Parte
I – O Subsolo
Antes
eu trabalhava no serviço público.
Fui
um funcionário cruel. Era grosseiro e encontrava prazer nisso.
Eu
menti antes, quando disse que era um funcionário cruel. Menti de
raiva.
Raiva
como característica da pessoa frustrada, deslocada, que passa a vida
inteira desempenhando funções que preferia não estar
desempenhando. Relacionar com Marx.
Agora
vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e
inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar
nada, apenas o tolo o faz. Sim, senhores, o homem do século XIX que
possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem
caráter; já um homem com caráter, um homem de ação, é de
preferência um ser limitado.
Por
que motivo, nos exatos minutos em que eu era mais capaz de perceber
todas as sutilezas “de tudo o que é belo e sublime”[3], como se
costumava dizer aqui numa certa época, como que propositalmente eu
não as percebia e cometia atos tão indecorosos, atos tais que...
bem, resumindo, atos que talvez todos pratiquem, mas que, como que de
propósito, aconteciam comigo exatamente no momento em que eu mais
tinha consciência de que não se deve absolutamente praticá-los?
Quanto mais consciência eu tinha do bem e de todo esse “belo e
sublime”, mais afundava no meu lodo e mais capaz me tornava de
atolar-me nele completamente. Mas a característica mais importante
era que parecia que não era por acaso que isso acontecia comigo, que
era para ser assim mesmo. Como se isso fosse o meu estado mais normal
e de maneira nenhuma uma doença ou avaria, o que, finalmente,
tirou-me a vontade de lutar contra esse defeito.
Por
que ele agia de uma maneira diferente daqui gostaria de agir?
Relacionar
com Durkheim e a moral que se impõe.
Para
eles, o muro não significa desvio, como, por exemplo, para nós,
seres pensantes e, conseqüentemente, inertes;
não é um pretexto para voltar atrás, pretexto em que pessoas como
nós geralmente não acreditam, mas que sempre
ficam muito felizes quando o encontram. Não, é com toda
sinceridade que eles se dão por vencidos. O
muro possui para eles algo que acalma, que soluciona a situação do
ponto de vista moral, e é definitivo.
O
muro aqui pode ser entendido como lei ou como dogma que para os
pensantes pode ser um empecilho, mas que são um alívio para os
medíocres.
Mas
é precisamente nesse frio e asqueroso estado de semidesespero e
semicrença, nesse consciente e angustiado sepultamento em vida de si
mesmo no subsolo durante quarenta anos, nessa falta de saída de sua
situação, que ele mesmo se empenhara em criar e que é, contudo,
duvidosa, em todo esse veneno de desejos não satisfeitos que ele
engoliu.
Desejos
não satisfeitos: perda da das rédeas sobre a própria vida.
Esses
senhores, diante da impossibilidade eles imediatamente ficam
resignados. A impossibilidade é o mesmo que um muro de pedra? Mas
que tipo de muro de pedra? Bem, evidentemente, são as leis da
natureza, as conclusões das ciências naturais, a matemática. Se
alguém lhe prova, por exemplo, que você descende do macaco, não
adianta fazer caretas, aceite-o.
Crítica
à inquestionabilidade da ciência.
Que
tenho a ver com as leis da natureza e com a aritmética, se essas
leis e dois e dois são quatro, por alguma razão, não me agradam?
Evidentemente, não quebrarei esse muro com a testa, se realmente não
tiver forças para isso, mas nem assim vou resignar-me somente porque
encontrei um muro e não tive forças para rompê-lo.
Ó,
cúmulo do absurdo! Muito melhor é compreender tudo, perceber tudo,
todas as impossibilidades e muros de pedra; não se resignar diante
de nenhuma dessas
É a
pura verdade. Observem-se melhor, senhores, e verão que é assim. Eu
fantasiava peripécias e criava uma vida para mim, ao menos para
viver, de alguma forma. Quantas vezes eu ficava ofendido, sem nenhum
motivo real, simplesmente porque queria?
Na
ausência de uma vida real, vivia uma vida inventada.
E
tudo isso por tédio, senhores, tudo por tédio; fui esmagado pela
inércia. Pois o produto direto, imediato e legítimo da consciência
é a inércia, isto é, o ficar-sentado-de-braços-cruzados
conscientemente. Já mencionei isso antes. Repito, repito
insistentemente: todos os indivíduos e homens de ação diretos são
ativos precisamente porque são obtusos e limitados. Como isso se
explica? Da seguinte maneira: em conseqüência de sua tacanhez,
tomam os motivos mais próximos e secundários como se fossem os
motivos originais e, assim, eles se convencem mais rápida e
facilmente do que as outras pessoas de que encontraram um fundamento
irrefutável para a sua causa, e então ficam tranqüilos. Isso é o
mais importante. Pois, para se começar a agir, é preciso que antes
se esteja completamente calmo e totalmente livre de dúvidas.
A
minha maldade, novamente em conseqüência dessas malditas leis da
consciência, está sujeita à decomposição química. Quando você
olha, o objeto já volatilizou, os motivos evaporaram, é impossível
encontrar o culpado, a ofensa deixa de ser ofensa e passa a ser uma
fatalidade, algo como uma dor de dente, em que não há culpados.
Ah,
se eu não fizesse nada unicamente por preguiça! Meu Deus, como eu
me respeitaria! E me respeitaria precisamente porque teria a
capacidade de possuir ao menos a preguiça; pelo menos eu teria uma
característica quase positiva, que eu mesmo teria a certeza de
possuir. Pergunta: quem é ele? Resposta: um preguiçoso. Seria mais
do que agradável ouvir tal coisa a meu respeito. Mostraria que fui
definido positivamente, que há o que dizer sobre mim. “Um
preguiçoso!” – isto é de fato um título, uma função, é uma
carreira, senhores. Não brinquem com isso, é a pura verdade. Eu
seria, então, por direito, membro do clube mais importante, e minha
única ocupação seria passar todo o tempo me respeitando.
Crítica
à ética do trabalho.
Em
primeiro lugar, quando foi que, no decorrer de milênios, o homem
agiu movido apenas pelos próprios interesses? Que fazer com os
milhões de fatos que demonstram que conscientemente, isto é,
compreendendo perfeitamente suas verdadeiras vantagens, pessoas
deixaram-nas de lado e lançaram-se por outro caminho, ao acaso,
arriscando-se, sem que ninguém ou nada as obrigasse a isso, como se
simplesmente não quisessem exatamente o caminho que lhes fora
indicado e teimosa e voluntariosamente abriram outro, mais difícil,
absurdo, tateando no escuro quase às cegas? Significa, pois, que
para elas essa teimosia e esse voluntarismo eram de fato mais
agradáveis do que qualquer vantagem pessoal...
Critica
a objetividade e a racionalidade.
Pois
os senhores, ao que eu saiba, compuseram toda a sua lista de
vantagens humanas fazendo uma média de valores estatísticos e de
fórmulas da ciência econômica. De acordo com as suas conclusões,
são elas o bem-estar, a riqueza, a liberdade, a tranqüilidade, e
assim por diante. De modo que, por exemplo, o homem que clara e
deliberadamente rejeitasse toda essa lista seria, na sua opinião, e
na minha também, é claro, um obscurantista ou um ser completamente
louco, não é isso?
Eu,
por exemplo, tenho um amigo... Mas vejam só! Ele é amigo dos
senhores também; e de quem, de quem ele não é amigo?! Ao se
preparar para realizar uma ação, esse senhor começará por lhes
explicar, de maneira clara e pomposa, como precisamente ele deve agir
para estar de acordo com as leis da razão e da verdade. Os senhores
estão convencidos de que, então, o homem deixará voluntariamente
de errar, e a contragosto, por assim dizer, não irá querer opor sua
vontade aos seus interesses normais. E mais: nesse tempo, dizem os
senhores, a própria ciência vai ensinar ao homem (embora isso já
seja um luxo, na minha opinião) que ele, na verdade, não possui nem
vontade, nem caprichos, que, por sinal, nunca os teve, e que ele
mesmo não passa de alguma coisa parecida com uma tecla de piano ou
um pedal de órgão.
O
homem que se encaixa numa ordem de valores pré-estabelecidos. O
homem que é uma peça numa máquina.
Crítica
ao homem sem desejo pessoal, sem vontade própria, totalmente
submisso à moral estabelecida
E
tudo isso por um motivo insignificante que não valeria a pena
mencionar: precisamente pelo fato de que o homem, invariavelmente e
em todo lugar, quem quer que ele seja, sempre gostou de fazer o que
quis, e não como mandam a razão e o interesse próprio; ele,
inclusive, pode querer algo contra seus próprios interesses, e às
vezes até deve indubitavelmente querê-lo (isto já é idéia
minha). Sua vontade livre, um capricho seu, mesmo que seja o capricho
mais estranho, uma fantasia sua, exacerbada às vezes até a loucura
– eis a vantagem que é omitida, a vantagem mais vantajosa, que não
se submete a nenhuma classificação e que manda para o diabo
constantemente todos os sistemas e teorias. E de onde esses sabichões
tiraram que o homem necessita não sei de que vontade normal,
virtuosa?
O
que o homem precisa é somente de uma vontade independente, custe ela
o que custar e não importa aonde possa conduzir.
Nesse
tempo – isso tudo os senhores é que dizem –, surgirão novas
relações econômicas, que serão também completamente calculadas,
e com precisão matemática, de modo que, num piscar de olhos, todo
tipo de questões deixarão de existir, precisamente porque alguém
já terá encontrado todo tipo de respostas para elas.
Na
medida em que se pauta a vida social pelos valores da ciência e se
sabe que a ciência evolui diariamente, mudando seus conceitos, a
volatilidade dos valores é imensa, não permite a consolidação de
uma moral permanente.
E
então, senhores, que tal dar um pontapé em todo esse bom senso e
mandar esses logaritmos para o diabo para que possamos novamente
viver segundo a nossa vontade idiota?
Quem
vai querer ter vontade de acordo com uma tabela? E ainda: no mesmo
instante o homem se transformará num pedal de órgão ou em algo no
gênero; porque o que é esse homem sem desejos, sem vontade, sem seu
próprio querer, senão um pedal de órgão?
O
homem visto como coisa, como ferramenta, como um instrumento.
Porque
se, por exemplo, um dia me provarem com cálculos que se eu fiz um
gesto obsceno com o dedo para alguém isso se deu precisamente porque
não poderia deixar de fazê-lo, e porque era exatamente aquele dedo
que eu deveria mostrar, então o que restará de livre em mim,
especialmente se sou uma pessoa instruída e com um curso completo de
ciência em algum lugar? Pois nesse caso eu vou poder calcular
antecipadamente toda a minha vida futura por um período de trinta
anos; em síntese, se isso for implantado, não nos restará nada a
fazer; de todo modo, teremos de aceitar.
Crítica
da moral enquanto ferramenta de censura que diminui a liberdade de
ação do homem.
Vejam
os senhores: a razão é uma coisa boa, sem dúvida, mas razão é
apenas razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem; já a
vontade, esta é a manifestação da vida como um todo, ou melhor, de
toda a vida humana, aí incluindo-se a razão e todas as formas de se
coçar. E, mesmo que a nossa vida pareça às vezes bem ruinzinha do
ponto de vista acima, ela é vida, apesar de tudo, e não apenas a
extração de uma raiz quadrada.
Que
sabe a razão? Ela sabe apenas aquilo que conseguiu conhecer (outras
coisas, provavelmente, nunca saberá; isso pode não consolar, mas
por que não dizê-lo?); já a natureza humana, esta age como um
todo, com tudo o que possui, seja consciente, seja inconsciente –
e, mesmo mentindo, está vivendo.
Toda
a questão humana, creio, resume-se, na realidade, em o homem provar
constantemente para si mesmo que ele é um homem, e não uma tecla!
Ainda que arriscando sua pele, ele tentará prová-lo; ainda que se
comporte como um troglodita, ele tentará prová-lo.
Tenho,
senhores, algumas questões que me atormentam; resolvam-nas para mim.
Por exemplo, os senhores querem fazer com que o homem desaprenda
hábitos antigos e desejam corrigir sua vontade, de acordo com as
exigências da ciência e do bom senso. Mas como os senhores sabem
que não só é possível como também necessário mudar assim o
homem? De onde os senhores tiraram essa conclusão de que é tão
necessário corrigir a vontade humana?
Por
que os senhores têm tanta certeza de que realmente é sempre
vantajoso para o homem e constitui uma lei para toda a humanidade não
contradizer as vantagens verdadeiras, normais, aquelas garantidas por
argumentos da razão e da aritmética? Pois, por enquanto, isso é
apenas uma suposição dos senhores.
Mas
o homem é um ser inconstante e pouco honesto e, talvez, à
semelhança do jogador de xadrez, goste apenas do processo de
procurar atingir um objetivo, e não do objetivo em si. E quem sabe?
Não se pode garantir, mas talvez todo o objetivo a que o homem se
dirige na Terra se resuma a esse processo constante de buscar
conquistar ou, em outras palavras, à própria vida, e não ao
objetivo exatamente, o qual, evidentemente, não deve passar de dois
e dois são quatro, ou seja, uma fórmula, e dois e dois são quatro
já não é vida, senhores, mas o começo da morte.
Ele
ama o processo de conseguir, mas atingir mesmo, nem tanto, e isso,
claro está, é terrivelmente engraçado.
E
por que os senhores estão assim tão firme e solenemente convencidos
de que apenas o que é normal e positivo, ou seja, o bem-estar, é
vantajoso para o homem?
Quanto
à minha opinião pessoal, penso que amar apenas o bem-estar é, de
certo modo, até indecente. Seja isso bom ou não, o fato é que, às
vezes, quebrar alguma coisa é também muito agradável.
Estou
defendendo... o meu capricho, e que ele me seja garantido, quando
necessário.
Conclusão
final, senhores: é melhor não fazer nada! É melhor a inércia
consciente! Pois, então, viva !
É
preferível a inércia consciente do que se submeter a um conjunto de
desejos que não são os seus.
Parte
II - A propósito da neve úmida
Todos
me abandonaram e fiquei ali esmagado e reduzido a nada. “Ó Senhor,
será para mim esta sociedade?”, pensava eu.
Trudoliúbov
levantou a taça e os outros o acompanharam, menos eu. – À sua
saúde e boa viagem! – exclamou Trudoliúbov para Zverkov. – Aos
nossos velhos tempos, senhores, e ao nosso futuro, hurra! Todos
beberam e rodearam Zverkov para beijá-lo. Não me movi; a taça
cheia continuava intacta na minha frente.
Incapacidade
de se submeter ao teatro das convenções sociais.
Eu
também não resisti e solucei de uma maneira como nunca havia
soluçado antes... – Não me permitem... Eu não posso ser... bom!
Durante
o trabalho na repartição, procurava inclusive não olhar para
ninguém e percebia nitidamente que meus colegas não só me
consideravam excêntrico como também – assim me parecia
constantemente – olhavam-me com uma certa repulsa.
Sensação
de não pertencimento.
Entregava-me
com amor à medianidade geral e com toda a alma temia qualquer sinal
de excentricidade em mim. Mas como eu poderia ter resistido? Eu era
evoluído de uma maneira doentia, como deve ser o homem evoluído do
nosso tempo. Já eles, eram todos obtusos e parecidos uns com os
outros, como um rebanho de carneiros.
Homogeinização
da sociedade
Eu
saía para a libertinagem à noite, secretamente, com medo e com
sensação de sujeira, sentindo uma vergonha que não me abandonava
nem nos instantes mais repugnantes, como uma maldição. Já então
eu trazia na alma o meu subsolo. Sentia um medo terrível de ser
visto e reconhecido
Subsolo
como metáfora para os desejos inconfessáveis do autor, desejos que
talvez não fossem bem vistos pela moral da sociedade.
Só
Deus sabe o que eu não daria naquele momento por uma briga de
verdade, mais correta, mais decente, mais, por assim dizer,
literária! Trataram-me como se eu fosse uma mosca.
Nesse
caso, a briga serve como uma forma de se sentir vivo, de ser notado.
Ser ignorado é que é a pior parte. O problema da insignificância.
Uma
sensação insistente e concreta, de que eu era uma mosca no meio de
toda aquela gente, uma reles mosca desnecessária – mais
inteligente, mais culta e mais nobre do que todos eles, evidentemente
–, porém, uma mosca que cede sempre diante de todos, que todos
humilham e ofendem.
Quando
se tratava de alguém como eu, ou mesmo um pouco melhor, ele
simplesmente o esmagava; caminhava diretamente para essa pessoa, como
se na sua frente houvesse um espaço vazio, e nunca cedia passagem.
Torturava-me
ver que nem mesmo na rua eu conseguia ser igual a ele. “Por que
você é o primeiro a se desviar?”, implicava eu comigo mesmo, numa
histeria furiosa, quando me acontecia acordar antes das três da
manhã. “Por que tem de ser você e não ele? Pois não existe lei
para isso, isso não está escrito em nenhum lugar. Então, que haja
igualdade, como acontece geralmente quando pessoas educadas se
encontram: ele cede até a metade, você também cede até a metade,
e os dois passam, respeitando-se mutuamente”.
Mas
confesso que, depois de inúmeras tentativas, quase entrei em
desespero: simplesmente não havia meio de darmos o encontrão! Com
todos os preparativos que eu fazia, com toda a determinação que
colocava na coisa, parecia que logo-logo haveríamos de nos esbarrar
– mas, novamente, eu cedia o caminho e ele passava sem me notar.
Uma
forma de agir intuitiva que se impõe ao personagem, mesmo contra sua
vontade racional.
De
repente, a três passos do meu inimigo, repentinamente me decidi,
fechei os olhos e – nós nos chocamos fortemente, ombro contra
ombro! Eu não cedi nem uma polegada e passei por ele como um igual!
Ele nem ao menos se virou e fingiu que não notara, mas foi somente
fingimento, estou certo disso. Até hoje tenho certeza disso! Claro
está que eu sofri mais, pois ele era mais forte, mas não era isso
que importava. O importante foi que consegui o meu objetivo, mantive
a minha dignidade, não cedi nem um passo e, à vista de todos, me
comportei com ele como uma pessoa do mesmo nível social.
Mais
tarde, ouvi narrativas sobre seus sucessos na caserna e como tenente,
e também sobre suas farras. Depois ouvi outros boatos sobre seus
avanços na carreira. Ele já não me cumprimentava na rua e eu
desconfiava de que ele tinha medo de se comprometer se mostrasse
conhecer alguém tão insignificante como eu.
Aos
dezesseis anos, eu os observava carrancudo e me espantava com eles;
já naquela época eu ficava admirado com a mesquinhez dos seus
pensamentos, com as coisas idiotas com que se ocupavam, com seus
jogos, suas conversas. Havia tantas coisas importantes que eles não
entendiam, tantos assuntos empolgantes e apaixonantes que não
despertavam o interesse deles, que sem querer eu comecei a me achar
superior a eles.
Eles
achavam que ser inteligente era obter um cargo elevado;
Vou
ficar sentado e beber, porque para mim os senhores não passam de
fantoches, fantoches que não existem.
Desprezo
por uma sociedade sem valores, ou melhor, uma sociedade cujos valores
(pré-fabricados) o protagonista despreza, tem asco.
–
Bem, o senhor... é que o senhor fala como se estivesse lendo um
livro – disse ela, e uma nota zombeteira pareceu soar novamente em
sua voz.
Uma
sociedade em que ser culto não é valorizado, pelo contrário,
parece ridículo .
O
camponês mais desgraçado, quando faz um contrato de trabalho, não
se escraviza por inteiro e, além disso, sabe que aquilo tem um
prazo. E você, qual é o seu prazo? Reflita apenas: o que você está
dando aqui, o que está entregando? Sua alma, a alma que não lhe
pertence, você a está entregando junto com o seu corpo! Seu amor,
você o entrega a qualquer bêbado para que ele o profane.
Comparação
entre prostituição e o trabalho de um camponês
Eu
sabia que meu discurso era pesado, artificial, livresco mesmo. Em
suma: de outra forma eu não sabia me expressar, a não ser “como
num livro”.
O
personagem se sente tão estrangeiro nessa sociedade que até o seu
modo de falar parece um outro idioma, o idioma livresco.
Em
primeiro lugar, eu já não tinha capacidade de amar, porque, repito,
amar para mim significava tiranizar e dominar moralmente.
Agora,
às vezes penso que o amor, na realidade, consiste no direito que o
objeto do amor voluntariamente concede de ser tiranizado.
“Tranqüilidade”
era o que eu queria; queria ficar sozinho no subsolo. A “vida viva”
me sufocava tanto, devido à minha falta de costume, que até
respirar estava difícil.
Todos
nos desacostumamos da vida, uns mais, outros menos, e nos
desacostumamos ao ponto de sentirmos às vezes uma certa repugnância
pela verdadeira “vida viva”
Deixem-nos
sós, sem livros, e imediatamente ficaremos confusos, perdidos –
não saberemos a quem nos unir, o que devemos apoiar; o que amar e o
que odiar; o que respeitar e o que desprezar. Até mesmo nos é
difícil ser gente – gente com seu próprio e verdadeiro corpo e
sangue; sentimos vergonha disso, achamos que é um demérito e nos
esforçamos para ser uma espécie inexistente de homens em geral.
Somos natimortos.
Estraguei
minha vida apodrecendo moralmente num canto, com as deficiências do
ambiente, desabituando-me da vida e com meu ódio vaidoso no subsol
Pois
chegamos ao ponto de quase achar que a verdadeira “vida viva” é
um trabalho, quase um emprego, e todos nós no íntimo pensamos que
nos livros é melhor.
Pois
bem, façam uma experiência, dêem-nos, por exemplo, mais
independência, desamarrem as mãos de qualquer um de nós, ampliem
nossa esfera de ação, relaxem a tutela e nós... eu lhes asseguro:
nós imediatamente pediremos a volta da tutela.
O
homem precisa de regras, não consegue viver sem elas.
E no
que me diz respeito, eu apenas levei às últimas conseqüências na
minha vida aquilo que os senhores não tiveram coragem de levar nem à
metade, e ainda por cima acharam que sua covardia era bom senso,
consolando-se e enganando a si próprios com isso. De modo que talvez
eu esteja mais “vivo” que os senhores.
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