Se
existe uma força verdadeiramente anômica na literatura, ela
encontra-se em “Memórias do Subsolo”, de Dostoievski, com todos
os seus registros: o individualismo exacerbado, a constante
insatisfação, a ausência de sentido, descrédito no empreendimento
racional e o completo vácuo ético-moral acionado pelo exercício da
razão.
Na
obra O Suicídio (1897), a concepção de anomia ganha um novo
estatuto: o de patologia social permanente, intrínseca às
sociedades modernas. A anomia não resulta de um desarranjo
sócio-econômico específico, mas surge, concomitantemente, como
fruto do desequilíbrio entre as necessidades psíquicas do homem e
os meios possíveis à sua satisfação.
(...)
as necessidades, na medida em que dependem apenas dos indivíduos,
elas são ilimitadas. Em si mesma, abstraindo-se todo o poder
exterior que a regula, nossa sensibilidade é um abismo sem fundo que
nada é capaz de preencher. (DURKHEIM,E. O Suicídio, pág 313)
Explicado
nos termos de Durkheim, uma vontade sem limites é resultado de uma
cultura que nos permite desejar muito mais do que as condições
materiais nos podem oferecer, é resultado de um processo de
individualização como conseqüência da exacerbada divisão do
trabalho, tornando o desejo individual livre de regulamentação.
MEMÓRIAS
SO SUBSOLO
“Operários
que terminam uma tarefa com certeza recebem dinheiro e vão a um
botequim, acabando num distrito policial – bem, aí estão
ocupações para uma semana. Mas o homem, para onde irá?”
(DOSTOIEVISKI)
No
romance “Memórias do Subsolo”, o narrador-personagem fala sobre
suas angústias e dúvidas com muito sarcasmo. Tem um estilo
digressivo, não sistemático, é irônico e suas idéias surgem em
sobreposição quase histérica.
A
opção do escritor é mostrar, de forma não sistemática (isso é
algo importante) o emaranhado lógico de um homem hipertrofiado, um
homem que pensa o suficiente para fazer do empreendimento racional
uma patologia.
O
narrador trabalha com a distinção entre homens de ação e homens
hipertrofiados. Um homem de ação é um homem de inteligência
limitada, de outro lado, o “homem-idéia”, “o homem instruído
do século XIX.
O
autor sabe que, no mundo do cálculo matemático, o homem de ação é que vai se sobressair. O homem de ideias estará fadado ao
fracasso. E é justamente essa história que o texto mostra.
O
homem hipertrofiado não é capaz de julgar, porque reconhece os
limites da razão. No paradigma determinista, todo o universo é
regido por relações de causa e efeito, no entanto, os
acontecimentos que agora observamos são condicionados por causas que
não podemos ter acesso.
Não
é possível ter acesso a toda a cadeia causal e, ainda que isso
ocorresse, isso só aumentaria a certeza de que ninguém pode ser
punido nem julgado, em absoluto, por nada, pois o mundo e toda esta
rede causal existia antes de qualquer indivíduo2. O homem de ação
é limitado porque atribui às causas secundárias uma importância
primeira, ele acredita ser possível apontar a causa última de um
determinado fato ou ação. O homem hipertrofiado, por outro lado,
reconhece esse limite, por isso, está “moralmente obrigado a ser
uma pessoa sem caráter”, reconhecendo que sua inteligência o
deixou desprovido de qualquer motivo para julgar moralmente.
Para
começar agir, é preciso, de antemão, estar de todo tranqüilo, não
conservando quaisquer dúvidas. E como é que eu, por exemplo, me
tranqüilizarei? Onde estão as minhas causas primeiras em que me
apóie? Onde estão os fundamentos? Onde irei buscá-los? Faço
exercício mental e, por conseguinte, em mim, cada causa primeira
arrasta imediatamente atrás de si outra, e ainda anterior, e assim
por diante, até o infinito. Tal é, de fato, a essência de toda
consciência, do próprio ato de pensar (...) (DOSTOIEVISKI, 2001, p.
30).
O
personagem parte de uma crítica voraz ao determinismo dito
científico. A expressão “2 + 2 = 4” é evocada inúmeras vezes
a propósito desta inevitabilidade, do fatalismo ao qual o homem está
fadado. “São as leis da natureza”. Ele critica aqueles que
afirmam a possibilidade de controlar os apetites humanos através da
razão, como se a vontade estivesse subordinada à primeira.
Em
Memórias do Subsolo, o narrador-personagem almeja a inércia
completa e absoluta, perante a ausência de sentido de sua
existência. Quereria ser um preguiçoso profissional. Essa é uma
das possibilidades que seu percurso revela: “cruzar os braços e
sentar numa cadeira, o resto da vida”.
O
homem do subsolo aponta mais uma face componente do desregramento: a
inércia, a apatia, o niilismo, em última instância, o homem
abandonado aos “humores do corpo”, aos seus estados físicos.
Lançado
à sorte das leis naturais, a felicidade revela-se como “graça”
ou acaso.
Esta
felicidade não tem sentido, porque não está submetida a nenhuma
espécie de coerção normativa, ela não obedece a nenhuma lei e não
depende dela para emergir.
Mersault
tem consciência da inutilidade de qualquer justificativa. Na
tentativa de encontrar uma resposta adequada à “inteligência”
(aqui entre aspas denotando uma forma peculiar de analisar as coisas)
daqueles que o cercam, incluindo os leitores, é claro, aponta-nos o
sol e, assim também nos cega. Entre o dedo de Mersault e o gatilho,
havia o sol, o suor na testa, um árabe e uma navalha, uma briga
motivada por uma mulher minutos antes. São fatos, possíveis causas
que nos julgamos capazes de reconstituir, mas a verdade é que não
existe nenhuma relação necessária entre os eventos anteriores e o
ato de Mersault.
Para
Hume, não existe entre dois eventos quaisquer (A e B) uma relação
lógica necessária. Que A seja a causa de B é uma crença fundada
pelo hábito. Cada acontecimento narrado por Mersault é também uma
ilha neste sentido, não existem leis necessárias regendo os
acontecimentos.
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