que variam segundo o capi-tal social de cada contexto.

uma das conclusões da pesquisa indicou que Paraisópolis, entre outros fatores por sua localização e antigüidade, é um lugar relativamente atípico em São Paulo, com uma significativa "estrutura de oportunidades"1 em relação ao conjunto de favelas da Região Metropolitana.

(1) A noção de estrutura de oportunidades "alude ao fato de que os canais para o bem-estar estão estreitamente vin-culados entre si, de modo que o acesso a determinados bens, serviços ou atividades provê recursos que por sua vez facili-tam o acesso a outras oportuni-dades" (Katzman, Ruben e Fil-gueira, Carlos. Marco concep-tual sobre activos, vulnerabili-dad y estructuras de oportuni-dades. Montevidéu: Cepal, 1999, mimeo, p. 9).

A favela e seu entorno rico 

Mesmo em face de condições precárias, alguns moradores que migraram de outras favelas da RMSP afirmaram que Paraisópolis é lugar de ascensão social relativa

Essa opinião favorável deve-se sobretudo à disponibilidade de oferta de ocupação profissional quase todos os entrevistados declararam exercer alguma ocupação, em geral com alta informalidade e concentrada no comércio e na prestação de serviços.

Essas atividades profissionais derivam em grande medida da própria localização da favela, geograficamente circunscrita por residências e condo-mínios de classe alta do bairro do Morumbi

Na verdade, Morumbi e Paraisópolis cresceram juntos, pois a expansão dos grandes empreendimentos imobiliários no bairro, já nos anos 1970, determinou a fixação ali de uma população atraída pela demanda de mão-de-obra para construção civil — demanda posteriormente ampliada ao trabalho domiciliar, em particular feminino.

Essa situação de contigüidade espacial representa para a população favelada um fluxo de recursos materi-ais não só por via das relações de trabalho, mas também, como veremos, por meio do assistencialismo, o que lhe propicia um maior acesso à proteção social e ao consumo.

No entanto, essa interpenetração da favela com o entorno privilegiado apresenta um aspecto de sentido inverso, materializado e simbolizado pela arquitetura de segregação que caracteriza os "enclaves fortificados"5 nos quais passaram a se estabelecer as elites da metrópole. Trata-se dos fortes esquemas de segurança e vigilância que cercam as mansões e os condomí-nios do bairro, distanciando ou mesmo isolando seus moradores do contato com a vizinhança pobre da favela como locus do perigo e da violência. Entre os dois espaços desenvolve-se portanto uma relação de evitação e dependência.

Em face do contexto de pobreza da RMSP e dos locais de origem dos favelados, mudar-se para Paraisópolis constitui uma estratégia de melhoria social para os muito pobres.

A pesquisa constatou ali a existência de uma significativa "estrutura de oportunidades", na qual estão consolidadas inúmeras redes de relações sociais.

Em Paraisópolis essas redes são estruturadas a partir de vínculos societários primários (entre parentes, conterrâneos, vizinhos), participação em associações civis (basicamente em torno da União de Moradores) e práticas associativas religiosas (também permeadas pelas redes familiares, mais especificamente no caso evangéli-co).

A rede associativa religiosa

O survey realizado em Paraisópolis revelou que cerca de 70% dos moradores que participam de alguma associação o fazem junto a entida-des religiosas.

Mostrou ainda que ali predominam dois grandes grupos religiosos: 75,6% de católicos e 19,4% de evangélicos, o que corresponde a 95% da população da favela13.

Os dados georrefenciados no mapa da página a seguir mostram que na cidade de São Paulo os templos da denominação evangélica Assembléia de Deus, além de mais numerosos, são mais enraizados entre os estratos pobres do que as paróquias católicas. Tal predominância é com efeito constatada em Paraisópolis, onde há forte e diversificada presença de denominações evangélicas, com oito templos da Assembléia de Deus, sete da Deus é Amor, quatro da Igreja Presbiteriana e sete templos de outras denominações14. Já a Igreja Católica é ali representada por apenas uma paróquia, o que na verdade condiz com a sua estrutura de subdivisão espacial menos descentralizada.

Enquanto os moradores de Paraisópolis que se declaram católicos apresentam baixa freqüência à igreja, os evangélicos — tanto pentecostais como protestantes históricos — são extremamente militantes na religião: cerca de 70% afirmam freqüentar os serviços religiosos uma ou mais vezes por semana, proporção que sobe para 81,5% se considerarmos a freqüência de no mínimo uma vez por mês. A interação propiciada por essas reuniões resulta em formação de alianças matrimoniais, laços de solidariedade eco-nômica e forte capacidade de mobilização interna.

Os templos evangélicos abrigam cada vez mais uma densa rede de relações que atrai pessoas em situação de vulnerabilidade, como predominantemente ocorre entre os migrantes nordestinos em São Paulo.

Sabe-se que os nordestinos são predominantemen-te católicos no Nordeste e que no Sudeste tendem a ser evangélicos.

A migração influi na mudança religiosa

As redes evangélicas trabalham em favor da valorização da pessoa e das relações pessoais, gerando aumento de auto-estima e impulso empreen-dedor no indivíduo, mas também fomentam a ajuda mútua por meio de laços de confiança e fidelidade. Nos templos há circuitos de trocas que envolvem dinheiro, alimentos, utensílios, informações, recomendações de trabalho etc. À diferença dos programas sociais promovidos de fora da favela por católicos e kardecistas, trata-se de uma reciprocidade entre os próprios fiéis moradores da favela (pastores inclusive) que se pauta pelo princípio bíblico de ajudar primeiro os "irmãos na fé" (os freqüentadores do mesmo templo). Estes se casam majoritariamente entre si; muitos parentes se evangelizam e se tornam assim "irmãos de fé"; a sucessão religiosa nos templos também passa costumeiramente pela rede de parentesco. Assim, sobrepõem-se no âmbito evangélico as redes familiares e religiosas, bem como as de vizinhança e de conterrâneos.

Na mesma medida em que essas redes incluem, sobretudo pobres e migrantes, são também excludentes. Apesar de ser aberto e voltado à atração de pessoas, o meio evangélico é parcialmente restritivo na formação de laços sociais. Os fiéis devem preferencialmente procurar seus cônjuges no seio da mesma denominação ou, no máximo, dentro do espectro evangélico. Em Paraisópolis eles poucos participam de outras instâncias associativas, como a União de Moradores e as associações político-partidá-rias e de lazer. O uso do tempo livre é dedicado à freqüência aos templos — na verdade, as próprias denominações suprem seus fiéis com lazer por meio da formação de grupos de música, teatro, esportes etc.

Desde sua entrada na atividade política, na Constituinte de 1986-88, os evangélicos vêm pleiteando sua habilitação como agentes redistribui-dores de programas governamentais para a população carente. O recente assistencialismo evangélico, em particular o dos neopentecostais, funciona em favor do fortalecimento da rede religiosa: ora a distribuição dos progra-mas atende preferencialmente os evangélicos18, ora os benefícios são distri-buídos por religiosos-políticos para gerar mais fiéis-eleitores.

As redes evangélicas são também fechadas quando em oposição a circuitos de reciprocidade negativa como o crime e o narcotráfico.

Nesses contextos de violência, as redes reli-giosas criaram possibilidades de interrupção das trajetórias de risco dos jovens.

os evangélicos vêem a atividade política como corruptora, e por isso são menos tolerantes quanto à participação nas associações.

No que diz respeito ao tráfico, seus esforços se voltam mais para a conversão dos criminosos do que para os problemas sociais dos locais onde o crime se desenvolve e perpetua21. A ação dos evangélicos (participem ou não em outras associações) é acentuadamente voltada para a regeneração individual, com pouca ênfase em questões coletivas: a capaci-dade mobilizadora evangélica está muito mais direcionada para a conquista das almas.

Em face dos evangélicos, as ações de católicos e kardecistas são mais universalistas, na medida em que para eles o pertencimento a uma ou outra religião não é filtro de seleção na dis-tribuição de benefícios; a atividade católica é menos proselitista e mais voltada para uma ação social que incida nas causas sociais da pobreza, enquanto a filantropia kardecista tem um perfil mais assistencialista, sem enfatizar as transformações sociais; já os evangélicos praticam um assis-tencialismo — tímido em algumas denominações e sujeito a muitos inte-resses em outras — cuja orientação geral é de que as dificuldades materiais decorrem das ordens moral e espiritual, mas cujos efeitos indiretos (a solidariedade interna) constituem uma rede de relativa proteção social.

Considerações finais

Paraisópolis é um local privilegiado em relação a outras favelas e áreas pobres de São Paulo: ser pobre ali é melhor do que ser pobre em uma periferia geograficamente distante e com poucos vínculos sociais. Constata-se assim a diversidade da configuração da pobre-za no espaço metropolitano, que varia conforme o maior ou menor acesso dos indivíduos a uma "estrutura de oportunidades" e o "capital social" pre-sente em cada contexto.

A estrutura das relações sociais modela a "estrutura de oportunidades" dos indivíduos, na medida em que o capital social reside no vínculo entre as pessoas e não nas próprias pessoas.

Nenhum comentário: