Vamos examinar, na primeira parte deste texto, a obra
recente de dois dos mais festejados e reconhecidos economistas brasileiros, os professores
Marcio Pochmann1 e Marcelo Néri2, para tentar comprovar nossa hipótese. O ponto
talvez mais relevante de toda a pesquisa do professor Pochmann para a nossa finalidade,
aqui, é a tese de que todo o movimento positivo da pirâmide social brasileira, na
primeira década do século XXI, na verdade, envolveu postos de trabalho que se encontram
na base da pirâmide social.
O trabalho de Néri, assim como o de Pochmann, é também
o trabalho de um virtuoso no uso de dados estatísticos.
Ambos, inclusive, louvam os mesmos aspectos principais
deste fenômeno recente que são, para os dois, a expansão do emprego formal com carteira
assinada4, o potencial de mobilidade ascendente acompanhado de inclusão no mercado
de bens e consumo5 e a diminuição da abissal desigualdade brasileira6. Até os fatores
causais dessa mudança são percebidos por ambos do mesmo modo, na medida em que os
ganhos de salário real e o aumento real do salário mínimo, por um lado, e o sucesso
do Bolsa Família e do microcrédito, por outro lado, são compreendidos como elementos
decisivos.
Afora isso, as análises de ambos possuem os mesmos pontos
fortes e fracos: excelente tratamento estatístico dos dados, por um lado, e carência
de qualquer força explicativa mais profunda do fenômeno analisado, por outro. A
única diferença efetivamente observável é que Pochmann enfatiza o fato de que estamos
falando da base, da classe trabalhadora, do “setor de baixo” da população brasileira,
enquanto Néri enfatiza o caráter “mediano” e ascendente deste mesmo grupo
Efetivamente, a construção do conceito de uma “nova
classe média” por Marcelo Néri carece de qualquer reflexão aprofundada. Néri simplesmente
toma o “rendimento médio” como indicador daquilo que ele chama de classe C ou “nova
classe média”.
Em seguida imaginando, com isso, contornar todas as
dificuldades desta noção, diz que não está falando de “classe social”, supostamente
para tranquilizar os “sociólogos”, mas sim de “classes econômicas”8. O conceito
de “classe econômica” é absurdo de fio a pavio, já que ou pressupõe que as determinações
econômicas são as únicas variáveis realmente importantes para o conceito de classe
– o que eu suponho seja efetivamente o caso, ainda que o autor não tenha a coragem
de admitir9 –, ou, caso contrário, deveria simplesmente se referir a “faixas de
renda” e não a “classes”
Economicismo
da distribuição e da produção
Pochmann compartilha todos os fundamentos
essenciais da análise de Néri. Pochmann acrescenta, em relação a Néri, um
estudo mais detalhado das “ocupações” que ganharam dinamismo no último momento
econômico e confere menos ênfase aos dados de consumo.
Assim, poderíamos dizer, utilizando as subdivisões
consagradas por Karl Marx acerca da esfera econômica, que Néri pratica um
“economicismo” da “distribuição”, enquanto Pochmann pratica um “economicismo”
da “produção”. Mas, o principal, o “economicismo”, ou seja, a crença explícita
ou implícita, de que a variável econômica por si só esclarece toda a realidade
social está presente nos dois autores e contamina todas as suas hipóteses e
conclusões.
Capital
cultural
A onde reside a “cegueira de toda forma de
economicismo”? Para mim, reside no fato de não perceber que o capital econômico
não é única determinação importante da vida social. Ao contrário, sem, por
exemplo, a percepção dos capitais cultural e social, o próprio capital
econômico se torna incompreensível. A faceta mais importante do “capital
cultural” é o fato de ele ser uma “incorporação”, literalmente, “tornar-se
corpo”, de toda uma forma de se comportar e de agir no mundo, a qual é
“compreendida” por todos de modo inarticulado e não refletido.
Assim, uma família de “classe média”, que tem menos
capital econômico que a “classe alta”, só pode assegurar a reprodução de seus
privilégios – como empregos de maior prestígio e salário, seja no mercado seja
no Estado – se a família possui algum capital econômico para “comprar” o “tempo
livre” dos filhos, que não precisam trabalhar cedo como os filhos das classes
populares, para o estudo de línguas ou de capital cultural técnico ou literário
mais sofisticado.
Ao mesmo tempo, a competição social não começa na
escola. Para que possamos ter tanto o “desejo” quanto a “capacidade” de
absorção de conhecimento raro e sofisticado, é necessário ter tido, em casa, na
socialização com os pais ou quem ocupe esse lugar, o estímulo “afetivo”
Os filhos das classes médias, com grande
probabilidade, possuem esses “estímulos” emocionais e afetivos, ou seja,
possuem esse “capital cultural”, o que irá garantir a sua reprodução de classe
como “classe privilegiada” em dois sentidos. Em primeiro lugar, vão chegar como
“vencedores” na escola e depois no mercado de trabalho e ocupar espaços que as
“classes populares” – classe trabalhadora e “ralé” – não poderão alcançar. Em
segundo lugar, reproduzem também a “invisibilidade” do processo social de
produção de privilégios – que se realizam na privacidade dos lares – e que
podem “aparecer”, posto que sua gênese é encoberta como “mérito individual” e,
portanto, como “merecimento” dos filhos das classes médias.
Que o “privilégio” apareça como “merecido” é a
forma especificamente capitalista e moderna de legitimação da desigualdade
social. A “cegueira” do economicismo é, portanto, dupla: ela é cega em relação
aos aspectos decisivos que reproduzem todos os privilégios e é cega, também, em
relação à falsa justificação social de todos os privilégios.
O economicismo é incapaz até de perceber
adequadamente o próprio capital econômico. A reprodução das classes altas também
depende em boa medida de outros capitais.
Ao “rico bronco” estão vedadas as relações com uma
terceira forma importante de capital, que é o “capital social de relações
pessoais”.
Para além do economicismo, desafio a que nos
propusemos nas duas pesquisas que redundaram em dois trabalhos publicados
subsequentemente: um trabalho sobre os “muito precarizados” socialmente, que
chamamos provocativamente de “ralé”13, e o trabalho sobre os “batalhadores”14,
ou seja, os também precarizados socialmente, mas com maiores recursos e
possibilidade de ascensão social.
Afinal, o que é que faz com que alguns ascendam e
outros não?
A meu ver, o que há de novo e inédito no estudo dos
desclassificados brasileiros é, antes de tudo, a percepção de que eles formam
uma “classe social específica”15, com gênese, reprodução e “futuro provável”
semelhante. Tanto o senso comum como a ciência dominante entre nós deixam de
perceber essa classe “enquanto classe” ao fragmentá-la ao ponto de torná-la
irreconhecível.
Essa classe é, portanto, “moderna” posto que formada
pela incapacidade estrutural, na sua socialização familiar – sempre de classe –
de dispor dos estímulos afetivos e das pré-condições psíquicas, cognitivas e
emocionais que possibilitam a incorporação do “conhecimento útil” necessário à
reprodução do capitalismo competitivo.
Como o economicismo, arrogantemente míope, parte do
indivíduo sem passado, já adulto e igual a todos e, portanto, sem classe, esta
questão central sequer é percebida como relevante ainda que ela vá decidir,
inclusive, que tipo de sujeito econômico será criado pelas distintas heranças
de classe. O “capital cultural” é constituído por ambas as coisas: tanto as
pré-condições afetivas e psíquicas para o aprendizado; quanto pelo aprendizado
em si do conhecimento julgado útil.
Batalhadores
e ralé
As classes do privilégio exploram esse exército de
pessoas disponíveis a fazer de quase tudo. Desde o motoboy que entrega pizza ao
lavador de carros, ao trabalhador que carrega a mudança nas costas, à
prostituta pobre que vende seu corpo para sobreviver, ou ao exército de
serviçais domésticos que faz a comida e cuida dos filhos da classe média e alta
que, assim, pode se dedicar a estudos ou trabalhos mais rentáveis.
É este tempo “roubado” de outra classe que permite
reproduzir e eternizar uma relação de exploração que condena uma classe inteira
ao abandono e à humilhação, enquanto garante a reprodução no tempo das classes
do privilégio16. “Luta de classes” não é apenas a “greve sindical” ou a
revolução sangrenta nas ruas que todos percebem. Ela é, antes de tudo, o
exercício silencioso da exploração construída e consentida socialmente.
“Ascender socialmente” só é possível a quem logra
incorporar as pré-condições que o capitalismo atual pressupõe para a crescente
incorporação de distintas formas de conhecimento e de capital cultural como
“porta de entrada” em qualquer de seus setores competitivos. A “fronteira”
entre “ralé” e “batalhadores” – a qual é sempre fluida na realidade concreta –
está situada precisamente na possibilidade da incorporação pelos batalhadores
dos pressupostos para o aprendizado e o trabalho que faltam à “ralé”.
Dotar a vida
de sentido
O domínio permanente de classes sobre outras exige
que as classes dominadas se vejam como “inferiores”, preguiçosas, menos
capazes, menos inteligentes, menos éticas, precisamente o que reencontramos em
todas as nossas entrevistas. Se o dominado socialmente não se convence de sua
inferioridade não existe dominação social possível.
Nós acrescentamos – à dimensão bourdieusiana
“utilitarista” da teoria dos capitais que não se reduzem ao capital econômico –
a dimensão “valorativa” do que as sociedades modernas julgam ser a “boa vida”.
É a noção “prática” de “boa vida” que define o que é a “virtude” e, portanto, o
que perfaz um indivíduo digno de respeito ou de desprezo.
Utilizamos a reconstrução do filósofo social
canadense Charles Taylor. Para Taylor, assim como para Max Weber20, julgamos
socialmente uns aos outros baseados nas figuras do “produtor útil” e da
“personalidade sensível”. O “efeito de distinção” produzido pela noção
implícita de “personalidade sensível” foi a base do estudo mais brilhante de
Bourdieu acerca das lutas de classe na França.
Nos nossos estudos das classes populares
brasileiras procuramos tornar operacional o conceito de “dignidade” do produtor
útil. “Dignidade”, aqui, é um “conjunto de características psicossociais
incorporadas praticamente” afetivas, emocionais e cognitivas, que fazem com que
tanto a “autoestima” pessoal quanto o “reconhecimento” social sejam possíveis.
É essa “seleção prática” que qualquer entrevista de emprego no mercado ou qualquer
prova de concurso público procura fazer.
As classes populares não são apenas despossuídas
dos capitais que pré-decidem a hierarquia social. Paira sobre as classes
populares também o fantasma de sua incapacidade de “ser gente” e o estigma de
ser “indigno”, drama presente em literalmente todas as entrevistas. As classes
com essa “insegurança generalizada”, como a “ralé” e boa parte dos
“batalhadores”, estão divididas internamente entre o “pobre honesto”, que aceita
as regras do jogo que o excluem, e o “pobre delinquente”, o bandido, no caso do
homem, e a prostituta, no caso da mulher.
Assim, as classes do privilégio não dispõem apenas
dos capitais adequados para vencer na disputa social por recursos escassos.
Elas possuem também a “crença em si mesmo”, produto de uma autoconfiança de
classe.
As classes populares, ao contrário, não dispõem de
nenhum dos privilégios de nascimento das classes média e alta. A socialização
familiar é muitas vezes disruptiva, a escola é pior e muitas vezes consegue
incutir com sucesso “insegurança” na própria capacidade23, os exemplos
bem-sucedidos na família são muito mais escassos, quando não inexistentes,
quase todos necessitam trabalhar muito cedo e não dispõem de tempo para
estudos, o alcoolismo, fruto do desespero com a vida, ou o abuso sexual
sistemático são também “sobrerrepresentados” nas classes populares.
Socialização
religiosa
Daí que os membros da “ralé”, que analisamos no
nosso livro anterior sobre essa classe, diziam repetidamente que “fitavam” o
quadro negro por horas a fio sem aprender. Essa “virtude” não é natural, como
pensa o economicismo, mas um “aprendizado de classe”. Por outro lado, sem
pensamento prospectivo – ou seja, a visão de que o futuro é mais importante que
o presente –, não existe sequer a possibilidade de condução racional da vida
pela impossibilidade de cálculo e de planejamento da vida pela prisão no “aqui
e agora”.
No contexto das classes populares, nosso estudo dos
batalhadores se concentrou na determinação das fronteiras que os separam da
“ralé”, por um lado, e da classe média verdadeira, por outro. Observamos, por
exemplo, fontes importantes de “autoconfiança” individual e de solidariedade
familiar baseada na socialização religiosa, temas negados por estudiosos
conservadores24. O tipo de religiosidade pentecostal, crescentemente importante
nas classes populares brasileiras, tende a ser, nos “batalhadores”, dominado
pelas denominações mais “éticas” – ao contrário da “ralé”, na qual predominam
as denominações mais “mágicas” do pentecostalismo – no qual a “regulação
racional da vida cotidiana” e a “crença na própria capacidade” passam a ser o
valor máximo25. Isso implica, nos melhores casos, a possibilidade de se
conquistar tardiamente estímulos morais e afetivos que, nas classes do
privilégio, é dado pelo horizonte familiar em tenra idade.
Incorporação
dos pressupostos emocionais
Assim, do mesmo modo que a não incorporação
familiar, escolar e social dos pressupostos de qualquer aprendizado e trabalho
moderno é o que produz e reproduz a ralé, os “batalhadores” representam a
fração das classes populares que lograram sair deste círculo vicioso. Como as
fronteiras, aqui, são muito fluidas, isso significa que não existe “classe
condenada” para sempre. Com condições políticas e econômicas favoráveis, os
setores que lograram incorporar, seja por socialização religiosa tardia, seja
por pertencerem a famílias comparativamente mais bem estruturadas – malgrado o
ponto de partida desvantajoso comum a todas as classes populares –, a
incorporação das pré-condições para o desempenho do papel social do “trabalhador
útil”, podem ascender socialmente.
O economicismo é, portanto, cego em relação tanto à
“estrutura social”, que implica a consideração de capitais que não se
restringem ao econômico, como é cego em relação ao ponto verdadeiramente
decisivo em relação às classes sociais: a forma “velada” e “encoberta” de como
as classes sociais são produzidas e reproduzidas. Se o economicismo é incapaz
de perceber a gênese e a reprodução das classes, ele é incapaz de compreender
qualquer fato realmente importante em relação à dinâmica das classes sociais.
Ele pode até “falar” de classes sociais, mas sua
compreensão deste fenômeno tão decisivo e central difere muito pouco da forma
como o senso comum (não) percebe as classes.
As
manifestações de junho e a cegueira política das classes
O economicismo, como narrativa social dominante,
não esconde apenas as reais condições da luta de classe social e econômica
entre nós. Ela impossibilita também a percepção adequada da política
A grande fraude e a grande mentira das “jornadas de
junho” são a impressão de que o “vilão” está no Estado, e a “sociedade”,
engajada e politizada, é o “mocinho”.
Mas, na verdade, quem até agora ganhou e colheu
frutos com a “primavera brasileira” foram as forças mais conservadoras do país.
Como isto se explica? Como tantos se deixam enganar?
Nos primeiros dias, uma aliança entre estudantes e
“batalhadores” da classe trabalhadora precária, que tratamos mais acima neste
texto, foi a grande responsável por uma pauta de reivindicações em consonância
com os interesses das classes populares.
No entanto, o dia 19 de junho – fato comprovado
pelas pesquisas do Ibope feitas com os manifestantes em dimensão nacional29 –
foi um ponto de inflexão fundamental que ajuda a esclarecer a força narrativa e
institucional do pacto conservador brasileiro contemporâneo. Foi a partir deste
dia que as manifestações se tornaram massificadas e ganharam todo o apoio da
mídia nacional, assumindo a “classe média verdadeira” – os 20% mais
escolarizados e de maior renda, segundo a pesquisa – de modo claro e inconteste
o protagonismo do movimento.
Como toda classe privilegiada, a classe média tem
interesse em “esconder as causas do privilégio injusto”.
O privilégio da classe média se baseia, como vimos
acima, na apropriação de capital cultural altamente valorizado e indispensável
para a reprodução de mercado e Estado. Este tipo de capital se materializa, por
exemplo, no conhecimento oferecido nos cursos universitários de prestígio, nas
pós-graduações, no conhecimento de línguas estrangeiras, etc. Mais importante
ainda é perceber que o capital cultural não são apenas títulos escolares, mas,
antes de tudo, o aprendizado na socialização familiar desde tenra idade de
certas “disposições invisíveis para o comportamento competitivo”.
Classe média
se imagina como radical, no Brasil
Essas disposições são transmitidas pelos pais aos
filhos como uma “herança cultural”: ensina-se aos filhos a disposição para o
autocontrole, para a disciplina, para o pensamento prospectivo (que percebe o
futuro como mais importante que o presente) ou ainda para a capacidade de
concentração. Em seu conjunto, essas disposições serão o fundamento do sucesso
escolar e, depois, no mercado de trabalho.
Como essa transmissão é “invisível”, posto que “naturalizada”
e realizada no interior dos lares, a classe média tende a se acreditar como a
classe do “milagre do mérito individual”, conquistado pelo esforço, e não por
privilégios de nascimento. A classe média é a classe da “meritocracia” por
excelência, retirando dessa falácia sua “dignidade” específica.
Como dizia Max Weber, todas as classes dominantes
em todo lugar e em todas as épocas não querem apenas usufruir os privilégios
que são a base de sua felicidade. Elas querem também saber que “têm direito aos
privilégios”. Assim, é necessário tornar invisível todos os privilégios de
nascimento, que possibilitam, por exemplo, sua transformação no “milagre do
mérito individual”.
As conquistas sociais das democracias europeias
foram fruto das lutas das classes trabalhadoras
Mas, no Brasil, uma classe privilegiada, cujo
interesse primeiro é na reprodução do mundo como ele é, adora se imaginar como
“radical” e agente da mudança. É isso que é necessário esclarecer e
compreender, posto que é isso que nos singulariza.
Toda sociedade moderna produz um “mito”, uma
espécie de “conto de fadas para adultos” que distorce a realidade tanto quanto
a falácia da meritocracia para justificar a dominação social.
No Brasil, esse “conto de fadas” assume a forma da
oposição mercado/Estado.
Sérgio Buarque foi o primeiro a perceber o
“brasileiro” como um tipo singular, sem pertencimento de classe – como se o
brasileiro do Leblon fosse o mesmo do complexo do alemão – e chamá-lo de “homem
cordial”. O “homem cordial” é emotivo e prefere os amigos à lei nesta leitura.
Interessante é que Buarque vai associar o “homem cordial” ao Estado,
supostamente patrimonial e corrupto, e principal obstáculo à modernização
brasileira. Com Raymundo Faoro e o seus “donos do poder”, esta mesma
perspectiva contrapõe de modo decidido o mercado como a “virtude” e berço da
democracia, e o Estado como “vício”, sendo só entrave, berço da ineficiência e
da corrupção. É esta perspectiva de Faoro que produziu o “conto de fadas”
dominante do Brasil moderno.
Não se compreende as ideias que dominam o
imaginário social de uma sociedade sem compreender que elas são sempre, antes
de tudo, ideias difusas no meio social que são articuladas por intelectuais.
Para que essas ideias possam, então, conquistar as universidades, as escolas,
os partidos, a mídia e ganhar espaço para exercer influência e se
institucionalizar, têm que estar associadas a interesses poderosos.
Mercado
“virtuoso”, Estado “corrupto”
Para tocar no tema central das manifestações, não
existe corrupção sistemática no Estado sem que seja provocada por interesses de
mercado.
Nada mais natural que mercado e Estado constituam a
“semântica possível” de uma luta de classes encoberta, já que, nas sociedades
modernas, a proteção às classes dominadas tem sido historicamente tarefa do
Estado, por exemplo, garantindo educação e saúde mesmo para os mais pobres. É de
interesse dos “endinheirados”, no entanto, que todas as dimensões da vida
social fiquem à mercê do interesse de lucro.
Temos um capitalismo selvagem e concentrador, um
debate público superficial e pobre como as histórias infantis, uma das
sociedades mais desiguais e perversas do planeta e a raiz dos problemas
brasileiros é visto em um espantalho: o Estado, supostamente só ele corrupto e
ineficiente.
A classe média que foi em massas às ruas a partir
do dia 19 de junho e que foi a responsável pela mudança de pauta das demandas
por melhor transporte, escolas e saúde, demandas típicas das classes populares,
em favor das suas demandas centralizadas nas denúncias de corrupção – sempre
estatal e personalizada –, na verdade, agiu tanto como “tropa de choque” do
interesse dos endinheirados, como, em parte, em interesse próprio.
Uma classe social, como a classe média brasileira,
que explora os excluídos sociais em serviços domésticos que lhes permitem
poupar tempo livre para incorporar ainda mais conhecimento e mais capital
cultural para a reprodução indefinida de seus privilégios – enquanto condena os
excluídos à reprodução de sua própria miséria – pode “posar” de humana,
corajosa e virtuosa, ao sair às ruas para condenar sempre um “outro” que não
nós mesmos. O privilégio, afinal, precisa ser justificado ou tornado invisível
para se reproduzir.
A classe média “deseja” acreditar nesse “conto de
fadas”, porque ele transforma milagrosamente sua extraordinária
“irresponsabilidade social” – uma classe dominante que sequer percebe as
necessidades de 80% de seus compatriotas condenados a uma subvida – em
“heroísmo”.
A abissal desigualdade brasileira não humilha e
desumaniza apenas os excluídos sociais que perfazem ainda 30% da população. Não
existe problema real no Brasil que não advenha de sua monumental desigualdade:
(in)segurança pública, gargalo da mão de obra qualificada, escola e saúde
pública de má qualidade. O que distancia o Brasil das sociedades que admiramos
não é a corrupção, que é um problema real em qualquer lugar. O que nos afasta
das sociedades “moralmente superiores” é que exploramos, aceitamos e tornamos
fato natural e cotidiano conviver com gente sem qualquer chance real de vida
digna e sem termos nenhuma culpa nisso.
O que os
endinheirados controlam
Mesmo a parcela não crítica desta classe também é
vítima do “conto de fadas” brasileiro que ela própria defende. Afinal, a classe
média é também explorada pelos “endinheirados”, o que se reflete na sua
ansiedade pelo custo de vida crescente e insegurança social.
A classe média se escandaliza com os escândalos
cotidianos fomentados pela mídia conservadora, mas sequer percebe sua
espoliação cotidiana pela camada ínfima de endinheirados de uma das sociedades
modernas de capitalismo mais concentrado e desigual.
O 1% de endinheirados não controla apenas a
economia e a propriedade. Eles controlam também a imaginação dos 99% restantes
ao deslocar o foco de atenção da distribuição desigual de riqueza e privilégio
para o espantalho da “corrupção estatal” como causa de todos os males. A quem
interessa, afinal, a estigmatização do Estado como ineficiente e corrupto –
como se o nosso mercado de produtos e serviços caros de baixa qualidade fosse
eficiente e virtuoso – se- não àqueles menos de 1% que podem transformar áreas
de atuação do Estado em terreno de apropriação privada e de lucro? Refiro-me
aqui às áreas duramente conquistadas pelas classes populares, como educação e
saúde, que deve- riam independer do fato de se nascer ou não em uma família
privilegiada. Hoje em dia, é a classe média que paga preços exorbitantes a
serviços que poderiam e deveriam ser públicos e de boa qualidade e, ainda, sai
às ruas para defender, como uma boa tropa de choque imbecilizada, os interesses
dos seus algozes.
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