Dossel sagrado, pluralismo, secularização e
privatização
Para Berger (1985, p. 147), “durante a maior parte da história humana, os estabelecimentos religiosos existiram como monopólios na sociedade”. Na Europa medieval, o catolicismo formava um dossel sagrado que englobava e integrava a sociedade, dominava homogeneamente as consciências individuais e impunha a todos os seus ditames morais.
A religião exercia, então, função nomizadora,
protegendo os indivíduos da anomia, do caos ou de experiências marginais,
noções caras à fenomenologia. As funções cognitiva, moral, integradora e
legitimadora da religião monopólica, portanto, constituem categorias de análise
centrais, a partir das quais o autor examina, compara e avalia as
transformações religiosas na modernidade.
Na esteira de Durkheim, Berger considera que “a
mais importante função da sociedade é a nomização”, que a ordem social é a mais
básica das necessidades humanas e que a anomia – situação em que o diálogo que
sustenta e legitima o mundo esmorece, o faz vacilar e desorienta o indivíduo –
constitui o maior perigo (ibid., p. 34-35).
Concebe também a religião como o “instrumento mais
amplo e efetivo de legitimação da sociedade e de suas instituições” (ibid., p.
45).
Quanto à secularização, Berger (1985, p. 118) a
define como o “processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são
subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos”.
No plano estrutural, à medida que as sociedades se
diferenciaram, várias instituições se separaram e se emanciparam da religião,
sendo que a área econômica foi o “palco original da secularização”, seguida
pelo estado (ibid., p. 141). A emancipação estatal dos poderes hierocráticos
teria, ao mesmo tempo, posto fim ao monopólio religioso e tornado o Estado
“guardião imparcial da ordem.
A implementação dessa política liberal propiciou a
liberdade e a tolerância religiosas e a emergência do pluralismo religioso.
Resultado: modernização, secularização e pluralismo se expandem pelo mundo por
meio de sua ocidentalização (ibid., p. 121).
A Reforma Protestante, ao cindir o cristianismo em
distintas organizações na Europa Ocidental, multiplicou o “número de estruturas
de plausibilidade concorrentes”
O pluralismo gerou “crise de credibilidade” e
“amplo colapso da plausibilidade” das definições religiosas (ibid., p. 139).
Assim, teve efeito cognitivo corrosivo.
A privatização da religião também se deu com sua
perda de espaço e relevância na esfera pública, sendo deslocada para outro
“lugar institucional”: a esfera da vida privada, onde sobreviveria atendendo a
necessidades morais e terapêuticas (ibid., p. 145, 158).
A religião deixou, então, de ser um dever ou uma
herança familiar tradicional partilhada por todos (ibid., p. 149). Adesão e
pertença religiosas tornaram-se uma questão de livre escolha individual.
Suprimido o caráter compulsório da adesão
religiosa, o pluralismo introduziu “a dinâmica da preferência do consumidor na
esfera religiosa” e sujeitou os conteúdos religiosos “à ‘moda'” (ibid., p. 156,
162).
Em suma: Berger considera que, fragmentada em
múltiplas estruturas de plausibilidade, a religião (no plural) perdeu a
capacidade de impor sua moralidade ao conjunto da sociedade.
Críticas à teoria da secularização de Berger
Em Social theory and religion, James Beckford (2003) critica a tese de Berger sobre o monopólio e o pluralismo religioso, criticando a omissão de todo o poder e violência empregados, incluindo perseguição e extermínio, para manter o monopólio da verdade religiosa (ibid., p. 83).
No plano cognitivo, Beckford questiona por que
razão, afinal, a remoção do caráter compulsório do monopólio e da verdade
religiosa e a percepção de diversidade religiosa deveriam levar a uma crise de
credibilidade da religião (ibid., p. 84). Avalia que a mera existência de uma
variedade de expressões religiosas e de noções de verdade não debilita a fé
religiosa em si.
Em Public religions in the modern world, Casanova
(1994) rebate a teoria da privatização do religioso, ressaltando a participação
política de grupos religiosos na Espanha, na Polônia, no Brasil e nos Estados
Unidos na segunda metade do século passado.
A seu ver, a diferenciação funcional entre as
esferas da vida social (estatal, econômica, científica, educacional, estética,
religiosa etc.) não constitui barreira intransponível para a participação religiosa
na arena pública (ibid.). Até porque o lobby religioso costuma dispor de
liberdade para a atuação pública nos regimes democráticos.
A partir dos anos 1980, Stark e Bainbridge (2008) e
seus discípulos se tornaram os principais adversários da teoria da
secularização de Berger, defendendo que pluralismo e concorrência contribuem
para ampliar os níveis de compromisso e de participação religiosos da
população.
Para eles, “a secularização produz uma era de
reavivamento religioso e experimentação” (2008, p. 393).
Organizações religiosas que se secularizaram e
cujas lideranças se elitizaram, abandonaram a magia: tendem a perder poder e
adeptos e dar “às seitas um novo mercado para explorar” (ibid., p. 389).
Mea culpa e revisão teórica de Berger
Em 1999, Berger publicou artigo intitulado A dessecularização do mundo: uma visão global.
Renegou a tese de que a modernidade leva
necessariamente a um declínio da religião na sociedade e na mentalidade ou, nos
termos de Grace Davie (2007, p. 48), de que haja uma “necessária incompatibilidade
entre religião per se e modernidade”.
Berger observa que os grupos religiosos que mais se
dedicaram a se adaptar à secularização declinaram, enquanto que grupos
conservadores, fundamentalistas, ortodoxos, tradicionalistas e saturados de
“sobrenaturalismo reacionário” cresceram por toda a parte, o que, a seu ver,
falsifica a “ideia de que modernização e secularização são fenômenos
aparentados” (ibid., p. 11-13).
Liderada por pentecostais e islâmicos, a
ressurgência religiosa encerra “feição fortemente popular”, de “protesto e
resistência contra uma elite secular” e se mostra atraente por prometer
certezas num contexto em que a modernidade as solapa, gerando desconforto
intolerável para muitos (ibid., p. 17).
Teoria da identidade subcultural da persistência e da força religiosas
Já em American evangelicalism: tmbattled and thriving, Christian Smith (1998, p. 89) opõe-se à ideia de que o pluralismo cultural, a diferenciação social e institucional, a diversidade religiosa e a modernização fragilizam a religião.
Ao examinar a expansão dos evangelicals
norte-americanos e a relação que estabelecem com a cultura secular, defende que
uma religião conservadora (nos planos moral e teológico) pode prosperar numa
sociedade moderna, pluralista e dotada de poderosos grupos, ideologias e forças
seculares.
Em vez de acarretar crises de plausibilidade, o
pluralismo tende a beneficiar grupos religiosos que se dispõem a confrontar a
diversidade, a competir avidamente com outros grupos religiosos e seculares e,
em função disso, a construir uma identidade subcultural relacional, distintiva
e combativa. Identidade a partir da qual procuram assegurar a coesão, o
compromisso e o engajamento de seus membros, visibilizar suas causas e
enfrentar o que compreendem, genericamente, como decadência e afronta moral e
ameaças à sua religião, à sua liberdade e a seus valores.
Nessa perspectiva, o êxito de um grupo religioso,
numa sociedade culturalmente pluralista, depende de sua capacidade de prover
identidade coletiva distintiva para orientar a conduta moral, de conferir
sentido à ação e à existência, de oferecer certezas e verdades em meio a um
cenário de incerteza e risco, de formar sólido sentimento coletivo de pertença
e fortes laços de lealdade e de assegurar o engajamento militante de seus
adeptos em atividades sociais, religiosas e políticas em torno de determinadas
causas comuns (ibid., p. 120-153). Por meio disso, constroem distinções,
fronteiras e tensões em relação a grupos, moralidades e valores externos.
Os evangelicals, para Smith, diferem dos
fundamentalistas protestantes norte-americanos porque, em vez de optarem pelo
isolamento ou pela separação radical do mundo para assegurar a salvação e
defender-se da mundanidade, procuram influenciar e intervir diretamente nas
diferentes esferas da vida social e na arena pública, a fim de transformar a
sociedade mediante suas cruzadas morais e seu engajamento religioso e político
(ibid., p. 63-66).
Para tanto, identificam agentes e dispositivos
seculares que não endossam ou contrariam seus valores, interesses e estilos de
vida como risco, ameaça, adversários e inimigos, para, em seguida, enfrentá-los
e transformá-los em objeto de proselitismo e/ou de combate.
Considerações finais
À guisa de conclusão, observa-se que, nas últimas décadas, o pluralismo cultural e religioso deixou de ser interpretado como responsável, necessariamente, pelo enfraquecimento da religião. A relação entre modernização e secularização foi reavaliada e tida como mais complexa do que se pensava. Atenta aos paradoxos da religiosidade em sociedades de alta modernidade, Danièle Hervieu-Léger (2006), por exemplo, observa que quanto maiores a fluidez e a circulação das crenças, o trânsito e a liberdade dos crentes individuais, maior sua necessidade de “nichos comunitários” para compartilhar e assegurar um mínimo de certezas e ancorar as identidades pessoais.
Grupos evangélicos conservadores permanecerão
engajados na militância em defesa de seus interesses e valores, no combate a
seus adversários e na luta para conservar elementos de uma ordem moral e social
que creem estar sendo, malignamente, atacados e destruídos por forças
seculares.
Nenhum comentário:
Postar um comentário