INTRODUÇÃO
À EDIÇÃO DE 1968
I
Pensando
e teorizando a respeito da estrutura e controle das emoções humanas
nos dias correntes, contentamo-nos em geral em usar como prova
observações colhidas nas sociedades mais desenvolvidas de hoje.
Não
obstante, há numerosas observações relativamente acessíveis
indicando que podem diferir o padrão e modelo de controle das
emoções em sociedades que se encontrem em diferentes estágios de
desenvolvimento, e mesmo em diferentes estratos da mesma sociedade.
Como
e por que, no curso de transformações gerais da sociedade, que
ocorrem em longos períodos de tempo e em determinada direção — e
para as quais foi adotado o termo “desenvolvimento” —, a
afetividade do comportamento e experiência humanos, o controle de
emoções individuais por limitações externas e internas, e, neste
sentido, a estrutura de todas as formas de expressão, são alterados
em uma direção particular?
Essas
mudanças são indicadas na fala diária quando dizemos que pessoas
de nossa própria sociedade são mais “civilizadas” do que antes.
À
frente do interesse sociológico no presente, encontramos processos
de prazo relativamente curto.
As
transformações a longo prazo das estruturas sociais e, por
conseguinte, também, das estruturas da personalidade, perderam-se de
vista na maioria dos casos.
O
presente estudo diz respeito a esses processos de longo prazo.
Para
começar, podemos distinguir duas direções principais nas mudanças
estruturais das sociedades: as que tendem para maior diferenciação
e integração, e as que tendem para menos.
São
incontáveis as mudanças na sociedade que não implicam mudança em
sua estrutura.
O
primeiro volume concentra-se, acima de tudo, na questão de saber se
a suposição, baseada em observações dispersas, de que há
mudanças a longo prazo nas emoções e estruturas de controle das
pessoas em sociedades particulares — mudanças que se desenvolvem
ao longo de uma única e mesma direção durante grande número de
gerações — pode ser confirmada por evidência fidedigna e
encontrar comprovação factual.
É
possível relacionar essa mudança a longo prazo nas estruturas da
personalidade com mudanças a longo prazo na sociedade como um todo,
que de igual maneira tendem a uma direção particular, a um nível
mais alto de diferenciação e integração social?
A
questão é se uma mudança estrutural da sociedade como um todo,
tendendo a um nível mais alto de diferenciação e integração,
pode ser demonstrada com ajuda de evidência empírica confiável.
Isto se revelou possível.
II
O
conceito de civilização, conforme demonstra o primeiro capítulo
deste volume, tem sido frequentemente usado em sentido semimetafísico.
Aqui
faz-se uma tentativa de isolar o núcleo factual a que se refere a
ideia corrente, pré-científica, de processo civilizador. Este
núcleo consiste principalmente na mudança estrutural ocorrida em
pessoas na direção de maior consolidação e diferenciação de
seus controles emocionais e, por conseguinte, de sua experiência
(como, por exemplo, na forma de um avanço do patamar de vergonha e
nojo) e de sua conduta (como, por exemplo, na diferenciação dos
utensílios usados à mesa).
III
Este
estudo ajuda a solucionar o renitente problema da ligação entre
estruturas psicológicas individuais (as assim chamadas estruturas de
personalidade) e as formas criadas por grandes números de indivíduos
interdependentes (as estruturas sociais). E o faz porque aborda ambos
os tipos de estruturas não como fixos, como em geral acontece, mas
como mutáveis, como aspectos interdependentes do mesmo
desenvolvimento de longo prazo.
IV
É
característico do enfoque teórico de Parsons tentar dissecar
analiticamente, em seus componentes elementares, como disse ele certa
vez,1 os diferentes tipos de sociedades em seu campo de observação.
A um tipo particular de componente elementar ele chamou de “variáveis
de padrão”. Essas variáveis de padrão incluem a dicotomia entre
“afetividade” e “neutralidade afetiva”. Sua concepção pode
ser mais bem-entendida comparando-se a sociedade com um jogo de
cartas: cada tipo de sociedade, na opinião de Parsons, representa
uma “mão” diferente. As cartas, porém, são sempre as mesmas e
seu número é pequeno, por mais diversas que sejam suas faces. Uma
das cartas com que o jogo é disputado é a polaridade entre
afetividade e neutralidade afetiva.
A
“comunidade”, parece acreditar ele, caracteriza-se pela
afetividade, e a “sociedade”, pela neutralidade afetiva.
O
que, neste livro, com ajuda de extensa documentação empírica se
mostra que é um processo, Parsons, pela natureza estática de seus
conceitos, reduz retrospectivamente, e em minha opinião sem nenhuma
necessidade, a estados. Em vez de um processo relativamente complexo,
mediante o qual a vida afetiva das pessoas é gradualmente levada a
um maior e mais uniforme controle de emoções — mas certamente não
a um estado de total neutralidade afetiva —, Parsons sugere uma
simples oposição entre dois estados, afetividade e neutralidade
afetiva, que supostamente estariam presentes em graus diferentes em
diferentes tipos de sociedade, tal como quantidades diferentes de
substâncias químicas.
Ao
reduzir a dois diferentes estados o que empiricamente se demonstrou
neste livro ser um processo e que necessita ser interpretado
teoricamente como tal, Parsons priva-se da possibilidade de descobrir
como as peculiaridades das sociedades a que se refere devem ser
realmente explicadas.
Os
diferentes estados denotados pelas antíteses das “variáveis de
padrão” são, ao que parece, simplesmente dados. Nesse tipo de
teorização desaparece a mudança estrutural, sutilmente organizada,
na direção de um maior e mais uniforme controle de emoções que
pode ser observado na realidade. Os fenômenos sociais, na verdade,
só podem ser observados como evoluindo e tendo evoluído. Sua
dissecação por meio de pares de conceitos, que restringem a análise
a dois estados antitéticos, representa um desnecessário
empobrecimento da percepção sociológica tanto a nível empírico
como teórico.
As
categorias básicas selecionadas por Parsons parecem-me arbitrárias
no mais alto grau. Subjacentes a elas há a noção tácita, não
comprovada e supostamente axiomática, de que o objetivo de toda
teoria científica é o de reduzir tudo o que é variável a algo
invariável, e simplificar todos os fenômenos complexos
dissecando-os em seus componentes individuais.
O
exemplo da teoria de Parsons, no entanto, sugere que a teorização
no campo da sociologia é mais complicada do que simplificada.
Este
tipo de redução e abstração poderia justificar-se como método de
teorização apenas se levasse, inequivocamente, a uma compreensão
mais clara e profunda pelos homens de si mesmos como sociedades e
como indivíduos. Em vez disso, descobrimos que as teorias formuladas
por esses métodos, tal como a teoria do epiciclo de Ptolomeu, exigem
construções auxiliares desnecessariamente complicadas
V
Um
exemplo disto, e que será discutido mais extensamente adiante, é a
tentativa que faz Parsons de elaborar um modelo teórico da relação
entre estruturas de personalidade e estruturas sociais. Neste
esforço, duas ideias não muito compatíveis são confundidas com
frequência: a noção de que indivíduo e sociedade — “ego” e
“sistema social” — seriam duas entidades existindo
independentemente uma da outra, sendo o indivíduo considerado como a
realidade concreta, e a sociedade tratada como epifenômeno, — e a
noção de que as duas são planos diferentes, mas inseparáveis, do
universo formado pelo homem.
(…)
“indivíduo” e “sociedade” não dizem respeito a dois objetos
que existiriam separadamente. (…) Ambos se revestem do caráter de
processos e não há a menor necessidade, na elaboração de teorias
sobre seres humanos, de abstrair-se este processo-caráter.
É
indispensável que o conceito de processo seja incluído em teorias
sociológicas ou de outra natureza que tratem de seres humanos.
A
relação entre o indivíduo e as estruturas sociais só pode ser
esclarecida se ambos forem investigados como entidades em mutação e
evolução.
Parsons
e todos os sociólogos da mesma inclinação imaginam que existam
separadamente essas coisas a que se referem os conceitos de
“indivíduo” e “sociedade”.
Não
surpreende encontrar em Parsons e em muitos outros teóricos modernos
no campo da sociologia uma tendência a reduzir processos a estados.
Parsons
toma como ponto de partida a hipótese de que todas as sociedades
existem normalmente em um estado de equilíbrio imutável (…). Elas
mudam, supõe ele, quando esse estado normal de equilíbrio social é
perturbado, por exemplo, pela violação de normas sociais, pela
quebra da conformidade.4 A mudança social surge, assim, como um
fenômeno resultante da disfunção acidental, externamente motivada,
de um sistema social normalmente bem-equilibrado. Além do mais, a
sociedade assim perturbada se esforça, na opinião de Parsons, para
voltar ao estado de repouso. Mais cedo ou mais tarde, segundo ele, um
“sistema” diferente, com um equilíbrio diferente, é
estabelecido. (…) O presente estudo sustenta a ideia, baseada em
abundante material documentário, de que a mudança é uma
característica normal da sociedade.
Essas
próprias ferramentas conceituais incluindo conceitos como
“estruturas” e “função”, que servem como emblemas da escola
sociológica moderna dos “funcionalistas estruturais” — trazem
a marca de um tipo específico de raciocínio, que reduz processos à
condição de estados.
E
assim aconteceu que o conceito de “desenvolvimento social”
desapareceu praticamente por completo das teorias sociológicas
modernas — paradoxalmente, numa fase de desenvolvimento social, em
que na real vida social e em parte também na pesquisa sociológica
empírica, as pessoas se interessam mais intensa e conscientemente do
que nunca pelos problemas do desenvolvimento social.
IX
A
rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga.
Elas formam o nexo do que é aqui chamado configuração, ou seja,
uma estrutura de pessoas mutuamente orientadas e dependentes. Uma vez
que as pessoas são mais ou menos dependentes entre si, inicialmente
por ação da natureza e mais tarde através da aprendizagem social,
da educação, socialização e necessidades recíprocas socialmente
geradas, elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer, apenas como
pluralidades, apenas como configurações. Este o motivo por que,
conforme afirmado antes, não é particularmente frutífero conceber
os homens à imagem do homem individual. Muito mais apropriado será
conjecturar a imagem de numerosas pessoas interdependentes formando
configurações (isto é, grupos ou sociedades de tipos diferentes)
entre si.
O
que temos em mente com o conceito de configuração pode ser
convenientemente explicado com referência às danças de salão.
Elas são na verdade, o exemplo mais simples que poderíamos
escolher.
Pensemos
na mazurca, no minueto, na polonaise, no tango, ou no rock’n’roll.
A imagem de configurações móveis de pessoas interdependentes na
pista de dança talvez torne mais fácil imaginar Estados, cidades,
famílias, e também sistemas capitalistas, comunistas e feudais como
configurações. Usando este conceito, podemos eliminar as antíteses,
chegando finalmente a valores e ideais diferentes, implicados hoje no
uso das palavras “indivíduo” e “sociedade”. Certamente
podemos falar na dança em termos gerais, mas ninguém a imaginará
como uma estrutura fora do indivíduo ou como uma mera abstração.
As mesmas configurações podem certamente ser dançadas por
diferentes pessoas, mas, sem uma pluralidade de indivíduos
reciprocamente orientados e dependentes, não há dança. Tal como
todas as demais configurações sociais, a da dança é relativamente
independente dos indivíduos específicos que a formam aqui e agora,
mas não de indivíduos como tais. Seria absurdo dizer que as danças
são construções mentais abstraídas de observações de indivíduos
considerados separadamente. O mesmo se aplica a todas as demais
configurações. Da mesma maneira que as pequenas configurações da
dança mudam — tornando-se ora mais lentas, ora mais rápidas —
também assim, gradualmente ou com maior subitaneidade, acontece com
as configurações maiores que chamamos de sociedades.
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