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3.7.17

DA SILVA, Flávio Honório. Anomia em Dostoiévski: negação de referências. TEOLITERARIA-Revista de Literaturas e Teologias ISSN 2236-9937, v. 1, n. 2, p. 176-187, 2011.

A princípio, notamos que a anomia é um estado de falta de objetivos e perda de identidade, provocado pelas intensas transformações ocorrentes no mundo, exatamente, quando não há correspondência entre as regras morais estabelecidas e as condições so-ciais em que se encontra o indivíduo.

A obra de Dostoiévski nos mostra que a modernidade fomentou tal situação, na medida em que o passar do tempo provoca novos valores, abandona os antigos e deixa à deriva pessoas que se afundam num estado anômico

Ao abordarmos a anomia no contexto social e religioso, queremos identificar aqui o fato de que o homem, no contato direto com um mun-do em constante transformação, de valores e referências, acaba por se encontrar num estado de perene desorganização pessoal o que acarreta desequilíbrio em sua relação e participação como cidadão, e como tal lhe é exigido corresponder a rígidas exigências, atender a normativas e leis a fim de melhor corresponder e obedecê-las através de instrumentos institu-cionalizados do circuito social.

Forte crítica ao determinismo e a resposta que é devida à sociedade no que concerne as suas responsabilidades e atitudes mediante códigos morais nas diferentes relações humanas.

Esse personagem enfatiza o antagonismo, vivido ainda hoje, entre a ânsia de viver com alegria, felicidade e prazer e as exigências que nos são impostas para controlar nossos desejos mais íntimos. Isto, por sua vez, é visto de um modo que corrobora a permanência no quadro de moralidade dos costumes ou então, para um estado de anomia, enquanto negação de parâmetros moralizantes de algo externo ao indivíduo.

Assim, o homem acaba por entrar em choque com sua consciência e o que advém do externo, da estrutura “natural” da sociedade, devido à cons-tante necessidade de corresponder ao corpo social e equilibrar o desejo pessoal às intensas transformações que atingem a todos.

Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz (...) o ho-mem do século XIX que possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem caráter. 2

Presente nesta situação de inconstância e desajuste4 encontramos o personagem de Memórias de um ponto de vista anômico inicial pois este “homem do subterrâneo é aquele que sabe que está perdido

O homem do subsolo está em contraposição ao homem de ação, forte-mente, criticado por adequar-se a um muro, como simbologia de determi-nação de suas ações, ao obedecer regras e normas impostas pela socieda-de.

Este muro presente em nossa so-ciedade confere aos indivíduos estabilidade e segurança, visto que, na ver-dade, “o muro não significa desvio (...) possui para eles algo que acalma, que soluciona a situação do ponto de vista moral, e é definitivo; talvez até possua algo místico”.7

Marcado pelo determinismo em sua personalidade como fruto da construção realizada no âmbito social, encontramos o homem do subsolo que, confrontado com as normas, procura atender, sobretudo, à sua na-tureza de caráter instintivo. Este mesmo homem combate tal construção provocada e forçosamente inculcada na psiqué humana de um ser como produto da sociedade

veremos que este se autodescreve como um camundongo, que rumina em sua consciência, seu caráter anômico: “esse homem às vezes vai dobrar-se tanto de sua antítese que, com toda a sua consciência amplificada honestamente vai se considerar um camun-dongo, e não um homem.” 8

(...) constantemente aparecem na vida pessoas tão corretas e sensatas, tão sábias e amantes do gênero humano que as-sumem como seu objetivo de vida comportar-se da maneira mais correta e sensata possível para, por assim dizer, ser uma luz para os demais, provando para eles que é possível de fato viver neste mundo de maneira correta e sensata. E daí? Sabe-se que muitos desses amantes do gênero humano, uns mais cedo, outros mais tarde, alguns já no fim da vida, traíram a si mesmos (...).12

Sociedade descaracterizou o ser humano para enquadrá-lo e satisfazer o estatuto social.


O “ser humano que procura definir a si mesmo como um ser livre, só pode acabar em um niilismo psicológico, pois ele descobre que suas ideias mudam de uma hora para outra, ele não tem certeza de critério algum”.15

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