Páginas

20.6.17

MAFRA, Clara. O problema da formação do" cinturão pentecostal" em uma metrópole da América do Sul. Interseções-revista de estudos interdisciplinares, v. 13, n. 1, p. 136-153, 2011.

Resumo 

Boa parte das metrópoles latino-americanas entrou no século XXI com uma configuração urbana peculiar, o chamado “cinturão pentecostal”: em torno de um núcleo urbano antigo, com infraestrutura consolidada e uma maioria de residentes católicos, formou-se um cinturão periférico, de colonização recente, infraestrutura precária e alta presença de pentecostais. o que teria estabelecido o vínculo entre a transformação da paisagem urbana e a conversão pentecostal? A partir da etnografia realizada na região metropolitana do Rio de Janeiro, argumento que a nova metrópole, ao distanciar territorialmente ricos e pobres, fez ruir o modelo tradicional de relação entre os não iguais. no modelo relacional hierárquico tradicional, os pobres resolvem boa parte dos seus problemas pedindo “favor” às pessoas “conhecidas” e com uma “situação melhorada”, num sistema de prestação e contraprestação de favores que azeita as relações interclasse em uma sociedade desigual e com integração contraditória. com o distanciamento territorial entre ricos e pobres, as oportunidades de doação e ganho de “favor” se tornaram raras e o catolicismo, que está na base do sistema, entrou em colapso. o pentecostalismo passou a se apresentar como uma alternativa cultural plausível para as populações pobres nas periferias urbanas quando as alternativas culturais conhecidas, boa parte delas oferecidas pelo catolicismo, tornaram-se sinônimo de fracasso.

Paul Freston chamou de problema da formação do “cinturão pentecostal” nas metrópoles latino-americanas.

Os especialistas da religião, ao debaterem sobre o tema do avanço do pentecostalismo no maior país católico do mundo, reconhecem que, a partir da década de 1980, o crescimento evangélico se revelou vertiginoso (ORO, 1996; PRANDI & PIERUCCI 1996; FERNANDES et al. 1998; CAMPOS, 2008)

Ao justapor essas informações com outra, produzida por Cesar Jacob e equipe, sobre o mapeamento da distribuição territorial das religiões nas principais metrópoles brasileiras, encontramos uma pista de investigação instigante. Um dos principais resultados do mapeamento foi a constatação de que as metrópoles brasileiras têm sido ocupadas conforme um padrão recorrente. Há “uma presença mais acentuada dos católicos nos bairros centrais ou naqueles em que se verificam melhores níveis de renda e de escolaridade dos seus habitantes”. Em contraposição, os maiores índices de pentecostais, sem exceção, estão nas periferias metropolitanas.

De fato, a concentração dos pentecostais nos bairros periféricos, com os piores níveis de condições de vida, se apresenta como outro aspecto que se repete em todas as capitais estudadas. A forte presença de fiéis desse grupo religioso nas periferias tem levado, inclusive, à formação de verdadeiros anéis pentecostais em torno das áreas centrais das capitais. (JACOB, 2006: 237).

Isso significa que, quando as metrópoles brasileiras deixaram de receber migrantes de fora, os seus habitantes tenderam a acomodar suas diferenças e desigualdades em territórios virtualmente distintos. Dessa afirmação ainda um tanto vaga e imperfeita, segue-se a pergunta: afinal de contas, o que ligaria um processo de conversão religiosa de massa com um padrão de habitação nas metrópoles?

Paula, minha amiga crente, moradora da Magé e faxineira em uma casa de classe média de Santa Teresa, ligou. Depois de um preâmbulo, Paula, com a voz entristecida, contou: “hoje a minha patroa me serviu feijão sem carne”.

O costume naquela casa é que, enquanto Paula faz a faxina, a patroa vai para a cozinha e prepara o almoço. Feito o almoço, primeiro a família almoça, em seguida, a patroa deixa o prato da empregada servido sobre a mesa. Naquela terça-feira, o prato que estava na mesa trazia feijão e arroz. Paula comeu e, quando foi pegar água na geladeira, viu uma tigela com as carnes do feijão. A patroa tirou as carnes do feijão para servir o prato da faxineira. Sem muita demora, Paula deduziu o efeito simbólico implícito no gesto: “ela [a patroa] quer que eu me sinta inferior. Mas eu não sou inferior. Hoje à noite, na minha casa, vou me ajoelhar e clamar a Deus. Vou pedir por mim, para que eu suporte essa tribulação, e pela patroa, porque ela não sabe o que faz”.

O que me pareceu destacável na situação vivida por Paula foi o modo como a situação foi compreendida e encaminhada. Em primeiro lugar, se Paula estivesse compartilhando os referenciais tradicionais, digamos, das relações hierárquicas típicas no interior do Brasil, ela sequer compreenderia a situação como de humilhação. Em contextos hierárquicos tradicionais, marcados pelo paternalismo, parte-se do princípio de que os homens são desiguais e que, portanto, alguns nascem para patrão, outros para empregado; alguns nascem para mandar, outros para obedecer; alguns para ser padrinho, outros para pedir apadrinhamento; alguns para comer feijão com carne; outros, feijão sem carne. O humilhante, nesse contexto, é não conseguir cumprir adequadamente um desses papéis sociais. Nessa gramática social, não é raro que um empregado enfrente outro com violência, em defesa da honra do patrão.

A posição de Paula não é identificável dentro desse padrão interclasse hierárquico tradicional. Ela reconhece perfeitamente bem que há uma intenção de humilhação na situação

Paula também não responde imediatamente, exigindo uma retificação de posição.

Ela não atua tendo como horizonte uma carta de direitos civis, sociais e individuais, nem se dispõe a disputar pressupostos da relação, ou de romper um contrato cujos termos não lhe agradam.

– “A patroa quer que eu me sinta inferior. Mas eu não sou (...) Vou orar por ela, que não sabe o que faz”.

Meu argumento é que esse pequeno evento do cotidiano é especial porque explicita uma das pontas da mudança macrossocial que estamos vivendo: o distanciamento no vínculo entre subordinado-superior na relação interclasse faz analogia com o distanciamento territorial e com a nova configuração da metrópole, com seus espaços segmentados e exclusivos.

Paula mora no bairro da Lagoa, em Magé, município da região metropolitana do Rio de Janeiro.

O modelo é o da sociedade relacional (DA MATTA, 1980; DUARTE, 1986) que, na falta ou complementarmente aos instrumentos formais de seleção e controle das instituições públicas, são os “amigos” que, em posições sociais discretamente superiores, indicam, abrem caminho, mandam recado, falam com o conhecido. Com essa mediação personalizada, os mais pobres têm acesso à resolução de seus problemas cotidianos. Vaga na creche municipal, ambulância para o doente, emprego na fábrica têxtil, indicação de trabalho na rede municipal. Sem o favor, a máquina institucional não funciona, não atende, não tem recursos, não está disponível, não reconhece a demanda (KUSCHNIR, 2000).

O modelo relacional estabelece continuidade com o clientelismo político

A classe média local se tornou menos disponível.

Assim, aquilo que parecia um problema apenas de reorganização territorial envolve uma enorme reorganização social, com a evasão das camadas médias conjugada à ampliação das camadas mais pobres nas periferias da periferia da região, o que acaba por se refletir na polarização das distâncias sociais.

Como resultado, ocorre uma rarefação nos encontros interclasse e a impossibilidade da recriação dos “pactos de mediação” nos antigos termos.

Um dos resultados mais perversos da intensificação das distâncias sociais, comentado frequentemente pelos moradores da Lagoa, é a perda de capacidade de educação da nova geração.

com a redução dos vínculos da classe média com o entorno, e com os grupos de tráfico de drogas claramente interessados em reforçar as cumplicidades da população local com seus negócios, os pais e mães de famílias das periferias e das favelas passam a viver um estranho paradoxo: o custo de se afirmar como “trabalhador” é a entrega dos filhos ao “crime”.

Esse impasse é muito comentado pelos crentes da Lagoa: para eles, uma das grandes qualidades da igreja é que seus filhos estão sob cuidados dos irmãos, todos os dias da semana, para a realização de atividades variadas: aulas de teatro, de música, nos retiros, nos passeios.

Com a segregação socioespacial, condição corriqueira da pobreza urbana metropolitana, a busca de respostas nas camadas imediatamente superiores para os grandes e pequenos problemas cotidianos tende a se revelar ilusória.

Em síntese, o que estou afirmando é que a ruptura pentecostal responde à mensagem contraditória enviada pela própria metrópole aos habitantes das periferias, ao insistir em um caminho de desinvestimento completo no modelo relacional hierárquico e, com isto, de renovação do cristianismo. Nesse contexto, o catolicismo tradicional e religiões afro-brasileiras, por seu imbricamento com o modelo relacional hierárquico, são incapazes de produzir uma resposta social consistente.

Nesse sentido, estou concordando com que o primeiro movimento da recusa da religião tradicional e de aproximação em direção ao novo sistema simbólico necessariamente ocorre dentro de uma gramática social conhecida e com um fim pragmático.

o pentecostalismo coloca em destaque o valor do indivíduo, algo que, muitas vezes, fere as percepções passadas dos conversos, provenientes que são de um catolicismo popular ou de uma religiosidade afro-brasileira.

Se o Espírito não se confunde com a pessoa, não é raro que os crentes da Lagoa distingam entre as pessoas “ungidas” as “pouco familiarizadas com o Espírito”.

Se todos podem receber o Espírito, algumas pessoas estão mais familiarizadas com o sagrado, portanto, são mais capazes de abrir mão das regras e normas mais explícitas para indicar, com delicadeza, cuidado e destreza, o próximo movimento no encaminhamento da ação.

Essa familiaridade com o Espírito é que faz com que os líderes religiosos sejam reconhecidos como pessoas com capacidade de circulação social ampliada, algo impróprio para o crente comum.

tal como nos cultos afro-brasileiros, nessas cerimônias os crentes contam com a manifestação direta do sagrado, algo que garante respostas coletivas e individuais para aflições vividas no presente. Porque estão todos juntos, Deus deve escutar, e o Espírito Santo, usando um(a) irmão/irmã como instrumento, pode responder. Neste caso, o Deus é distante, entretanto, a comunicação pode se dar de modo imediato na possessão. Entretanto, como esses rituais envolvem a presença de uma força sagrada muito poderosa, eles devem ocorrer em um tempo e espaço restritos.

Porém, no espaço público, o imbricamento entre individualismo e relacionalismo se torna muito problemático. Uma concepção completa de individualidade carrega consigo a ideia de um centro de subjetividade autossuficiente, capaz de expressar opiniões, vontade, racionalidade, e por isto mesmo com liberdade de ir e vir. Esse é o tipo ideal do cidadão burguês, cosmopolita e livre. Na sua experimentação em torno do individualismo, os crentes da Lagoa nunca foram tão longe.

Em síntese, o que temos é uma total reorganização da interação e comunicação na metrópole, pois para os pentecostais o acesso à alteridade deve contar, total ou parcialmente, com a mediação do Espírito Santo. Isto provoca uma enorme valorização das relações intraclasse, na intensificação das relações e comunicações nos espaços congregacionais, que, em geral, estão na vizinhança e são abertos e receptivos ao Espírito Santo. Ao mesmo tempo, abandona-se o investimento nas interações pontuais interclasse, típicas do favor e relações de clientela patrão/empregado, pois, muito claramente, os habitantes da Zona Sul tendem a rejeitar essa nova religiosidade. A surdez da classe-média e elite da cidade à voz do Espírito Santo leva os pentecostais a apostarem em uma mediação humana qualificada, a dos irmãos remidos pelo Espírito, para falar com essa alteridade detentora de um poder social maior.

Vale dizer: Paula não abre mão de uma busca, ainda que ampla, de justiça. Isto nos conduz ao terceiro ponto: ao fazer de Deus o grande mediador, Paula também está delegando aos homens e mulheres ungidos uma parcela de responsabilidade na produção da resposta. São eles que, utilizando os canais institucionais abertos pela cidade burguesa, darão continuidade a uma comunicação entre “ouvintes do Espírito Santo” e “não ouvintes”.

O outro lado da moeda é a aversão que parte significativa da classe média e elite da Zona Sul tem com o cristianismo pentecostal, o qual, além de ser “místico e miraculoso”, como tantas outras religiosidades ícones do popular brasileiro, ensina o subordinado a julgar moralmente (o ato) do superior.

Nenhum comentário: