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7.3.18

WEBER, Max. Classe, Estamento e Partido. In: Ensaios de Sociologia. RJ: Editora LTC, 1982.


VII. Classe, Estamento, Partido

1. O PODER DETERMINADO ECONOMICAMENTE E A ORDEM SOCIAL

Em geral, entendemos por "poder" a possibilidade de que um homem, ou um grupo de homens, realize sua vontade própria numa ação comunitária até mesmo contra a resistência de outros que participam da ação.

A forma pela qual as honras sociais são distribuídas numa comunidade, entre grupos típicos que participam nessa distribuição, pode ser chamada de "ordem social".

A ordem social é, para nós, simplesmente a forma pela qual os bens e serviços econômicos são distribuídos e usados. A ordem social é, decerto, condicionada cm alto grau pela ordem econômica, e por sua vez influi nela. Dessa forma, "classes", "estamentos" e "partidos" são fenômenos da distribuição de poder dentro de uma comunidade.

2. DETERMINAÇÃO DA SITUAÇÃO DE CLASSE PELA SITUAÇÃO DE MERCADO

Podemos falar de uma "classe" quando:
1) certo número de pessoas tem em comum um componente causal específico em suas oportunidades de vida, e na medida em que
2) esse componente é representado exclusivamente pelos interesses econômicos da posse de bens e oportunidades de renda, e
3) é representado sob as condições de mercado de produtos ou mercado de trabalho.
[Esses pontos referem-se à "situação de classe", que podemos expressar mais sucintamente como a oportunidade típica de uma oferta de bens, de condições de vida exteriores e experiências pessoais de vida, e na medida em que essa oportunidade é determinada pelo volume e tipo de poder, ou falta deles, de dispor de bens ou habilidades em benefício de renda de uma determinada ordem econômica. A palavra "classe" refere-se a qualquer grupo de pessoas que 6e encontrem na mesma situação de classe.]

A forma pela qual a propriedade material é distribuída entre várias pessoas, que competem no mercado com a finalidade de troca, cria, em si, oportunidades específicas de vida, o que constitui um fato econômico bastante elementar. Segundo a lei da utilidade marginai, esse modo de distribuição exclui os não-proprietários da competição pelos bens muito desejados; favorece os proprietários e, na verdade, lhes dá o monopólio para a aquisição desses bens. Em igualdade de fatores, esse modo de distribuição monopoliza as oportunidades de transações lucrativas para todos os que, dispondo de bens, não têm necessariamente de trocá-los.

"Propriedade" e "falta de propriedade" são, portanto, as categorias básicas de tôdas as situações de classe.

Conotação genérica do conceito de classe: que o tipo de oportunidade no mercado é o momento decisivo que apresenta condição comum para a sorte individual. "Situação de classe", nesse sentido, é, cm última análise, "situação de mercado".

Aqueles cujo destino não é determinado pela oportunidade de usar, em proveito próprio, bens e serviços no mercado, isto é, os escravos, não são, porém, uma "classe", no sentido técnico da expressão. São, antes, um "estamento".

3. AÇÃO COMUNITÁRIA DECORRENTE DO INTERESSE DE CLASSE

A ação comunitária refere-se à ação que é orientada pelo sentimento dos agentes de pertencerem a um todo. A ação societária, por sua vez, é orientada no sentido de um ajustamento de interesses racionalmente motivado.

4. TIPOS DE "LUTA DE CLASSE"

Uma classe não constitui, em si, uma comunidade. Tratar a "classe" conceptualmente como tendo o mesmo valor de "comunidade" leva à deformação.

Devemos mencionar aqui que os antagonismos de classes condicionados pela situação de mercado são habitualmente mais acerbos entre os que participam, real e diretamente, como adversários nas guerras de preços. Não é o homem que vive de rendas, o acionista e o banqueiro que sofrem com a má vontade do trabalhador, mas quase exclusivamente o industrial e os diretores de empresas que são adversários diretos dos trabalhadores nas guerras de preços. Isso ocorre a despeito do fato de ser precisamente para as arcas do homem que vive de rendas, do acionista e do banqueiro que fluem os lucros mais ou menos "gratuitos", e não para os bolsos dos fabricantes ou dos administradores.

5. A HONRA ESTAMENTAL

Em contraste com as classes, os grupos de “status” são normalmente comunidades.

Em contraste com a "situação de classe" determinada apenas por motivos econômicos, desejamos designar como "situação de status" todo componente típico do destino dos homens, determinado por uma estimativa específica, positiva ou negativa, da honraria.

A honraria estamental não precisa, necessariamente, estar ligada a uma "situação de classe".

A "igualdade" social entre os "cavalheiros" americanos, por exemplo, se expressa pelo fato de que fora da subordinação determinada pelas diferentes funções nos "negócios", seria considerado rigorosamente repugnante  - onde quer que a velha tradição ainda predomine - se até mesmo o mais rico "chefe'', ao jogar bilhar ou cartas em seu clube à noite, não tratasse o seu "funcionário" como, sob todos os aspectos, seu igual por nascimento.

6. GARANTIAS DA ORGANIZAÇÃO ESTAMENTAL

No conteúdo, a honra estamental é expressa normalmente pelo fato de que acima de tudo um estilo de vida específico pode ser esperado de todos os que desejam pertencer ao círculo.

Ligadas a essa expectativa existem restrições ao relacionamento "social" (isto é, ao relacionamento que não se prenda a objetivos econômicos ou quaisquer outros objetivos "funcionais" da empresa). Essas restrições podem limitar os casamentos normais ao círculo de status e podem levar a um completo fechamento endogâmico.

Em sua forma característica, a organização estamental tendo por base estilos de vida convencionais está surgindo no momento nos Estados Unidos, a partir da democracia tradicional. Por exemplo, somente o morador de uma determinada rua ("a rua") é considerado como pertencente à sociedade, está qualificado para o relacionamento social e é visitado e convidado. Acima de tudo, essa diferenciação se desenvolve de tal forma que produz estrita submissão à moda dominante cm determinado momento na sociedade.

E esse reconhecimento torna-se tão importante para suas oportunidades de emprego em estabelecimentos "finos", e, acima de tudo, para o relacionamento social e casamento com famílias "bem consideradas"

Quanto ao resto: certas famílias residentes há longo tempo e, decerto, correspondentemente ricas, por exemplo as primeiras famílias da Virgínia ou os descendentes, reais ou imaginários, da "princesa índia" Pocahontas, ou dos fundadores da Nova Inglaterra ou dos fundadores holandeses de Nova York, os membros de seitas quase inacessíveis e de toda espécie de círculos que se distinguem através de quaisquer outras características e insígnias... todos esses elementos usurpam a honraria estamental. O desenvolvimento do estamento é essencialmente uma questão de estratificação que se baseia na usurpação, que é a origem normal de quase toda honra estamental.

7. SEGREGAÇÃO "ÉTNICA" E "CASTA"

Onde as suas consequências se realizaram em toda a extensão, o escamento evolui para uma "casta" fechada. As distinções estamentais são, então, asseguradas não simplesmente pelas convenções e leis, mas também pelos rituais. Isso ocorre de tal modo que todo contato físico com um membro de qualquer casta que seja considerada "inferior" pelos membros de uma casta "superior" é considerado como uma impureza ritualística e um estigma que deve ser expiado por um ato religioso.

Em geral, porém, os estamentos s6 chegam a tais consequências extremas quando há diferenças subjacentes consideradas como "étnicas".

Não obstante, em virtude de sua indispensabilidade econômica, são tolerados, realmente, e frequentemente privilegiados, e vivem em comunidades políticas dispersas. Os judeus constituem o exemplo histórico mais impressionante.

Mesmo os povos párias que são mais desprezados podem, habitualmente, continuar cultivando, de algum modo, aquilo que é igualmente peculiar a comunidades étnicas e de castas: a crença em sua própria honra específica. f: o caso dos judeus.

O sentimento de dignidade que caracteriza os estamentos positivamente privilegiados relaciona-se, naturalmente, com seu "ser" que não transcende a si mesmo, isto é, relaciona-se com sua "beleza e excelência". Seu reino é "deste mundo". Vivem para o presente e explorando seu grande passado. O senso de dignidade das camadas negativamente privilegiadas naturalmente se refere a um futuro que está além do presente, seja desta vida ou de outra. Em outras palavras, deve ser nutrido pela crença numa "missão" providencial e por uma crença numa ·honra específica perante Deus.

8. PRIVILÉGIOS ESTAMENTAIS

Para todas as finalidades práticas, a estratificação estamental vai de mãos dadas com uma monopolização de bens ou oportunidades ideais e materiais, de um modo que chegamos a considerar como típico. Além da honra estamental específica, que sempre se baseia na distância e exclusividade, encontramos toda sorte de monopólios materiais. Essas preferências honoríficas podem consistir no privilégio de usar roupas especiais, comer pratos especiais que são tabu para outros, portar armas -o que é bastante óbvio em suas consequências.

Para o connubium entre membros de um mesmo estamento manter o monopólio da mão das filhas dentro de um círculo restrito tem tanta importância como o interesse que as famílias têm em monopolizar Os possíveis pretendentes que possam prover o futuro das filhas. Com o crescente fechamento do estamento as oportunidades preferenciais convencionais de emprego especial transformam-se num monopólio legal de cargos especiais para grupos limitados.

Essa monopolização ocorre positivamente quando só o grupo em questão está habilitado a possuí-los e a controlá-los; e negativamente quando, a fim de manter seu modo de vida específico, o estamento não deve possuí-los e controlá-los.

9. CONDIÇÕES E EFEITOS ECONÔMICOS DA ORGANIZAÇÃO ESTAMENTAL

A desqualificação frequente das pessoas que se empregam para ganhar um salário é um resultado direto do princípio de estratificação estamental, peculiar à ordem social e, decerto, da oposição desse princípio a uma distribuição de poder regulada exclusivamente por intermédio do mercado.

Todos os grupos que têm interesses na ordem estamental reagem com especial violência precisamente contra as pretensões de aquisição exclusivamente econômica.

Quanto ao efeito geral da ordem estamental, somente uma consequência pode ser apresentada, mas sua importância é grande: o impedimento do livre desenvolvimento do mercado ocorre primeiro para os bens que os estamentos subtraem diretamente da livre · troca pela monopolização.

Por exemplo, em muitas cidades helênicas durante a época especificamente estamental, e também originalmente em Roma, o patrimônio herdado (como se vê pelas velhas fórmulas de condenação dos perdulários) era monopolizado, tal como o eram as propriedades dos cavaleiros, camponeses, sacerdotes e especialmente a clientela das guildas de ofícios e comércio. O mercado é limitado, e o poder puro e simples da propriedade per se, que dá sua marca à "formação de classe", é posto em segundo plano.

Da contradição entre a ordem estamental e a ordem exclusivamente econômica acima mencionada, segue-se que na maioria dos casos a noção de honras peculiares ao estamento abomina de forma absoluta aquilo que é essencial para o mercado: o regateio. As honras abominam o regateio entre os pares e ocasionalmente tornam tabu o regateio em geral para os membros de um estamento.

Simplificando, poderíamos dizer, assim, que as "classes" se estratificam de acordo com suas relações com a produção e aquisição de bens; ao passo que os "estamentos" se estratificam de acordo com os princípios de seu consumo de bens, representado por "estilos de vida" especiais.

10. PARTIDOS

O lugar autêntico das "classes" é no contexto da ordem econômica, ao passo que os estamentos se colocam na ordem social, isto é, dentro da esfera da distribuição de "honras".
Mas os "partidos" vivem sob o signo do "poder".

Sua reação é orientada para a aquisição do "poder" social, ou seja, para a influência sobre a ação comunitária, sem levar em conta qual possa ser o conteúdo.

As ações comunitárias dos "partidos" sempre significam uma socialização, pois tais ações voltam-se sempre para uma meta que se procura atingir de forma planificada.

Portanto, os partidos são possíveis apenas dentro de comunidades de algum modo socializadas, ou seja, que têm alguma ordem racional e um "quadro" de pessoas prontas a assegurá-la, pois os partidos visam precisamente a influenciar esse quadro, e, se possível, recrutá-lo entre os seus seguidores.

Seus meios de alcançar o poder podem ser variados, indo desde a violência pura e simples, de qualquer espécie, à cabala de votos através de meios grosseiros ou sutis: dinheiro, influência social, a força da argumentação, sugestão, embustes primários, e assim por diante, até as táticas mais duras ou mais habilidosas de obstrução parlamentar.

No que se relaciona com as "classes, os "estamentos" e os "partidos'', devemos dizer em geral que eles pressupõem, necessariamente'', uma sociedade que os engloba, e especialmente uma ação comunitária política, dentro da qual operam.

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