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18.6.18

CARVALHAES, F.; BARBOSA, R.; SOUZA, P. e RIBEIRO, C. Os Impactos da Geração de Empregos sobre as Desigualdades de Renda: Uma Análise da Década de 2000. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 29, No. 85, 2014. (pp. 7998)

Introdução

Neste artigo, pretendemos compreender como as desigualdades se relacionam com a estrutura ocupacional e como foram afetadas pela expansão do emprego.

De maneira mais direta, a principal pergunta que propomos responder é a seguinte: que parcela da desigualdade de renda se deve especificamente às características estruturais, entendidas como o aspecto ocupacional, do mercado de trabalho? 

Para realizar nossa investigação seguimos dois passos. Primeiramente examinamos a qualidade relativa dos postos de trabalho criados entre 2002 e 2012. Em seguida, tendo mapeado o padrão de evolução do emprego, investigamos mais detidamente a relação entre a estrutura ocupacional e a desigualdade de renda do trabalho. 

Desigualdades no mercado de trabalho 

Entre 1989 e 1991, todos os índices registram os maiores patamares de desigualdade da história recente. A partir de 1994, esses indicadores apontam lenta melhoria da distribuição de renda; mas apenas após 2001 o declínio se torna consistente e acentuado. 

A literatura especializada tentou isolar os principais fatores para o declínio da desigualdade de renda e atribuirlhes pesos e importâncias diferenciais; dois deles são a estabilização macroeconômica e o controle da inflação (Ferreira e Litchfield, 2001; Barros et al., 2006b; Ferreira et al., 2006). No entanto, também ficou claro que apenas o crescimento econômico não poderia ser responsável pela distribuição da renda. As mudanças na escolaridade da população revelaramse fundamentais, e seus efeitos mais importantes foram (1) a ampliação do acesso aos níveis mais baixos de ensino e (2) o declínio significativo dos diferenciais de remuneração da força de trabalho por nível de escolaridade. Esse movimento da educação explicaria 40% da queda da desigualdade da renda do trabalho entre 2001 e 2005.

Por que ocupações? 

Classicamente, a sociologia se propõe a compreender como características individuais interagem com aspectos estruturais da divisão do trabalho (Sorensen, 1996; Acemoglu, 2002; Autor, Katz e Kearney, 2006). Uma das formas privilegiadas de realização desse empreendimento seria através da atenção especial à dimensão ocupacional. E essa dimensão importa de várias maneiras.

As ocupações variam no nível de habilidade requerido para realizálas – ou seja, o grau e complexidade das atividades e o tempo necessário para aprendêlas. Além disso, as habilidades e qualificações exigidas no trabalho são recompensadas diferentemente em cada segmento ocupacional (Mouw e Kalleberg, 2010). 

Ocupações menos especializadas e mais abertas à substituição de trabalhadores, seriam menos protegidas e mais sujeitas às flutuações da oferta de mão de obra

Além disso, a estrutura ocupacional é uma forma privilegiada para a compreensão das características da renda permanente dos indivíduos (expectativa de rendimentos durante todo o curso de vida), que está correlacionada tanto aos modos de vida como às possibilidades de mobilidade social (Weeden, 2002; Kim e Sakamoto, 2008; Liu e Grusky, 2013). 

Sendo a ocupação um indicador privilegiado da posição de classe, a inserção dos indivíduos no mercado de trabalho tornase indispensável para entender como a desigualdade se organiza, considerando até os fatores institucionais que diferenciam as ocupações entre si. 

Nosso primeiro passo é examinar as dinâmicas de expansão dos postos de trabalho na última década. 

Se ordenarmos os postos de trabalho existentes (ocupações) segundo algum critério de qualidade (numa escala que leva dos “piores” aos “melhores” empregos), podemos nos questionar onde os novos empregos se encaixam nessa escala.

Em nosso segundo passo analítico, estabelecemos mais precisamente os formatos dessa relação. Partindo de uma decomposição da variância do logaritmo natural da renda do trabalho (uma medida clássica de desigualdade), obtemos três efeitos que relacionam a desigualdade de renda do trabalho às ocupações (idem; Williams, 2010). 

O primeiro deles é o chamado efeito de composição. Ele está relacionado à proporção de trabalhadores ligados a uma categoria ocupacional.

O segundo fator, chamado efeito de médias, referese a mudanças nos salários médios das ocupações. 

O terceiro fator diz respeito a como se comporta a distribuição da renda no interior das ocupações, ou seja, a desigualdade entre indivíduos dentro das ocupações, a desigualdade intraocupacional – também chamada de desigualdade residual

Estratégias analíticas, metodologia e dados 

Padrões de geração do emprego e decomposição das desigualdades 

Para analisar a qualidade dos empregos criados na década de 2000, seguiremos uma estratégia elaborada por Wright e Dwyer (2003)

Nesse trabalho, os autores propõem a criação de uma matriz de cruzamento entre categorias ocupacionais e setores de atividade.

Em seguida, ordenamse as células de acordo com a mediana da renda do trabalho

Por fi m, as ocupaçõessetor são divididas em cinco grupos – quintos – de acordo com essa medida. Os indivíduos de uma mesma ocupaçãosetor são levados “em bloco” para uma única categoria. Temos assim uma escala de qualidade dos empregos, com cinco pontos, cada um com 20% dos indivíduos empregados. 

A análise gráfica desses resultados permitenos avaliar apenas de maneira descritiva e qualitativa o formato da expansão do emprego na década de 2000. A segunda etapa de nossas análises dedicase justamente à avaliação da relação entre a estrutura ocupacional e a desigualdade de renda. O objetivo é responder às seguintes questões: 

• Caso tenha havido alteração substantiva na distribuição (tamanho) das ocupações, em que medida esse movimento afetou a redução das desigualdades. • Em que medida a mudança do padrão da média entre as ocupações dos salários levou à redução das desigualdades. • Se as ocupações teriam pouca importância e a maior parte do declínio se deveria à redução das desigualdades entre indivíduos dentro das ocupações, ou seja, a fatores intraocupacionais/ não observáveis. 

Resultados 

Padrões de expansão do emprego 

Cabe ressaltar que, de modo geral, os quintos de qualidade do emprego têm sempre características específicas. Os mais baixos agrupam um menor número de ocupaçõessetor, que empregam uma grande quantidade de indivíduos. À medida que avançamos para os quintos superiores, há um número cada vez maior de ocupaçõessetor; são categorias mais heterogêneas e com maior variabilidade em termos de renda.

De acordo com os quatro saldos bienais apresentados, a expansão dos postos de trabalho na década de 2000 se caracteriza predominantemente por um quadro de melhoria do emprego (segundo os modelos estilizados na Figura 1).

O saldo total do período, apresentado no gráfico 3, mostra que o resultado final é fundamentalmente de melhoria do emprego (apesar de algumas características híbridas, que intercedem com outros modelos). Ou seja, a queda das desigualdades de rendimento se fez em um cenário que se aproxima da melhoria de emprego, principalmente entre os anos de 20042005 e 20082009.

As discussões em torno da expansão do emprego na década de 2000 frequentemente levantaram a suspeita de que a maior parte dos postos formais gerados na década se concentraria em empregos de qualidade relativamente baixa. O que observamos é exatamente o contrário disso: os novos empregos formais concentramse principalmente nos dois últimos quintos, de maior renda, do ponto de vista relativo. 

A expansão do emprego caracterizouse por uma transferência da mão de obra para ocupações relativamente mais bem remuneradas.

Discussões e considerações finais 

Mostramos que o padrão de expansão do emprego na última década implicou, de modo geral, uma melhoria relativa dos postos de trabalho: as ocupações criadas se concentram nos quintos mais altos de renda (melhoria de emprego).

A literatura econômica – principalmente por meio da hipótese de skill biased technological change, tanto em sua versão original 

quanto na de Autor, Levy e Murnane (2003) – indica que esse quadro pode estar ligado ao aumento da desigualdade observado em uma séria de países desenvolvidos, uma vez que reflete o aquecimento da demanda por mais altas qualificações (e, por conseguinte, a elevação dos prêmios salariais). Nossos resultados mostram que, no Brasil, esse tipo de tendência não se aplica: experimentamos queda em todos os índices que mensuram a desigualdade de rendimentos ao mesmo tempo que vivenciávamos significativas mudanças no mercado de trabalho, um job upgrading.

A geração de empregos transferiu os trabalhadores para ocupações e setores em que se remunera mais, e simultaneamente houve redução do tamanho das ocupações de mais baixo nível salarial.

Dada a queda dos componentes de nível individual, hoje, o componente interocupacional responde por uma parcela relevante do estoque de desigualdades – a 15%, enquanto o intraocupacional, a 37,6%, em 2012. 

Os patamares de desigualdade no país, apesar de inferiores aos padrões antes verificados, ainda são muito altos se tomamos como referência o plano internacional.

Em resumo, o mercado de trabalho brasileiro mudou e se tornou menos desigual, mas isso se deve fundamentalmente à dinâmica da redução das barreiras de oportunidades educacionais, à escolarização dos trabalhadores e à redução dos retornos salariais pela educação.

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