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20.6.17

MESQUITA, Wania. Os pentecostais e a vida em favela no Rio de Janeiro: a batalha espiritual na ordem violenta na periferia de Campos dos Goytacazes. Estudos de religião, v. 23, n. 37, p. 89-103, 2009.

Introdução

O estudo se baseia em uma pesquisa em andamento1 com popu-lações moradoras de favelas da cidade de Campos dos Goytacazes do Estado do Rio de Janeiro2, constituída, em sua maioria, por pessoas pobres, que dispõem de acesso precário à cidade e à cidadania e se encontram cotidianamente submetidas ao poder do tráfico de drogas e à violência policial em seus locais de moradia.

Como a insegurança e o medo marcam a construção dessa imagem do perigo representada pelos mora-dores de favela, a percepção social sobre estes tende a criminalizá-los e a impor-lhes uma maior segregação socioespacial, redefinindo frequen-temente as políticas públicas orientadas para esses territórios e seus moradores.

Buscou-se perceber as formas como a variável religião incide na sociabilidade local3. Visamos à identificação e compreensão de que os pentecostais dispõem de um “contrapoder” em torno das ações dos traficantes e policiais, principalmente no que concerne às suas atitudes/ações violentas (SILVA e LEITE, 2007).

A favela “comunidade” e a irmandade de fé

Em algumas situações nos deparamos com o questionamen-to de Birman (2008): a “Favela é comunidade?”. A autora destaca que o termo “comunidade” é frequentemente usado, inclusive por agentes do Estado. O termo “comunidade” frequentemente gera uma alta identificação feita aos moradores de favela, um contrapon-to aos não moradores, que acaba segregando os “favelados”. Esse termo é utilizado como forma de argumentar a favor dos jovens moradores da favela, garantindo a eles “boas qualidades morais que estes teriam, passíveis de serem comprovadas pelos seus mo-dos de vida e pela cultura que possuem.” (BIRMAN, 2008). Desta forma, o termo “favelado” tenta ser evitado tanto pelos moradores quanto pelas agências e associações, e o próprio governo, já que “favelado” é uma das designações mais segregadoras usadas nas cidades. O termo “comunidade” é visto então como algo positivo, onde emanam valores morais.

Entretanto este termo não deixa de ter um caráter segregador, ele pode ser usado tanto positivamente quanto negativamente, pode se referir a um lugar de violência, quanto a um lugar de tradição. O que era para ser um termo positivo, “comunidade” contrapondo “favela”, acaba reiterando as diferenças entre os bairros da cidade das ditas favelas, comunidades, periferias, apesar do intuito dos que a empregam (BIRMAN, 2008).

Apesar da diversidade denominacional evangélica nas favelas, é possível “afirmar que as redes evangélicas trabalham em favor da valorização da pessoa e das relações pessoais gerando ajuda mútua com o estabelecimento de laços de confiança, além do aumento da autoestima e do impulso empreendedor” (ALMEIDA, 2006: 118).


Estas relações estabelecem circulação de benefícios materiais, afetivos e cívicos como ajuda mútua, empréstimos de dinheiro, cuidado dos filhos de mães que trabalham fora de casa, informações sobre emprego, solidariedade em situações de doença etc.

Veja-se isso nos seguintes depoimentos de seguidores pentecostais:

A igreja já tinha bastante tempo aqui na comunidade, mas, quando cheguei à igreja tinha vergonha de dizer que não tinha nada para comer em casa, mas eles foram lá em casa e levaram uma sacola de compras. Foi como dia de festa, eu chorava porque os meus filhos só comiam na escola, a noite eu não tinha nada para dar para eles. Depois que conheci Jesus tudo mudou, aquele dia foi uma benção. (Moradora, 31 anos, vendedora de produtos cosméticos, membro da igreja há 4 anos).

Mesmo quando era descrente meus filhos iam a igreja porque era do lado da minha casa, sabia que ali eles podiam ficar, achava que era melhor do que ficar vendo coisas erradas, os meninos com armas e outras coisas. Aqui na comunidade tudo pode acontecer, a gente sai e ora para que tudo fique bem. (Moradora, 42 anos, empregada do-méstica, membro há 5 anos).

Segundo os moradores, as igrejas evangélicas se expandiram nas favelas nas últimas décadas, com especial destaque as denominações de pequeno porte, muitas vezes com ocupações de antigos espaços de moradias ou uso de um dos cômodos da casa para realização de cultos e outras atividades religiosas. Identificamos que são estas denominações as que muitas vezes têm o tempo de permanência encurtado seja por dificuldade de arregimentar novos fiéis em suas fileiras frente à diversidade de outras igrejas na localidade ou mesmo por não conseguir arcar com o valor do aluguel do espaço destinado as suas atividades. Ao contrário destas denominações observamos que a Igreja Assembleia de Deus se mostra enraizada nas favelas, busca de modo geral reproduzir o mesmo padrão arquitetônico de suas fachadas e tem entre os seus dirigentes moradores das favelas.

Na condição de estabelecidos, os “evangélicos” fundariam sua distinção em rela-ção aos grupos de evangelização de outras denominações externas, como a Igreja Universal do Reino de Deus. No caso da Assembleia de Deus a igreja se firma a partir do princípio de conhecimento local, lançando mão do maior tempo de residência e relações esta-belecidas no lugar enquanto fator distintivo em relação aos “outros recém-chegados”:

O pastor Getúlio é pastor presidente, mas o que fica aqui com a gente é o pastor Julio. A relação é boa, porque eu venho da Universal, e lá eu não tinha a oportunidade de conversar com o pastor. Já o pastor Getúlio vira e mexe ele está aqui, a gente pode conversar, faz reu-nião. Isso pra mim é muito bom, saber o que o membro tá sentindo. (Moradora, 27 anos, dona de casa, membro há 5 anos).

ao contrário dos protestantes históricos, que valorizavam o uso da escrita e diferentemente de outros grupos pentecostais que realizaram proselitismo através do contato pessoal e, posteriormente, do rádio, a Igreja Universal investiu fortemente em diversos veículos de comunicação para atingir as massas. Enquanto as diversas denominações pentecostais mantinham visibilidade social restrita, pois se limitavam a propor novas práticas dentro dos seus templos nas periferias e utilizavam estratégias proselitistas de curto alcance, a Igreja Universal construía grandes templos nas principais capitais do país, veiculava programas de televisão e rádio e investia em seu jornal com distribuição para além de seus adeptos. Dessa forma, a Universal passou a estabele-cer contato com novos públicos, dar sustento aos já convertidos e buscar inserção e legitimidade no espaço público (BIRMAN, 2006).

A ofensiva pentecostal na ordem violenta

Entre os pentecostais, a valorização da ideia de proteção e unção divina, estabelece traços diferenciados que os singularizam e produzem uma autoimagem particular que incube o fiel de cora-gem para enfrentar situações adversas, muitas vezes associadas à influência do mal, levando-o a reafirmar suas crenças e seus valores. Ao relacionamento com o Espírito Santo, aos benefícios que esta experiência traz para a vida diária: os dons miraculosos, as curas, a direção de Deus nas escolhas pessoais e profissionais. Algumas pesquisas têm sinalizado a importância desta variável como fator simbolicamente relevante, que contribui não apenas no sentido da orientação de condutas para os seus integrantes (WEBER, 1996), mas que também surge como uma forma de inserção social, capaz de gerar expectativas de melhorias e superação das condições de vida (NUNES, 2007). Destaca-se, inclusive, sua interferência na resolução de conflitos em favelas, tornando-se um “recurso de contrapoder” (SILVA; LEITE, 2007), que possibilita bloquear as explosões de vio-lência, característica de grande parte da conduta dos traficantes.

O “posicionamento” de “escolhidos - ungidos por Deus” encoraja-os a se lançarem nas situações com os traficantes as quais se acreditam estarem investidas de um poder sobrenatural, neste sentido é uma ação humanizadora, pois, ao mesmo tempo percebem o mal como ação de Satanás e acreditam na capacidade do indivíduo que pela conversão pode sobrepujar as forças do mal que agem contra o mal.

O que esses pentecostais reforçam são as identificações baseadas por conjunto de experiências sociais e reli-giosas que os coloca em distinção moral com relação aqueles que estão no tráfico.

Ainda que muitos traficantes venham a resistir a uma adesão que implique abandono de suas atividades ilícitas, acredita-se que a transformação da personalidade (self) possa acontecer a qualquer momento durante os cultos ou que seja alcançada progressivamente, pois a meta é a conversão. Por isto, há uma tolerância à presença dos traficantes nos cultos pela expectativa da libertação na vida deles.

Tal como destacou Teixeira (2008), ainda que os pentecostais demonizem as atividades do tráfico, gozam de respeito e prestígio em relação aos traficantes. Trata-se de uma posição conquistada pela submissão a Deus, que é quem protege, separa, aparta do mal (MARIZ, 1994).

Na sociabilidade local, a igreja é identificada como uma família que guarda, para além da inserção nas redes de assistência, uma relação de filiação dos seus membros onde encontram uma referência moral. Referência esta cada vez mais débil na família e no Estado.

Conforme análises de Teixeira “a ação em relação ao tráfico diz respeito à conversão dos indi víduos – e neste sentido ela é uma ação que prioriza soluções individuais” (TEIXEIRA, 2008:196). Os traficantes são considerados vítimas do demônio, fonte do mal, responsável por todos os pecados e sofri-mentos da humanidade. Para estes pentecostais, o mal do tráfico em geral não tem origem nos seres humanos.

A guisa de considerações finais

Os pentecostais geralmente são reconhecidos pela ênfase em atributos morais. Nessa perspectiva, ser definido como “crente” e “evangélico” é ser incluído em uma categoria social que possui atributos morais.

Na inscrição das igrejas no cotidiano das favelas, os pentecos-tais contam cada vez mais com a possibilidade de acionar recursos simbólicos, valores, categorias e rituais religiosos através do qual tentam evitar o exercício da violência contra os demais moradores.

A religião pode “organizar a vida” nas condições de enorme precariedade ma-terial, de desagregação moral e de vulnerabilidade permanente.

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