Prefácio à edição inglesa
ERIC DUNNING E STEPHEN MENNELL
Os alemães é a obra mais importante
de Norbert Elias desde a publicação de O processo civilizador. Sua
tradução em inglês é, portanto, um evento sociológico de
inegável significação.
Studien über die Deutschen foi
publicado em 1989, exatamente cinqüenta anos após O processo
civilizador 1 e um ano antes da morte de Norbert Elias.
Não é um texto contínuo sobre o
qual Elias tivesse trabalhado nos dois ou três anos que precederam
sua publicação; trata-se, antes, de uma seleção de ensaios e
conferências em que trabalhara, em alguns casos, ao longo dos
últimos trinta anos.
Sugere ele, “assim como no
desenvolvimento de uma pessoa individual, as experiências de
períodos anteriores de sua vida continuam tendo um efeito no
presente, também as experiências passadas influem no
desenvolvimento de uma nação.” Os alemães corrobora amplamente
essa proposição. Assim, através de um hábil entrelaçamento de
provas empíricas e argumentos teóricos, Elias aponta os muitos
caminhos em que aquelas características do habitus, da
idiossincrasia, da personalidade, da estrutura social e do
comportamento do alemão que se combinaram para produzir a ascensão
de Hitler e os genocídios nazistas podem ser entendidas como
resultantes do passado da Alemanha.
Por “habitus” — uma palavra que
usou muito antes de sua popularização por Pierre Bourdieu3 —
Elias significa basicamente “segunda natureza” ou “saber social
incorporado”.
Elias afirma que “os destinos de uma
nação ao longo dos séculos vêm a ficar sedimentados no habitus de
seus membros individuais” (p.30), e daí decorre que o habitus muda
com o tempo precisamente porque as fortunas e experiências de uma
nação (ou de seus agrupamentos constituintes) continuam mudando e
acumulando-se.
Em parte, Os alemães pode ser
considerado uma ampliação da comparação entre o desenvolvimento
da Grã-Bretanha, França e Alemanha que transcorre ao longo de O
processo civilizador
A sua tese central é de que a
facilidade e rapidez com que Estados centralizados emergiram na
Europa Ocidental dependeu, ceteris paribus, do tamanho das formações
sociais envolvidas e, assim, da extensão das divergências
geográficas e sociais existentes.
De todos os eventos que ocorreram até
agora no século XX, o genocídio nazista foi aquele que infligiu o
maior choque à imagem que a população européia tinha de si mesma,
tão fortemente impregnada pela idéia de “civilização”. Mas o
que quer que possa ter sido, e por mais que envolvesse o uso de
técnicas “civilizadas” como formas burocráticas “racionais”
de administração, os genocídios dificilmente podem ser descritos,
por maior que seja o esforço de imaginação, como algo
“civilizado”. De fato, eram extremamente “incivilizados” e
ocorriam no contexto do que Elias descreveu como um “colapso de
civilização.
A publicação desta tradução de Os
alemães ajudará inevitavelmente a corrigir a percepção errônea
da teoria dos processos civilizadores como uma teoria “otimista”,
“unilinear” e de “progresso” da história humana, e a
promover um reconhecimento mais amplo do lugar dos processos des
civilizadores dentro da teoria geral. Elias reconheceu claramente que
processos civilizadores e descivilizadores podem ocorrer
simultaneamente em determinadas sociedades, e não apenas nas mesmas
ou em diferentes sociedades em diferentes pontos do tempo.
Introdução
O quadro de eventos elaborado por
alguém que é pessoalmente afetado por eles difere usualmente, de
modo característico, daquele que se forma quando observados com a
imparcialidade e o distanciamento de um pesquisador.
Tentativa de destrinçar
desenvolvimentos no habitus nacional alemão que possibilitaram o
violento surto descivilizador da época de Hitler, e apurar as
conexões entre eles e o processo a longo prazo de formação do
Estado na Alemanha.
É mais fácil, em princípio,
reconhecer os elementos compartilhados do habitus nacional no caso de
outros povos do que no daquele a que se pertence.
Adquirir consciência das
peculiaridades do habitus da nossa própria nação requer um esforço
específico de autodistanciamento.
Torna-se tão logo evidente que o
habitus nacional de um povo não é biologicamente fixado de uma vez
por todas; antes, está intimamente vinculado ao processo particular
de formação do Estado a que foi submetido.
No passado recente, a Grã-Bretanha é
um exemplo impressionante das dificuldades que uma grande potência
de primeira ordem tem tido para ajustar-se ao seu rebaixamento a
potência de segunda ou terceira classe.
Uma reação freqüente, nesse caso, é
negar a realidade do próprio declínio. As pessoas comportam-se como
se nada tivesse acontecido. Depois, quando não podem continuar
escondendo mais de si mesmas que sua sociedade perdeu toda e qualquer
possibilidade de ocupar uma posição nas categorias mais elevadas da
hierarquia, seja de tribos ou de Estados, e assim perdeu, ao mesmo
tempo, uma parcela de sua independência, então o habitus dos
membros dessa sociedade mostra usualmente sinais de depressão.
Começa uma fase de pesar e lamentação pela grandeza perdida.
Para os alemães, uma existência à
sombra de um passado mais grandioso nada tem de novidade. O império
alemão medieval e, em particular, alguns dos mais notáveis
imperadores medievais serviram por muito tempo como símbolos de uma
Grande Alemanha que se perdera — e, por isso mesmo, também como
símbolos de uma secreta aspiração à supremacia na Europa.
Especialistas calculam que durante a
Guerra dos Trinta Anos a Alemanha perdeu um terço de sua população.
No contexto do desenvolvimento alemão, esses trinta anos de guerra
representam uma catástrofe. Deixaram marcas permanentes no habitus
alemão. Na memória dos franceses, ingleses e holandeses, o século
XVII é descrito como um dos mais brilhantes em relação ao
desenvolvimento destes povos, um período de grande criatividade
cultural e de crescente pacificação e civilização. Para a
Alemanha, entretanto, esse século foi um período de empobrecimento,
inclusive de empobrecimento cultural, e de crescente brutalidade
entre as pessoas.
A fragilidade estrutural do Estado
alemão, a qual tentava constantemente as tropas estrangeiras de
países vizinhos a invadir seu território, produziu uma reação
entre os alemães que levou a conduta militar e as ações bélicas a
serem altamente respeitadas e, com freqüência, idealizadas.
Para muitos alemães, a derrota de
1918 foi uma experiência inesperada e altamente traumática. Atingiu
um ponto sensível no habitus nacional e foi sentida como um regresso
ao tempo da fraqueza alemã, dos exércitos estrangeiros no país, de
uma vida na sombra de um passado mais grandioso.
Muitos membros das classes média e
superior alemãs — talvez a grande maioria — sentiram que não
poderiam viver com tamanha humilhação. Concluíram que deviam
preparar-se para a guerra seguinte, com melhores chances de uma
vitória alemã, mesmo que, no começo, não estivesse claro como
isso poderia ser feito.
Vislumbrou-se a realização de um
sonho em que, depois do primeiro império medieval, o Sacro Império
Romano da Nação Germânica, e depois do Segundo Império
(Kaiserreich) criado por Bismarck e destroçado com a derrota militar
em 1918, um Terceiro Império — o Terceiro Reich — surgiria sob a
liderança de Adolf Hitler.
Comparado com outras sociedades
européias, por exemplo, a francesa, britânica ou holandesa, o
desenvolvimento do Estado na Alemanha mostra um número muito maior
de rupturas e correspondentes descontinuidades.
A Revolução Francesa representou,
certamente, uma ruptura na continuidade da tradição nacional. Mas,
nessa altura, a língua e o habitus franceses eram já tão estáveis,
em geral, que a continuidade do desenvolvimento manteve-se em muitos
campos, apesar da ruptura com o Ancien Régime.
O caráter cortesão-aristocrático da
língua francesa não se perdeu quando a burguesia francesa se tornou
o grupo de poder que estabelecia modelos. É difícil ignorar a
semelhança entre os romances de Proust e as memórias de
Saint-Simon. Conheço poemas franceses do século XIX que lembram os
grandes poetas da Pléiade no século XVI, mas que são, não
obstante, criações inequívocas de seu tempo.
Os conflitos entre a classe média e
os estratos da aristocracia de corte na Alemanha setecentista, que
examinei demoradamente na primeira parte de O processo civilizador,4
constituíram a expressão de um verdadeiro conflito de classes.
Vastos círculos da classe média
alemã conciliaram-se com o Estado militar e adotaram seus modelos e
normas. Uma variedade particular de classe média entrou assim em
cena: burgueses que adotaram o estilo de vida e as normas da nobreza
militar como seus próprios.
Tratei a expansão de modelos
militares em setores da classe média alemã de forma mais precisa
porque acredito que o nacional- socialismo e o violento surto
descivilizador que ele encarnou não podem ser completamente
entendidos sem referência a esse contexto.
É bastante significativo em termos do
padrão relativamente elevado de civilização da humanidade
contemporânea o fato de, após duas implacáveis e destrutivas
guerras em que a Alemanha lutou — em parte com uma pretensão de
superioridade natural, racialmente determinada — a Alemanha
Ocidental, pelo menos, poder levar uma vida razoavelmente normal como
próspero Estado industrial.
Talvez se deva extrair dessa
experiência a conclusão de que a percepção que temos de nós
próprios como indivíduos independentes é falsa. Quer se queira ou
não, um indivíduo é sempre membro de grupos. A língua que ele
fala é uma língua de uso comum. É conjuntamente responsável,
é-lhe atribuída responsabilidade conjunta pelas ações do grupo.
Durante séculos, as igrejas fizeram meus ancestrais judeus
responsáveis pela crucificação de Jesus. É muito útil
perguntarmo-nos se não temos imagens depreciativas ou degradantes de
outros grupos em nossa própria cabeça e se, quando encontramos
indivíduos desses grupos, não procuramos involuntariamente a prova
de que é correto o quadro estereotipado do grupo que temos em mente.
Um outro exemplo claro de orgulho
nacional é visto nos Estados Unidos, onde, até agora, a
transformação de imigrantes de todo o mundo em americanos tem sido
surpreendentemente bem-sucedida. O serviço nas forças armadas, o
culto da ban
Os destinos de uma nação
cristalizam-se em instituições que têm a responsabilidade de
assegurar que as pessoas mais diferentes de uma sociedade adquiram as
mesmas características, possuam o mesmo habitus nacional. A língua
comum é um exemplo imediato. Mas há muitos outros.
No primeiro capítulo deste livro,
examino o duelo, que estava desenvolvido de uma forma deveras
impressionante na Alemanha, como um excelente exemplo da influência
de instituições na formação do habitus.
Escolhi o duelo como um símbolo de
uma síndrome cultural específica. É um símbolo de uma determinada
atitude humana, um incentivo socialmente regulamentado à violência.
Se perguntarmos como Hitler foi
possível, não podemos deixar de concluir que a propagação de
modelos de violência socialmente sancionados e da desigualdade
social estão entre os requisitos preliminares do seu advento.
A questão central é como os destinos
de uma nação ao longo dos séculos vêm a ficar sedimentados no
habitus de seus membros individuais. Os sociólogos enfrentam neste
caso uma tarefa que recorda, ainda que a uma boa distância, a tarefa
a que Freud se dedicou. Ele tentou mostrar a conexão entre a
conseqüência da canalização de pulsões dominadas por conflitos
no desenvolvimento de uma pessoa e o seu habitus resultante. Mas
também existem conexões análogas entre o destino e as experiências
a longo prazo de um povo e seu habitus social em qualquer época
subseqüente.
Muitas pessoas parecem ter a opinião
tácita de que “O que aconteceu no século XII ou XV ou XVIII é
passado — o que é que isso tem a ver comigo?”. Na realidade,
porém, os problemas contemporâneos de um grupo são crucialmente
influenciados por seus êxitos e fracassos anteriores, pelas origens
ignotas de seu desenvolvimento.
O problema do passado é importante.
Em muitos aspectos, ainda está inteiramente por resolver.
III Civilização e Violência
A civilização a que me refiro nunca
está completa, e está sempre ameaçada. Corre perigo porque a
salvaguarda dos padrões mais civilizados de comportamento e
sentimento em sociedade depende de condições específicas. Uma
destas é o exercício de autodisciplina, relativamente estável, por
cada pessoa. Isto, por sua vez, está vinculado a estruturas sociais
específicas. Estas incluem o fornecimento de bens — ou seja, a
manutenção do habitual padrão de vida. Incluem também, sobretudo,
a resolução pacífica de conflitos intra-estatais — isto é, a
pacificação social. Mas a pacificação interna de uma sociedade
também está sempre correndo perigo. Ela é ameaçada por conflitos
tanto sociais quanto pessoais, que são atributos normais da vida em
comunidade humana — os próprios conflitos que as instituições
pacificadoras estão interessadas em dominar.
É costume perguntar-se como é
possível que pessoas vivendo numa sociedade podem agredir
fisicamente ou matar outras — como podem, por exemplo, tornar-se
terroristas? Ajustar-se-ia melhor aos fatos e seria, assim, mais
proveitoso, se a pergunta fosse formulada de modo diferente. Deveria,
antes, ser redigida em termos como estes: Como é possível que
tantas pessoas consigam viver normalmente juntas em paz, sem medo de
ser atacadas ou mortas por pessoas mais fortes do que elas, como é
hoje em dia o caso, em grande parte, nas grandes sociedades-Estados
da Europa, América, China ou Rússia?
É por demais fácil esquecer hoje o
fato de que jamais, em todo o desenvolvimento da humanidade, tantos
milhões de pessoas viveram, como hoje, relativamente em paz umas com
as outras, com as agressões físicas geralmente eliminadas, como se
observa nos grandes Estados e cidades do nosso tempo.
Esse é exatamente o problema que
tenho em mente, uma vez que tudo isso — cólera, ódio, inimizade,
rivalidade — ainda está conosco, mas os ataques físicos, e até o
homicídio, retrocederam, comparativamente falando, para segundo
plano.
A questão de como ocorreu tal
pacificação não é — pelo menos à primeira vista — difícil
de responder. A criação de espaços sociais duradouramente
pacificados está ligada à organização da vida social na forma de
Estados. Um aspecto desse problema foi examinado pela primeira vez
por Max Weber. Sublinhou ele que os Estados são caracterizados pelas
pessoas que são seus governantes e que, em qualquer época dada,
reivindicam para si mesmas o monopólio da força física. Isso
significa que vivemos numa forma de organização social onde os
governantes têm à sua disposição grupos de especialistas que
estão autorizados a usar a força física em emergências e também
a impedir outros cidadãos de fazerem o mesmo.
Tal como a descoberta do fogo permitiu
que o alimento fosse cozido, assim como a destruição de cabanas e
casas pelas chamas; tal como a invenção da metalurgia acarretou
grande progresso na agricultura e na guerra; tal como a energia
atômica pôde ter um uso pacífico como fonte energética e ser uma
arma terrível, também as invenções sociais são bifrontes. O
aparecimento de monopólios da força física constitui um exemplo.
Sou obrigado a deixar de lado aqui esse aspecto do problema. Mas um
ponto fica desde já claro: uma propriedade desse monopólio estatal
da força física é que ele pode servir às pessoas como uma
perigosa arma.
Dos faraós às ditaduras do presente,
o controle sobre o monopólio da força tem sido usado por pequenos
grupos estabelecidos como decisiva fonte de poder para garantir seus
próprios interesses.
Entretanto, para aqueles que o
controlam, essa não é a única função do monopólio estatal da
força. Desempenha também uma função importante para populações
reunidas na forma de Estados. Esse controle tem sido, até agora, uma
condição essencial da pacificação interna de maiores unidades
sociais, em especial da pacífica vida comunitária das maiores
massas populacionais nos Estados industriais mais desenvolvidos —
uma condição que, por sua vez, está intimamente ligada ao
monopólio da tributação, uma vez que, sem tributação, não pode
haver portadores de armas, as forças armadas ou a polícia, e sem
forças armadas e polícia, nada de impostos.
A pacificação das pessoas como
indivíduos, o fato de que, em conflitos, só muito raramente
cogitamos atacar um adversário e começar uma briga, por muito
zangados que estejamos, depõe a favor de uma profundamente arraigada
transformação civilizadora da estrutura inteira da personalidade.
Que o tabu contra atos violentos
esteja tão profundamente inculcado nos jovens das sociedades-Estados
mais desenvolvidas tem muito a ver com a crescente eficácia do
monopólio estatal da força. Com o decorrer do tempo, as estruturas
da personalidade dos indivíduos acabaram ficando orientadas para
isso. Eles desenvolveram uma certa relutância ou mesmo profunda
aversão, um tipo de repugnância, em relação ao uso de violência
física.
A pacificação do Estado, a coação
imposta por outros, foi transformada em autocoação.
A situação é ainda mais complicada
pelo fato de não existir monopólio da força no nível
internacional. Nesse nível, estamos basicamente vivendo ainda tal
qual os nossos antepassados do chamado período de “barbarismo”.
Assim como, outrora, cada tribo era um constante perigo para as
outras tribos, também hoje em dia, cada Estado representa um perigo
constante para os outros Estados.
Um mecanismo de ameaça e medo
recíprocos — chamo a isso um processo de dupla ligação —
impele os Estados a tornarem-se mais fortes e mais poderosos do que
outros, a fim de não serem por eles suplantados.5
Seria, penso eu, uma bela tarefa
escrever a “biografia” de uma sociedade-Estado, por exemplo, a
Alemanha. Pois, assim como no desenvolvimento de uma pessoa
individual, as experiências de períodos anteriores de sua vida
continuam tendo um efeito no presente, também as experiências
passadas influem no desenvolvimento de uma nação.
Numa biografia da Alemanha seria
imprescindível descrever como esse sentimento de fraqueza e de
inferioridade de poder se converteu de súbito no seu oposto, quando
o outrora escassamente integrado Estado veio, ainda que tardiamente,
a unificar-se no contexto de uma guerra vitoriosa. No lugar dos
sentimentos de inferioridade nacional, cujas raízes eram, com
freqüência, muito profundas, surgiam agora os sentimentos
fortemente enfatizados de grandeza e poderio nacionais.
Tal como em outros casos, também
neste, um grupo previamente humilhado e oprimido transformou-se, com
uma mudança em sua situação, num grupo arrogante e repressivo, ou,
para usar a linguagem contemporânea, numa nação de senhores
(Herrenvolk).
Não se pode entender completamente o
desenvolvimento da Alemanha, nem a atitude atual quanto ao uso da
força dentro da República Federal, sem ter em mente essa linha de
desenvolvimento da posição da Alemanha no contexto interestatal e,
correspondentemente, nas hierarquias de poder e status dos Estados. É
impossível, neste caso, separar as linhas de desenvolvimento inter-
e intra-estatais; de um ponto de vista sociológico, as estruturas
intra-estatais e interestatais são inseparáveis, muito embora a
tradição sociológica tenha envolvido até agora uma concentração,
principalmente, e muitas vezes exclusivamente, nas primeiras. O
desenvolvimento da Alemanha mostra, com particular clareza, como os
processos entre e dentro do Estados estão indissoluvelmente
interligados.
A vitória nacional sob a liderança
de uma aristocracia de corte e militar significou, ao mesmo tempo,
uma derrota social da burguesia alemã na luta interna contra a
supremacia da nobreza e teve conseqüências da maior importância
para as atitudes políticas e sociais da classe média alemã.
Ocorreu em outros segmentos da
burguesia, sobretudo no alto funcionalismo civil e em todo o mundo
acadêmico, a adoção de valores aristocráticos, a saber, os
valores de uma classe com uma forte tradição guerreira e que estava
orientada para a política das relações internacionais. Por outras
palavras, setores da classe média alemã foram absorvidos pelos
estratos superiores da sociedade e adotaram destes o ethos guerreiro.
Mas, ao ser adotado, esse código
aristocrático foi transformado. Em poucas palavras, tornou-se
“aburguesado”. Nos círculos aristocráticos, os valores
militares, consubstanciados em símbolos conceituais como coragem,
obediência, honra e disciplina, responsabilidade e lealdade, faziam
usualmente parte de uma longa tradição familiar.7
Uma vez que os anseios de unificação
tinham sido realizados através de guerras vitoriosas sob a liderança
militar da aristocracia, foi aduzida a conclusão de que guerra e
violência também eram bons e esplêndidos instrumentos políticos.8
Enquanto que, para muitos nobres, a
guerra e as intrigas diplomáticas eram um ofício costumeiro, uma
especialidade em que eles eram peritos, entre aqueles setores da
pacífica burguesia que haviam assimilado o código guerreiro podia
ser observada uma romantização do poder, uma literatura em que o
poder ganho pela força apresentava-se sob formas embelezadas, como
um valor altamente apreciado. Nietzsche, que participara por
algum tempo na guerra de 1871, entre a Alemanha e a França, como
enfermeiro voluntário, deu forma filosófica a essa ideologia da
burguesia guilhermina, quase certamente sem ter consciência disso,
em seu livro Vontade de potência. (Ver o apêndice 1 a esta parte,
p.187-9).
O que pode ser considerado
característico da situação da burguesia alemã, em 1912, é o fato
de que esse tipo de brutalidade, sob uma nova luz, é apresentado
expressamente como sinal de um código de comportamento aceito e
digno de louvor.
A identificação mútua dos seres
humanos, que foi talvez um tanto exagerada pelo idealismo dos autores
clássicos, seria enfaticamente negada nesses mais recentes grupos,
em favor de uma identificação exclusivamente nacional. Na guerra,
as pessoas comuns do lado inimigo não precisavam mais ser tratadas
como seres humanos. Essas pessoas não são mais do que “bestas
selvagens e malignas”.
Muitos jovens alemães foram para os
campos de batalha em 1914 com a idéia de que a guerra era algo
maravilhoso, grandioso, um inenarrável momento de glória. Estavam
impregnados de um sentimento de vitória certa,10 no qual se refletia
a força de seus sonhos sobre a futura Grande Alemanha.
O inconcebível tornou-se um fato. A
Alemanha exauriu sua energia e foi derrotada. O Kaiser e os príncipes
perderam seus tronos. As cortes, centros da “boa sociedade” da
Alemanha, desapareceram.
O fim do regime, e a destruição do
país após a guerra perdida, aumentaram as oportunidades de chegada
ao poder de grupos anteriormente à margem, em primeiro e destacado
lugar, as organizações de trabalhadores.
Como sempre em tais casos, a ascensão
de grupos marginais que costumavam estar em posições inferiores na
escala social — um antigo fabricante de arreios foi o sucessor do
Kaiser — foi sentida por muitos membros da “boa sociedade”
alemã como uma insuportável ferida em seus sentimentos de
auto-estima.
Não só revoluções, mas também
guerras, trazem à luz mudanças estruturais em relações de poder,
mudanças essas já em curso no tecido institucional tradicional, mas
previamente encobertas por esse mesmo tecido. Uma guerra vitoriosa
teria provavelmente garantido, uma vez mais, a subordinação das
massas à liderança das classes vencedoras. A guerra perdida teve
como efeito a redistribuição de forças que vinha ocorrendo
silenciosamente sob a superfície do Estado imperial, estimulada pela
rápida industrialização da Alemanha.
Tais casos de perda de poder por
antigos sistemas institucionais em relação a novos grupos
ascendentes desencadeiam acirrada resistência — um anseio nada
realista de restauração da antiga ordem — não só por razões
econômicas, mas também porque, através de tal perda de poder, os
antigos estratos dominantes viram-se colocados no mesmo nível de
poder e status daqueles grupos que eles antes desprezavam: grupos de
baixa extração social, de menor valor humano, a ralé. Por
conseguinte, sentiram-se diminuídos em sua própria auto-estima.
Havia nessa época uma idéia
generalizada entre os membros dos círculos que seguiam a tradição
do velho establishment guilhermino, de que a participação na
liderança governante de grupos considerados de status social
inferior subentendia um aviltamento deles próprios e, por
conseguinte, também da Alemanha. Intitulavam-se a si próprios — e
sentiam-se — “nacionais”, uma vez que se consideravam
fundamentalmente os verdadeiros representantes da nação; e todos os
“marginais”, sobretudo os trabalhadores com suas organizações e
os grupos minoritários, como os judeus alemães, eram vistos como
não pertencentes nem à sua própria sociedade nem à nação alemã.
Tal como a maioria dos terroristas na
República Federal, os da Alemanha de Weimar também eram
predominantemente oriundos de famílias de classe média. Eram, em
sua grande maioria, jovens, e uma minoria de nobres.
A Revolução Russa desempenhou um
grande papel a esse respeito — como modelo e como aterradora
advertência.
O Partido Comunista tentou,
evidentemente, transformar a excitação espontânea dos
trabalhadores e as numerosas escaramuças e refregas locais, com os
Freikorps ou o exército, numa ação militar organizada.
O equilíbrio de forças entre os dois
grupos orientados para a violência na República de Weimar, entre os
grupos de trabalhadores orientados para o modelo russo e os de
oficiais de extração nobre e burguesa organizados nos Freikorps,
era, reconhecidamente, muito desproporcional. A despeito de sua
conduta e mentalidade freqüentemente mercenária, os Freikorps eram
disciplinadas tropas de choque cujos membros estavam impregnados na
tradição militar, desde que sua confiança fosse alimentada por
líderes a quem não faltava, por vezes, uma certa dose de carisma.
Contra eles estavam os grupos comparativamente indisciplinados que,
embora fossem capazes, com freqüência, de oferecer luta imediata e
espontânea, não se compraziam na disciplina militar a longo prazo,
necessária à execução de planos estratégicos de batalha.
Os
Freikorps levavam facilmente a melhor em suas refregas com os grupos
de trabalhadores radicais, uma vez que também recebiam com
freqüência o apoio do exército. Estavam não só melhor treinados
mas, sobretudo, muito melhor armados que os grupos de combate dos
trabalhadores.
Mas para a legitimação de sua
própria existência, o perigo do bolchevismo era do maior
significado para os Freikorps e o exército. Ao aludirem à Revolução
Russa e ao perigo de sua expansão, não só os Freikorps e o
exército, mas também muitas outras associações nacionalistas que
se formaram nessa época, sem esquecer as organizações terroristas,
puderam ganhar o apoio de inúmeros simpatizantes nobres e burgueses.
O êxito subseqüente de Hitler e, em
especial, a inação dos Aliados a respeito do rearmamento da
Alemanha, só podem ser entendidos como conseqüência da Revolução
Russa; foi uma expressão da aversão universal de vastos setores da
classe média, e até de consideráveis parcelas da classe
trabalhadora, ao espectro do bolchevismo e à expansão da Revolução
Russa como modelo para outros países.
Foi afirmado, de fato, não sem
justificação, que a ascensão de Hitler ao poder dificilmente teria
sido possível sem a contribuição organizacional e militar dos
antigos membros dos Freikorps.
Salomon: “A palavra ‘avanço’,
para aqueles de nós que fomos para o Báltico, tinha um significado
misterioso, alegremente perigoso… o significado de uma camaradagem
vigorosa… a dissolução de todos os vínculos com um mundo que
está afundando, apodrecendo, com o qual o verdadeiro guerreiro não
pode continuar a ter algo em comum”.24
Uma etapa característica do processo
pelo qual as pessoas se tornam terroristas é ilustrado aqui com
muita clareza. Eles sentem-se como proscritos em relação a uma
sociedade que parece estar pobre até o âmago.
Aquilo com que essas pessoas estavam
fundamentalmente sonhando era com a restauração do antigo mundo, ou
seja, a restauração de um império alemão com um poderoso
exército, e em cuja hierarquia de status o oficialato e os valores
militares ocupariam de novo o alto lugar que lhes era apropriado
Sobreveio então o golpe que destruiu
todas as esperanças. Aconteceu o impensável. Com autorização do
governo, representantes seus assinaram o terrível tratado de paz que
selou a humilhante derrota.
Sob a pressão da Entente e de acordo
com os termos do tratado de paz, o governo de Berlim ordenou
finalmente a retirada dos Freikorps do Báltico. Em face disso,
muitos dos guerrilheiros rejeitaram sua obediência ao governo
alemão.
Por fim, os desesperados
guerrilheiros, com suas esperanças destruídas, enfureceram-se.
Salomon, entre outros,30 descreveu o que aconteceu então. Uma vez
mais, eles contra-atacaram — com fúria e desespero —, perdidos
os últimos remanescentes de sua humanidade: “Desferimos a última
estocada. Sim, erguemo-nos uma vez mais e avançamos, numa arrancada
fulminante. Até o último homem, saímos todos para campo aberto e
corremos na direção da floresta. Atravessamos correndo os campos
cobertos de neve e penetramos na floresta. Chegamos atirando contra a
multidão colhida de surpresa, golpeando, caçando, abatendo quem
surgisse pela frente. Afugentamos os letões, como raposas correndo
pelos campos, tocamos fogo em todas as casas, pulverizamos todas as
pontes e derrubamos todos os postes telegráficos. Jogamos os
cadáveres em poços e granadas de mão em cima deles. Matamos todos
os que nos caíam em mãos, queimamos tudo o que podia arder. Víamos
tudo vermelho, já não tínhamos qualquer sentimento humano em
nossos corações”.
Se investigarmos as condições numa
sociedade em que formas civilizadas de comportamento e de consciência
começam a dissolver-se, veremos, uma vez mais, algumas das etapas
desse trajeto. É um processo de brutalização e desumanização
que, em sociedades relativamente civilizadas, requer um tempo
considerável.
Se reconhecermos o curso de
desenvolvimento dos Freikorps como um dos caminhos que levaram a atos
de violência terrorista extra-estatal durante a República de
Weimar, assim como aos atos de violência estatal na era de Hitler,
então obteremos um grau de entendimento do longo período de
acumulação e estruturação que precedeu os grandes atos de
barbarismo que, no começo, eram quase invisíveis mas depois
tornaram-se mais óbvios, como se tivessem brotado do nada.
Entregaram-se à tarefa de destruir um
mundo que lhes negava qualquer significado e que, portanto, lhes
parecia ser ele próprio destituído de significação
Hitler teve êxito onde os líderes
dos Freikorps falharam: na destruição total do regime parlamentar
de Weimar.32 Teve êxito, em grande parte, porque se esforçou por
mobilizar vastos setores das massas através do uso de propaganda
extraparlamentar.
Hitler, o segundo cabo, rompeu as
barreiras elitistas do movimento de oficiais e estudantes e
transformou-o num vasto movimento popular sem as restrições
elitistas que impediam sua disseminação entre as massas. Ser membro
da “raça alemã” abriu a porta a muito mais gente do que a mera
pertença à “boa” sociedade nobre e burguesa e, na juventude, ao
oficialato ou às associações estudantis.
O sentimento de estar encarcerado num
sistema social que tornava muito difícil para as gerações mais
jovens encontrarem oportunidades para um futuro pleno de significado.
Essa motivação fundamental tem sido
discernível repetidas vezes no testemunho dos movimentos
extraparlamentares, desde a década de 1960 até o presente. Mas
usualmente permanece mais periférica. Desaparece com freqüência
atrás de um véu de marxismo ou seus derivados. Em minha opinião,
entretanto, é uma motivação central. Obstrui-se a visão de um
problema social muito sério do nosso tempo quando não se reconhece
isso.
Há um pressuposto tácito nas
sociedades industriais multipartidárias de hoje que impede a
percepção desse problema. De acordo com esse pressuposto, as
sociedades em questão encontram-se construídas de tal modo, que
toda e qualquer pessoa pode encontrar uma tarefa significativa e
gratificante na vida, desde que ele ou ela se esforce ao máximo por
consegui-la. Isso é falacioso. Existem fases distintas nessas
sociedades em que os canais para a mobilidade ascendente das gerações
jovens e vindouras são relativamente numerosos e abertos, e outras
em que são limitados e restritos
Para os jovens oriundos da classe
média, especialmente os jovens estudantes, a questão do futuro: “O
que virei a ser? Que forma devo dar à minha vida?”, é usualmente
uma indagação central e muito urgente. O desejo de um futuro que
seja significativo para a pessoa, que ela sinta ser gratificante, é
mais forte e, por conseguinte, a busca de significado mais
consciente.
Se um considerável número de jovens
teve sufocadas suas oportunidades de expressão, como ainda hoje
ocorre com freqüência, então existe uma emergência na sociedade,
um potencial explosivo que, sob condições favoráveis encontrará
repercussão, repetidas vezes, em movimentos que se colocam em
pronunciada oposição às instituições políticas estabelecidas.
Como reação à lembrança traumática
da desumanidade do período de Hitler, um ethos muito acentuado de
resistência à desigualdade, à opressão, à exploração e à
guerra, e a favor de um novo tipo de decência entre os seres
humanos, passou a ser aceito pelas pessoas mais jovens.
Mas quer isso aconteça ou não,
podemos admitir com uma certa dose de certeza que o problema de
significado para as gerações mais jovens, o qual se expressou no
movimento terrorista, entre outros, far-se-á sentir repetidamente,
mesmo em atos de violência, enquanto as pessoas não se esforçarem,
de um modo muito mais intenso e consciente, para melhorar.
IV O Colapso da Civilização
O fato de que os nacionais-socialistas
tinham feito os judeus sofrer diabolicamente não era desconhecido.
Mas, antes do julgamento de Eichmann, a enorme capacidade humana para
esquecer coisas dolorosas, sobretudo se aconteceram a outras pessoas
relativamente impotentes, já tinha começado a fazer seu trabalho. A
lembrança de como um Estado moderno tinha desejado exterminar uma
detestada minoria estava se esvaindo aos poucos do espírito das
pessoas. O julgamento de Jerusalém reativou a memória, colocando
uma vez mais em foco, de modo abrupto, os crimes nazistas.
Concomitantemente, voltaram muitas
questões que essa lembrança provoca. Como era possível que pessoas
pudessem planejar e executar de um modo racional, até mesmo
científico, um empreendimento que parecia ser uma reversão ao
barbarismo e selvajaria de passadas eras
Uma análise mais detalhada leva-nos a
concluir que o principal problema pelo homicídio em massa, em nome
de uma nação, de homens, mulheres e crianças de um grupo estranho,
não reside no ato em si mas, antes, em sua incompatibilidade com os
padrões que passaram a ser considerados as marcas distintivas das
sociedades mais altamente desenvolvidas do nosso tempo.
Em vez de se ficar consolado com a
idéia de que os eventos recordados pelo julgamento de Eichmann foram
exceções à regra, seria mais proveitoso investigar as condições
nas civilizações do século XX, as condições sociais, que
propiciaram barbarismos desse gênero e que poderiam favorecê-los de
novo no futuro. Não se pode deixar de pensar: com que freqüência
devem repetir-se tais horrores, antes que tenhamos aprendido como e
por que eles acontecem, e antes que pessoas poderosas estejam aptas e
dispostas a aplicar tal conhecimento a fim de impedi-los?
O julgamento de Eichmann ergueu
momentaneamente o véu que encobre o lado mais sombrio de seres
humanos civilizados. Vejamos o que é que foi revelado.
A principal investida, nesse período,
não tinha sido dirigida contra as vidas dos judeus mas, antes,
contra as bases de suas rendas e empregos. Os nazistas tinham
procurado então, sobretudo, despojar os judeus da maior parte de
seus bens e haveres — firmas comerciais e industriais, casas,
depósitos bancários, jóias, obras de arte etc. — e expulsá-los
de todas as atividades profissionais que pudessem mantê-los em
contato com a população não-judaica.
É claro, como ocorre no caso de
qualquer transferência forçada de bens e ocupações de um grupo
social para outros, houve certamente famílias alemães que obtiveram
ganhos diretos em conseqüência desse ataque. Um número
consideravelmente maior deleitou-se com a humilhação dos judeus, e
ainda outros derivaram daí a esperança de um futuro melhor.
A decisão da elite
nacional-socialista no poder foi mantida sob o mais rigoroso sigilo.
Para a sua implementação, a responsabilidade foi confiada ao
Departamento de Assuntos Judaicos. Foi dirigido de 1940 a 1945 pelo
tenente-coronel (Obersturmbannführer) Karl Adolf Eichmann.
Não existiam modelos para o
assassinato organizado de vários milhões de pessoas desarmadas.
Foram precisos muitos experimentos e idéias antes que se
descobrissem métodos mais eficazes e econômicos para efetuar a
matança.
A
polícia secreta pertencia ao domínio oficial de Himmler, era um
órgão central das SS, o principal suporte de seu poder. Desde o
começo, os líderes SS tinham sido os defensores de uma agressiva
ortodoxia nacional-socialista. A decisão de matar os judeus, tomada
pelo próprio Hitler, foi vigorosamente apoiada por eles.
Além disso, o extermínio planejado
dos judeus ou, para citar o seu nome oficial, “A Solução Final do
problema judaico”, tinha sido sempre um dos objetivos dominantes de
Hitler.
Para se cumprir a meta de total
aniquilamento, necessitava-se de uma técnica mais limpa, menos
pública e menos acidental de assassinato em massa.
Assim, além dos métodos militares
mais antigos de fuzilamento e várias outras formas de violência
física direta, os mais altos funcionários nos setores responsáveis
da Gestapo desenvolveram um novo método menos embaraçoso e confuso
de matar, o qual, adequadamente organizado, requeria apenas um mínimo
de força direta e que tornava possível, girando uma válvula, matar
simultaneamente centenas de pessoas, e permitia aos próprios
funcionários orientar e supervisar todo o procedimento a uma certa
distância. Essa foi a matança em câmaras de gás.
Comparada com os progroms e os
procedimentos militares, essa nova forma de extermínio significou um
avanço da racionalização e da burocratização.
Já em 1925, no Mein Kampf, Hitler,
que tinha sido ele próprio vítima de ataques com gases na I Guerra
Mundial, recomendara o uso de gases para a morte em massa de judeus.
Por meio das câmaras de gás, a
destruição dos judeus de toda a Europa ocupada pôde ser acelerada.
Podia concentrar-se em poucos locais, logo facilitando as tarefas de
controle administrativo.
Levou algum tempo até que — somadas
às técnicas materiais — adequadas técnicas administrativas
fossem também desenvolvidas para o assassinato bem regulamentado de
centenas de milhares de pessoas. Essas dificuldades administrativas,
entre elas até a questão de quem devia ser tido na conta de judeu,
foram finalmente resolvidas numa conferência convocada pelo
representante de Himmler em janeiro de 1942. Foi nessa reunião que
se estabeleceram as diretrizes finais para o extermínio dos judeus.
Dificilmente qualquer outro exemplo
mostra a vulnerabilidade da civilização com tanta clareza, ou nos
lembra com tanta força os perigos dos processos contemporâneos de
crescimento e o fato, não só de que os processos de crescimento e
decadência podem andar de mãos dadas, mas os últimos também podem
predominar em relação aos primeiros.
Até então, porém, as guerras
européias tinham sido sempre regressões relativamente limitadas.
Certas regras mínimas de conduta civilizada ainda eram geralmente
observadas, até no tratamento de prisioneiros de guerra. Com raras
exceções, um núcleo de dignidade pessoal, que impede a tortura
absurda de inimigos e permite a identificação com o próprio
inimigo como sendo, em última instância, um outro ser humano,
somada à compaixão por seu sofrimento, não desapareceram
inteiramente.
Na atitude dos nacional-socialistas em
relação aos judeus nada disso sobreviveu. Pelo menos num nível
consciente, o tormento, sofrimento e morte de judeus não parecia
significar para eles mais do que a eliminação de moscas.
O ataque dos nacional-socialistas
contra os judeus carecia quase inteiramente da reciprocidade que, de
acordo com as atuais concepções, fornece um elemento de realismo à
inimizade e às matanças de grupos durante uma guerra.
Seu ódio em relação aos judeus era,
nessa altura, um ódio não correspondido. Para a maioria dos judeus
teria sido difícil explicar por que os alemães os tratavam como se
fossem os seus piores inimigos.
A utilidade militar dos progroms e das
câmaras de gás era absolutamente nula.
A decisão de implementar a “Solução
Final do problema judaico” não tinha nenhuma base, do gênero que
estamos habituados a descrever como “racional” ou “realista”.
Era tão-só uma questão de
cumprimento de uma crença profundamente arraigada que tinha sido
central para o movimento nacional-socialista, desde o começo. De
acordo com essa crença, a grandeza presente e futura da Alemanha e
de toda a “raça ariana”, da qual o povo alemão era a suprema
encarnação, exigia “pureza racial”; e essa “pureza”
biologicamente concebida exigia a remoção e, se necessário, a
destruição de todos os grupos humanos “inferiores” e hostis que
pudessem contaminar “a raça”, sobretudo todas as pessoas de cepa
judaica.
Hitler e seus seguidores nunca
esconderam o fato de que consideravam os judeus os piores inimigos
deles e da Alemanha. Para isso não precisavam de qualquer prova
específica. Sua convicção era simplesmente a de que isso tinha
sido determinado pela natureza, pela ordem mundial e seu criador.
Pôr fim à conspiração da raça
judaica era, com freqüência, o objetivo declarado de Hitler e do
movimento nacional-socialista.
Assim, não é difícil responder à
questão por que em 1939 foi iniciado o caminho que levaria ao
assassinato de todos os judeus.
Hitler e seus seguidores nunca tinham
feito segredo de sua inimizade total e irrevogável para com os
judeus ou de seu desejo de os destruir.
O que é mais surpreendente é o fato
de que, por largo tempo, apenas algumas pessoas e, sobretudo, apenas
meia dúzia de estadistas das principais potências mundiais fossem
capazes de imaginar que os nacional-socialistas poderiam pôr um dia
em prática o que tinham anunciado.
Em última análise, concluir-se-á
que o assassinato em massa de judeus não serviu a nenhuma finalidade
que pudesse ser qualificada de “racional” e que os
nacional-socialistas foram levados a isso, sobretudo, pelo vigor e o
caráter inabalável de sua própria crença. É precisamente aí que
reside a lição a ser extraída dessa experiência.
A tentativa dos nacional-socialistas
de destruir os judeus foi um dos mais impressionantes exemplos do
poder que uma crença — neste caso, uma crença social ou, mais
propriamente, nacional — pode exercer sobre as pessoas.
Foi para essa possibilidade que, nas
décadas de 1920 e 1930, muitas pessoas, dentro e fora da Alemanha,
não estavam preparadas. Seu equipamento conceitual levou-as a nutrir
a idéia de que grupos humanos — em especial grupos de pessoas
investidas de poder, incluindo os governantes e estadistas do mundo —
por mais fantásticas que fossem suas crenças professadas, acabariam
sempre, a longo prazo, por orientar-se para a dura “realidade”,
para os seus chamados “interesses reais”.
É evidente que algo estava muito
errado num modo de pensar que tinha bloqueado o discernimento de que
atos selváticos e mortes podiam, de fato, ser perpetrados por um
movimento nacionalista, em cujo programa o uso de violência e a
destruição total dos inimigos tinham total preponderância, e cujos
membros enfatizavam incessantemente o valor da crueldade e do
morticínio.
Os contemporâneos não conceberam,
pois, a civilização como uma condição que, para ser mantida ou
aperfeiçoada, requer um esforço constante, baseado num certo grau
de entendimento do modo como funciona. Em vez disso, tal como a sua
“racionalidade”, consideraram-na um de seus próprios e
indiscutíveis atributos permanentes, um aspecto de sua superioridade
inata: uma vez civilizado, para sempre civilizado.
Quando membros de grupos tribais como
os Mau Mau no Quênia se unem numa crença que exige o assassinato de
outros, as pessoas estão inteiramente preparadas, pelas crenças que
nutrem a respeito deles, para a possibilidade de que eles façam o
que dizem e, por conseguinte, tomam as apropriadas medidas
defensivas. Quando os membros das sociedades industriais mais
avançadas, como os nazistas, se unem numa crença não menos
bárbara, as pessoas são levadas por sua herança conceitual a
sentenciar que eles têm uma “ideologia” e que nunca agirão tão
brutalmente quanto dizem.
Hitler e sua gente foram classificados
como “agitadores”, que usavam os judeus em sua propaganda como
“bodes expiatórios”, sem que, no entanto, acreditassem
necessariamente em tudo o que diziam a respeito deles. “No fundo”,
tais comentaristas pareciam sugerir, “esses líderes nazistas sabem
tão bem quanto nós que muita coisa que dizem é pura besteira.
Quando a coisa fica séria”, era o pressuposto implícito, “essa
gente pensa e comporta-se exatamente como nós. Eles precisam
simplesmente de todo esse palavreado de propaganda para chegar ao
poder. Essa é a razão por que agem assim.” A crença era vista
como um meio para um fim racional. Era concebida simplesmente como um
instrumento que a liderança nazista desenvolvera a fim conquistar o
poder. E o objetivo de conquistar o poder apresenta-se como um
objetivo eminentemente “racional” aos olhos das pessoas de todo o
mundo que detêm o poder.
Se um credo social era desumano,
imoral, revoltante e comprovadamente falso, pensavam que não podia
ser sincero: era um objetivo artificial, postiço, de líderes
ambiciosos que queriam conquistar uma massa de seguidores para seus
próprios fins ulteriores.
Talvez essas pessoas estivessem
vagamente conscientes de que o movimento nacional-socialista tinha
como seus principais líderes homens de escassa educação. Mas tudo
indica que não se davam plenamente conta do fato de que Hitler e
seus mais íntimos colaboradores acreditavam profundamente na maioria
das coisas que diziam.
Entre os fatores mais ou menos
superficiais na ascensão do movimento nacional-socialista estavam as
peculiares características sociais de sua elite. A maioria dos
líderes do partido era, de fato, “semi-educada”. Eles eram — e
isso não era incomum, em absoluto, para um movimento desse tipo —
proscritos ou fracassados na antiga ordem, freqüentemente devorados
por uma ambição ardente que os tornava incapazes de suportarem suas
deficiências e de as admitirem para si mesmos. O sistema de crenças
nazistas, com sua rala camada de verniz pseudocientífico espalhada
sobre uma primitiva e bárbara mitologia nacional, foi um dos mais
extremos sintomas do crepúsculo moral e intelectual em que eles
viviam.
Não era incompatível com a fervorosa
crença de Hitler na verdade fundamental do credo que professavam o
fato de que ele e seus auxiliares eram mestres da dissimulação e da
divulgação de mentiras deliberadas, que suas pregações continham
uma forte dose de ódio, impostura e hipocrisia. De fato, o
nacional-socialismo combinou muitos dos traços de um movimento
religioso com os de um partido político. Vê-lo como tal, como um
movimento que assenta numa crença sinceramente sustentada, é uma
das primeiras condições prévias para entender o que aconteceu. O
movimento começou como uma seita. Seu líder acreditou, desde o
começo, em sua missão messiânica, em sua missão de salvador da
Alemanha. Muitos de seus membros também acreditavam nisso. E,
transportados milagrosamente para o topo, no auge de uma prolongada
crise, tornou-se absoluta e inabalável a certeza de que suas crenças
eram verdadeiras, seus métodos justificados e o êxito de sua missão
predestinado.
Pode-se entender melhor por que tantas
pessoas “educadas”, criadas na pressuposição básica de que o
comportamento civilizado continuaria em sociedades européias, sem
qualquer esforço por parte delas, estavam tão mal preparadas para o
iminente colapso dessa civilização, se atentarmos para algumas das
condições na Alemanha que deram ao nacional-socialismo sua grande
oportunidade.
Em conversas, é freqüentemente
levantada a questão do porquê do ressurgimento mais forte de
barbarismo numa nação-Estado altamente industrializada ter
acontecido logo na Alemanha?
A resposta tem de ser procurada na
direção, que inadequadamente descrevemos através do conceito
“histórico” — ou seja, na direção de um processo
sociológico, em termos do desenvolvimento da Alemanha como
sociedade.
Interesses e crenças nacionais, em
particular, criam — por causa de sua exclusividade, a frente comum
contra estrangeiros (em especial contra os arqui-inimigos do momento)
— um vínculo entre todos os membros individuais e todas as seções
de um Estado-sociedade.
Por outras palavras, os credos
nacionais cimentam uma unidade de conduta e de sentimento entre as
minorias governantes, sejam elas quais forem, e a grande massa
daqueles cujo acesso às posições mais elevadas e mais poderosas em
seus países se encontra geralmente bloqueado. Através de sua adoção
dessas doutrinas, a maioria menos poderosa identifica-se com os
círculos governantes, que funcionam como seus representantes em
relação a outras nações e tomam a maior parte das decisões nesse
campo. Ela identifica-se com os seus senhores.
Mesmo que uma pessoa se sinta
oprimida, a vontade e a capacidade para trabalhar por uma redução
ou o fim da opressão são paralisadas através da identificação
com ideais nacionais e com as pessoas que os encarnam
O envolvimento do orgulho nacional na
defesa e proteção de valores coletivos cujos principais porta-vozes
e intérpretes têm também a função de governantes impede a
capacidade de lutar de forma efetiva contra a opressão.
O Estado nacional-socialista foi a
mais recente encarnação de uma tradição sumamente opressiva e
tirânica de crença e comportamento, na qual era habitual exigir e
esperar que, em tempos de crise nacional, os indivíduos se
subordinassem de maneira incondicional — e mais incondicionalmente
que em qualquer outro país — ao comando do Estado, que cumprissem
o seu dever para com a “pátria”, sem olhar às conseqüências
para si mesmos e para o futuro, mesmo que isso significasse sua
própria queda ou uma catástrofe nacional.
Todos esses horrores aconteceram com a
aprovação da única autoridade que, para muitos alemães, tomou o
lugar de uma consciência, ou seja, o Führer.
“O imperativo categórico de ação
no Terceiro Reich”, escreveu um dos mais altos funcionários do
Estado hitlerista, Hans Frank, Reichsminister e governador-geral da
Polônia ocupada,11 “é este: aja de um modo tal que o Führer, se
tivesse conhecimento de sua ação, a aprovaria.”
As apreensões, os rebates de
consciência que possam ter tido individualmente quando chegaram a
seus ouvidos que homens, mulheres e crianças estavam sendo
terrivelmente tratados e assassinados em campos de concentração,
foram rapidamente suprimidos e semi-esquecidos. Habituados a confiar,
para reforço de suas consciências, nos representantes do Estado,
sentiam-se profundamente perturbados por qualquer conflito entre o
padrão de controle pelo Estado e o de controle pela consciência.
Por isso se esforçaram por apagar automaticamente qualquer evento
que ameaçasse gerar tal conflito. Não o admitiam — não queriam
tomar conhecimento dele. Mais tarde, perguntava-se com freqüência:
“Mas você deve ter ouvido falar do que estava acontecendo nos
campos de concentração, não é verdade?” A resposta era sempre a
mesma: “Eu não sabia.”
O controle do Estado suplantou o
controle da consciência.
Os campos de concentração não só
retiraram inimigos reais e imaginários de seu campo potencial de
atividade, mas também contribuíram imensamente para a intimidação
da população restante.
Na própria Alemanha sentia-se
freqüentemente que nenhuma resistência contra a opressão nazista
era possível, porque as medidas tomadas pelo regime contra qualquer
possível oposição ou revolta eram sumamente eficazes e
abrangentes.
Mesmo quando as tropas inimigas já
tinham penetrado nas fronteiras alemãs do leste e do oeste, e
estavam avançando impetuosamente rumo às regiões centrais do país,
a vasta maioria dos alemães continuou obedecendo incondicionalmente
às ordens das autoridades do Estado e do partido, enquanto elas
ainda conseguiam chegar-lhes ao conhecimento.
Por certo, isso devia-se em certa
medida ao fato de que, ao final, Hitler, e somente Hitler, parecia
permanecer aos olhos de muitos alemães entre eles e o total
aniquilamento.
Um dos maiores talentos de Hitler —
e um dos principais fatores de seu sucesso — era o seu entendimento
intuitivo, emocional, das necessidades que um líder dos alemães e
sua equipe tinham de satisfazer numa situação crítica. Suas
próprias necessidades emocionais correspondiam às dos seus
seguidores.
Ele desempenhou o papel de chefe de
Estado de um modo tão convincente, que foi gradualmente aceito como
tal pela vasta maioria do povo alemão. Por outras palavras, foi
aceito pelos alemães como complemento e representação da própria
consciência deles e como encarnação simbólica do próprio
“nós-ideal” deles.
Hitler satisfez a necessidade de um
homem a quem os alemães pudessem submeter-se cegamente, que
retirasse magicamente o fardo de responsabilidade dos ombros deles e
o colocasse sobre os seus próprios, que se responsabilizasse por
todos os desejos e esperanças nacionais, toda a ânsia de um fim
para a humilhação da Alemanha, de uma nova grandeza, de uma nova
potência.
Não é figura de retórica, mas
simples constatação de um fato que Hitler, na Alemanha, tinha uma
função e características semelhantes às de um pajé, de um xamã,
em agrupamentos tribais mais simples. Restituía a confiança a um
povo angustiado e sofredor prometendo dar-lhe tudo o que ele mais
queria, assim como o xamã promete a um povo ameaçado de fome e sede
por um longo período de estiagem que fará chover. E à semelhança
de um chefe tribal, exigia sacrifícios materiais e humanos.
Por muito que teatralizasse e
mentisse, ele também era completamente sincero em sua crença de que
fora chamado a renovar a grandeza da Alemanha e talvez a dominar a
Europa, se não o mundo inteiro.
Hitler foi, em essência, um inovador
xamã político.
O fato de que o moral do povo alemão
se manteve inalterado durante toda a guerra, apesar de tantos choques
e dúvidas, mostra com que firmeza ele estava ligado ao feiticeiro
supremo e seus acólitos — não apenas por coerção externa mas
também por suas próprias necessidades e crenças.
Ao mesmo tempo, porém, os atos
mágicos e as crenças míticas também contribuem para a preservação
e a renovação das próprias condições que criam a necessidade
deles, as condições de impotência e ignorância humanas em face de
eventos ameaçadores.
Hitler e a fé nazista ajudaram a
reproduzir e a reforçar as próprias incertezas contra as quais eles
pareciam ser, aos olhos de seus adeptos, uma proteção.
Talvez se compreenda melhor a posição
dessas pessoas, se escutarmos as suas próprias e autênticas vozes.
Os seguintes excertos de cartas de civis para as frentes de batalha,
as quais foram escritas no verão de 1944, podem ajudar a elucidar
alguns dos problemas que foram examinados até aqui em termos mais
gerais.
Excertos de cartas:
É uma pena que você já não
esteja mais por dentro das coisas como antes. Mas as notícias do
atentado contra a vida do nosso Führer terão provavelmente chegado
aos seus ouvidos. E também espero que isso seja um bom sinal de uma
virada decisiva no rumo dos acontecimentos. O dr. Goebbels falou a
noite passada na rádio
A nossa querida pátria alemã está
em grande perigo, atacada por todos os lados. E no dia 20 de julho
aconteceu a pior coisa que se poderia imaginar — pessoas chegadas
ao nosso amado Führer tentaram assassiná-lo. Mas Deus Todo-Poderoso
não quis que tivessem êxito e estendeu Sua proteção sobre ele,
que sofreu apenas leves ferimentos
“Graças a Deus, nada aconteceu
ao Führer. Mais do que nunca, é agora que devemos ficar
desafiadoramente a seu lado.”13 Mas a confiança em que, apesar de
tudo, a nossa liderança e os nossos exércitos conseguirão deter a
investida permanece inabalável.
Mas se me lembro da nossa grande
inflação no passado, esses preços, realmente, não são nada.
Porque naquela época tínhamos de pagar um milhão por um pão, um
número que hoje em dia ninguém mais precisa escrever. E isso teria
certamente acontecido de novo se o atentado contra a vida do Führer
tivesse tido êxito.
Provavelmente não teríamos mais
guerra, se eles tivessem sido bem-sucedidos, mas em vez disso
teríamos a ocupação, guerra civil e bolchevismo. Não posso
imaginar que ainda exista gente que não enxerga isso e, sobretudo,
que não tenham aprendido nada com a última Grande Guerra.
30.7.44 … A situação aqui está
começando agora a ficar realmente séria — o meu otimismo começa
a vacilar — eles estão quase em Varsóvia e no Báltico as coisas
tampouco estão cor-de-rosa — Estou agora francamente curiosa sobre
se eles nos expulsarão daqui!
A guerra deve chegar ao fim em
algum momento. Mas, querido Franz, eles estão avançando em toda a
frente, na Prússia Oriental estão em nossos campos, estamos
recorrendo às nossas últimas reservas. Ah, se eles conseguissem
deter os russos, essa é a nossa preocupação. Não podemos criticar
os nossos queridos soldados — a culpa cabe toda ao comando — pois
estão dando o máximo de seu esforço. Aperta o coração quando
lemos tantas vezes como eles estão lutando por sua pátria.
Nestas
redondezas, todas as mulheres foram convocadas para o serviço
militar… sem consideração de profissão ou status, todas entre os
15 e os 50 anos… A ordem chegou num dia e no dia seguinte tinham
que partir.
Estes excertos de cartas fornecem-nos
uma idéia dos pensamentos e sentimentos de pessoas comuns numa época
em que o curso efetivo dos acontecimentos estava tornando cada vez
mais improvável que a guerra pudesse ser ganha e a derrota evitada.
Como a população de muitas outras
nações, se bem que, talvez, com maior veemência e menos capacidade
crítica do que a maioria, os alemães tinham acreditado nas
promessas de seus líderes.
Conclusão
Dois conjuntos de fatores
contribuíram, mutuamente, para o grave colapso de civilização
associado ao nome de Hitler e do nacional-socialismo: as
peculiaridades do desenvolvimento a longo prazo da Alemanha e as
características específicas da etapa que o país tinha então
alcançado nesse processo. Entre as primeiras deve-se considerar, em
primeiro lugar, o padrão excepcionalmente perturbador do
desenvolvimento alemão a longo prazo, o lento declínio que fez do
há muito perdido Reich um símbolo da grandeza da Alemanha e de sua
suposta restauração o supremo objetivo para o futuro, e depois a
tradição autocrática quase unilinear que dotou a maioria dos
alemães de uma consciência relativamente fraca e dependente em
questões de natureza pública.
Além disso, havia as causas
imediatas. Entre elas, um papel central foi desempenhado pelo
conflito entre, por um lado, as aspirações herdadas e a auto-imagem
nacional dos mais poderosos grupos alemães e, por outro, a renovada
perda de poder alemão depois de 1918. A crise em torno de 1930 levou
esse conflito ao seu auge.
Que um homem como Hitler, e um
movimento como o nacional-socialismo chegassem ao poder na Alemanha
foi sintomático de tal situação.
A percepção de que a posição da
Alemanha, entre as nações do mundo, enfraquecera, tinha de ser
evitada a todo o custo. Hitler, o talentoso xamã, com seu símbolo
mágico, a suástica, invocou uma vez mais para as massas alemãs a
fata morgana de um superior Reich alemão.
“Choque
da descoberta” — o choque que toda a nação poderosa e, de um
modo mais geral, toda a formação social poderosa sente quando seus
membros não podem mais evitar o reconhecimento de que seu antigo
poder e superioridade estão irremediavelmente perdidos.
Os nazistas reviveram entre os alemães
a crença de que ainda eram uma potência de primeira categoria e
dispunham dos recursos necessários, de que, como os imperadores
medievais, os senhores da Alemanha dominariam vastas regiões da
Europa.
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