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12.5.20

ELIAS, Norbert. Introdução à edição de 1968. In: O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 214-251.


INTRODUÇÃO À EDIÇÃO DE 1968


I

Pensando e teorizando a respeito da estrutura e controle das emoções humanas nos dias correntes, contentamo-nos em geral em usar como prova observações colhidas nas sociedades mais desenvolvidas de hoje.

Não obstante, há numerosas observações relativamente acessíveis indicando que podem diferir o padrão e modelo de controle das emoções em sociedades que se encontrem em diferentes estágios de desenvolvimento, e mesmo em diferentes estratos da mesma sociedade.

Como e por que, no curso de transformações gerais da sociedade, que ocorrem em longos períodos de tempo e em determinada direção — e para as quais foi adotado o termo “desenvolvimento” —, a afetividade do comportamento e experiência humanos, o controle de emoções individuais por limitações externas e internas, e, neste sentido, a estrutura de todas as formas de expressão, são alterados em uma direção particular?
Essas mudanças são indicadas na fala diária quando dizemos que pessoas de nossa própria sociedade são mais “civilizadas” do que antes.

À frente do interesse sociológico no presente, encontramos processos de prazo relativamente curto.

As transformações a longo prazo das estruturas sociais e, por conseguinte, também, das estruturas da personalidade, perderam-se de vista na maioria dos casos.

O presente estudo diz respeito a esses processos de longo prazo.
Para começar, podemos distinguir duas direções principais nas mudanças estruturais das sociedades: as que tendem para maior diferenciação e integração, e as que tendem para menos.

São incontáveis as mudanças na sociedade que não implicam mudança em sua estrutura.

O primeiro volume concentra-se, acima de tudo, na questão de saber se a suposição, baseada em observações dispersas, de que há mudanças a longo prazo nas emoções e estruturas de controle das pessoas em sociedades particulares — mudanças que se desenvolvem ao longo de uma única e mesma direção durante grande número de gerações — pode ser confirmada por evidência fidedigna e encontrar comprovação factual.

É possível relacionar essa mudança a longo prazo nas estruturas da personalidade com mudanças a longo prazo na sociedade como um todo, que de igual maneira tendem a uma direção particular, a um nível mais alto de diferenciação e integração social?

A questão é se uma mudança estrutural da sociedade como um todo, tendendo a um nível mais alto de diferenciação e integração, pode ser demonstrada com ajuda de evidência empírica confiável. Isto se revelou possível.

II

O conceito de civilização, conforme demonstra o primeiro capítulo deste volume, tem sido frequentemente usado em sentido semimetafísico.

Aqui faz-se uma tentativa de isolar o núcleo factual a que se refere a ideia corrente, pré-científica, de processo civilizador. Este núcleo consiste principalmente na mudança estrutural ocorrida em pessoas na direção de maior consolidação e diferenciação de seus controles emocionais e, por conseguinte, de sua experiência (como, por exemplo, na forma de um avanço do patamar de vergonha e nojo) e de sua conduta (como, por exemplo, na diferenciação dos utensílios usados à mesa).

III

Este estudo ajuda a solucionar o renitente problema da ligação entre estruturas psicológicas individuais (as assim chamadas estruturas de personalidade) e as formas criadas por grandes números de indivíduos interdependentes (as estruturas sociais). E o faz porque aborda ambos os tipos de estruturas não como fixos, como em geral acontece, mas como mutáveis, como aspectos interdependentes do mesmo desenvolvimento de longo prazo.

IV

É característico do enfoque teórico de Parsons tentar dissecar analiticamente, em seus componentes elementares, como disse ele certa vez,1 os diferentes tipos de sociedades em seu campo de observação. A um tipo particular de componente elementar ele chamou de “variáveis de padrão”. Essas variáveis de padrão incluem a dicotomia entre “afetividade” e “neutralidade afetiva”. Sua concepção pode ser mais bem-entendida comparando-se a sociedade com um jogo de cartas: cada tipo de sociedade, na opinião de Parsons, representa uma “mão” diferente. As cartas, porém, são sempre as mesmas e seu número é pequeno, por mais diversas que sejam suas faces. Uma das cartas com que o jogo é disputado é a polaridade entre afetividade e neutralidade afetiva.

A “comunidade”, parece acreditar ele, caracteriza-se pela afetividade, e a “sociedade”, pela neutralidade afetiva.

O que, neste livro, com ajuda de extensa documentação empírica se mostra que é um processo, Parsons, pela natureza estática de seus conceitos, reduz retrospectivamente, e em minha opinião sem nenhuma necessidade, a estados. Em vez de um processo relativamente complexo, mediante o qual a vida afetiva das pessoas é gradualmente levada a um maior e mais uniforme controle de emoções — mas certamente não a um estado de total neutralidade afetiva —, Parsons sugere uma simples oposição entre dois estados, afetividade e neutralidade afetiva, que supostamente estariam presentes em graus diferentes em diferentes tipos de sociedade, tal como quantidades diferentes de substâncias químicas.
Ao reduzir a dois diferentes estados o que empiricamente se demonstrou neste livro ser um processo e que necessita ser interpretado teoricamente como tal, Parsons priva-se da possibilidade de descobrir como as peculiaridades das sociedades a que se refere devem ser realmente explicadas.

Os diferentes estados denotados pelas antíteses das “variáveis de padrão” são, ao que parece, simplesmente dados. Nesse tipo de teorização desaparece a mudança estrutural, sutilmente organizada, na direção de um maior e mais uniforme controle de emoções que pode ser observado na realidade. Os fenômenos sociais, na verdade, só podem ser observados como evoluindo e tendo evoluído. Sua dissecação por meio de pares de conceitos, que restringem a análise a dois estados antitéticos, representa um desnecessário empobrecimento da percepção sociológica tanto a nível empírico como teórico.

As categorias básicas selecionadas por Parsons parecem-me arbitrárias no mais alto grau. Subjacentes a elas há a noção tácita, não comprovada e supostamente axiomática, de que o objetivo de toda teoria científica é o de reduzir tudo o que é variável a algo invariável, e simplificar todos os fenômenos complexos dissecando-os em seus componentes individuais.
O exemplo da teoria de Parsons, no entanto, sugere que a teorização no campo da sociologia é mais complicada do que simplificada.

Este tipo de redução e abstração poderia justificar-se como método de teorização apenas se levasse, inequivocamente, a uma compreensão mais clara e profunda pelos homens de si mesmos como sociedades e como indivíduos. Em vez disso, descobrimos que as teorias formuladas por esses métodos, tal como a teoria do epiciclo de Ptolomeu, exigem construções auxiliares desnecessariamente complicadas

V

Um exemplo disto, e que será discutido mais extensamente adiante, é a tentativa que faz Parsons de elaborar um modelo teórico da relação entre estruturas de personalidade e estruturas sociais. Neste esforço, duas ideias não muito compatíveis são confundidas com frequência: a noção de que indivíduo e sociedade — “ego” e “sistema social” — seriam duas entidades existindo independentemente uma da outra, sendo o indivíduo considerado como a realidade concreta, e a sociedade tratada como epifenômeno, — e a noção de que as duas são planos diferentes, mas inseparáveis, do universo formado pelo homem.

(…) “indivíduo” e “sociedade” não dizem respeito a dois objetos que existiriam separadamente. (…) Ambos se revestem do caráter de processos e não há a menor necessidade, na elaboração de teorias sobre seres humanos, de abstrair-se este processo-caráter.

É indispensável que o conceito de processo seja incluído em teorias sociológicas ou de outra natureza que tratem de seres humanos.

A relação entre o indivíduo e as estruturas sociais só pode ser esclarecida se ambos forem investigados como entidades em mutação e evolução.

Parsons e todos os sociólogos da mesma inclinação imaginam que existam separadamente essas coisas a que se referem os conceitos de “indivíduo” e “sociedade”.

Não surpreende encontrar em Parsons e em muitos outros teóricos modernos no campo da sociologia uma tendência a reduzir processos a estados.

Parsons toma como ponto de partida a hipótese de que todas as sociedades existem normalmente em um estado de equilíbrio imutável (…). Elas mudam, supõe ele, quando esse estado normal de equilíbrio social é perturbado, por exemplo, pela violação de normas sociais, pela quebra da conformidade.4 A mudança social surge, assim, como um fenômeno resultante da disfunção acidental, externamente motivada, de um sistema social normalmente bem-equilibrado. Além do mais, a sociedade assim perturbada se esforça, na opinião de Parsons, para voltar ao estado de repouso. Mais cedo ou mais tarde, segundo ele, um “sistema” diferente, com um equilíbrio diferente, é estabelecido. (…) O presente estudo sustenta a ideia, baseada em abundante material documentário, de que a mudança é uma característica normal da sociedade.

Essas próprias ferramentas conceituais incluindo conceitos como “estruturas” e “função”, que servem como emblemas da escola sociológica moderna dos “funcionalistas estruturais” — trazem a marca de um tipo específico de raciocínio, que reduz processos à condição de estados.

E assim aconteceu que o conceito de “desenvolvimento social” desapareceu praticamente por completo das teorias sociológicas modernas — paradoxalmente, numa fase de desenvolvimento social, em que na real vida social e em parte também na pesquisa sociológica empírica, as pessoas se interessam mais intensa e conscientemente do que nunca pelos problemas do desenvolvimento social.

IX

A rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga. Elas formam o nexo do que é aqui chamado configuração, ou seja, uma estrutura de pessoas mutuamente orientadas e dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou menos dependentes entre si, inicialmente por ação da natureza e mais tarde através da aprendizagem social, da educação, socialização e necessidades recíprocas socialmente geradas, elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer, apenas como pluralidades, apenas como configurações. Este o motivo por que, conforme afirmado antes, não é particularmente frutífero conceber os homens à imagem do homem individual. Muito mais apropriado será conjecturar a imagem de numerosas pessoas interdependentes formando configurações (isto é, grupos ou sociedades de tipos diferentes) entre si.

O que temos em mente com o conceito de configuração pode ser convenientemente explicado com referência às danças de salão. Elas são na verdade, o exemplo mais simples que poderíamos escolher.

Pensemos na mazurca, no minueto, na polonaise, no tango, ou no rock’n’roll. A imagem de configurações móveis de pessoas interdependentes na pista de dança talvez torne mais fácil imaginar Estados, cidades, famílias, e também sistemas capitalistas, comunistas e feudais como configurações. Usando este conceito, podemos eliminar as antíteses, chegando finalmente a valores e ideais diferentes, implicados hoje no uso das palavras “indivíduo” e “sociedade”. Certamente podemos falar na dança em termos gerais, mas ninguém a imaginará como uma estrutura fora do indivíduo ou como uma mera abstração. As mesmas configurações podem certamente ser dançadas por diferentes pessoas, mas, sem uma pluralidade de indivíduos reciprocamente orientados e dependentes, não há dança. Tal como todas as demais configurações sociais, a da dança é relativamente independente dos indivíduos específicos que a formam aqui e agora, mas não de indivíduos como tais. Seria absurdo dizer que as danças são construções mentais abstraídas de observações de indivíduos considerados separadamente. O mesmo se aplica a todas as demais configurações. Da mesma maneira que as pequenas configurações da dança mudam — tornando-se ora mais lentas, ora mais rápidas — também assim, gradualmente ou com maior subitaneidade, acontece com as configurações maiores que chamamos de sociedades.

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