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3.7.17

RAJER, Franco. Uma “força anômica” na Literatura. Eutomia-ISSN: 1982-6850, v. 1, n. 01, 2016.

Se existe uma força verdadeiramente anômica na literatura, ela encontra-se em “Memórias do Subsolo”, de Dostoievski, com todos os seus registros: o individualismo exacerbado, a constante insatisfação, a ausência de sentido, descrédito no empreendimento racional e o completo vácuo ético-moral acionado pelo exercício da razão.

Na obra O Suicídio (1897), a concepção de anomia ganha um novo estatuto: o de patologia social permanente, intrínseca às sociedades modernas. A anomia não resulta de um desarranjo sócio-econômico específico, mas surge, concomitantemente, como fruto do desequilíbrio entre as necessidades psíquicas do homem e os meios possíveis à sua satisfação.

(...) as necessidades, na medida em que dependem apenas dos indivíduos, elas são ilimitadas. Em si mesma, abstraindo-se todo o poder exterior que a regula, nossa sensibilidade é um abismo sem fundo que nada é capaz de preencher. (DURKHEIM,E. O Suicídio, pág 313)

Explicado nos termos de Durkheim, uma vontade sem limites é resultado de uma cultura que nos permite desejar muito mais do que as condições materiais nos podem oferecer, é resultado de um processo de individualização como conseqüência da exacerbada divisão do trabalho, tornando o desejo individual livre de regulamentação.

MEMÓRIAS SO SUBSOLO

“Operários que terminam uma tarefa com certeza recebem dinheiro e vão a um botequim, acabando num distrito policial – bem, aí estão ocupações para uma semana. Mas o homem, para onde irá?” (DOSTOIEVISKI)

No romance “Memórias do Subsolo”, o narrador-personagem fala sobre suas angústias e dúvidas com muito sarcasmo. Tem um estilo digressivo, não sistemático, é irônico e suas idéias surgem em sobreposição quase histérica.

A opção do escritor é mostrar, de forma não sistemática (isso é algo importante) o emaranhado lógico de um homem hipertrofiado, um homem que pensa o suficiente para fazer do empreendimento racional uma patologia.

O narrador trabalha com a distinção entre homens de ação e homens hipertrofiados. Um homem de ação é um homem de inteligência limitada, de outro lado, o “homem-idéia”, “o homem instruído do século XIX.

O autor sabe que, no mundo do cálculo matemático, o homem de ação é que vai se sobressair. O homem de ideias estará fadado ao fracasso. E é justamente essa história que o texto mostra.

O homem hipertrofiado não é capaz de julgar, porque reconhece os limites da razão. No paradigma determinista, todo o universo é regido por relações de causa e efeito, no entanto, os acontecimentos que agora observamos são condicionados por causas que não podemos ter acesso.

Não é possível ter acesso a toda a cadeia causal e, ainda que isso ocorresse, isso só aumentaria a certeza de que ninguém pode ser punido nem julgado, em absoluto, por nada, pois o mundo e toda esta rede causal existia antes de qualquer indivíduo2. O homem de ação é limitado porque atribui às causas secundárias uma importância primeira, ele acredita ser possível apontar a causa última de um determinado fato ou ação. O homem hipertrofiado, por outro lado, reconhece esse limite, por isso, está “moralmente obrigado a ser uma pessoa sem caráter”, reconhecendo que sua inteligência o deixou desprovido de qualquer motivo para julgar moralmente.

Para começar agir, é preciso, de antemão, estar de todo tranqüilo, não conservando quaisquer dúvidas. E como é que eu, por exemplo, me tranqüilizarei? Onde estão as minhas causas primeiras em que me apóie? Onde estão os fundamentos? Onde irei buscá-los? Faço exercício mental e, por conseguinte, em mim, cada causa primeira arrasta imediatamente atrás de si outra, e ainda anterior, e assim por diante, até o infinito. Tal é, de fato, a essência de toda consciência, do próprio ato de pensar (...) (DOSTOIEVISKI, 2001, p. 30).

O personagem parte de uma crítica voraz ao determinismo dito científico. A expressão “2 + 2 = 4” é evocada inúmeras vezes a propósito desta inevitabilidade, do fatalismo ao qual o homem está fadado. “São as leis da natureza”. Ele critica aqueles que afirmam a possibilidade de controlar os apetites humanos através da razão, como se a vontade estivesse subordinada à primeira.

Em Memórias do Subsolo, o narrador-personagem almeja a inércia completa e absoluta, perante a ausência de sentido de sua existência. Quereria ser um preguiçoso profissional. Essa é uma das possibilidades que seu percurso revela: “cruzar os braços e sentar numa cadeira, o resto da vida”.

O homem do subsolo aponta mais uma face componente do desregramento: a inércia, a apatia, o niilismo, em última instância, o homem abandonado aos “humores do corpo”, aos seus estados físicos.

Lançado à sorte das leis naturais, a felicidade revela-se como “graça” ou acaso.

Esta felicidade não tem sentido, porque não está submetida a nenhuma espécie de coerção normativa, ela não obedece a nenhuma lei e não depende dela para emergir.

Mersault tem consciência da inutilidade de qualquer justificativa. Na tentativa de encontrar uma resposta adequada à “inteligência” (aqui entre aspas denotando uma forma peculiar de analisar as coisas) daqueles que o cercam, incluindo os leitores, é claro, aponta-nos o sol e, assim também nos cega. Entre o dedo de Mersault e o gatilho, havia o sol, o suor na testa, um árabe e uma navalha, uma briga motivada por uma mulher minutos antes. São fatos, possíveis causas que nos julgamos capazes de reconstituir, mas a verdade é que não existe nenhuma relação necessária entre os eventos anteriores e o ato de Mersault.


Para Hume, não existe entre dois eventos quaisquer (A e B) uma relação lógica necessária. Que A seja a causa de B é uma crença fundada pelo hábito. Cada acontecimento narrado por Mersault é também uma ilha neste sentido, não existem leis necessárias regendo os acontecimentos.

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