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28.7.20

ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Zahar, 2001.

PREFÁCIO Roger Chartier Formação social e economia psíquica: a sociedade de corte no processo civilizador

Em sua introdução, Elias opõe, com efeito, termo a termo, a sociologia tal como a concebe e pratica — produtora de um saber seguro, rigoroso, acumulável — e a história, perdida nos caminhos sem saída do relativismo. Para ele, a abordagem histórica dos fenômenos revela três fraquezas fundamentais: ela supõe em geral um caráter único para os acontecimentos que estuda; postula que a liberdade do indivíduo é fundadora de todas as suas decisões e ações; e remete as evoluções principais de uma época às livres intenções e aos atos voluntários daqueles que têm força e poder.

Mesmo apoiada na prática documental e nas exigentes técnicas da erudição, essa maneira de agir só é capaz de produzir um saber arbitrário, constituído por uma sucessão de juízos contraditórios, todos reflexo dos interesses e partis pris dos historiadores que os emitem. É contra tal procedimento que Elias define seu projeto, qualificado de sociológico.

A sociologia não consiste, ou pelo menos não exclusivamente, no estudo das sociedades contemporâneas, mas deve dar conta das evoluções de longa, até mesmo de muito longa, duração, as quais permitem compreender, por filiação ou diferença, as realidades do presente. Seu objeto é plenamente histórico, no sentido em que se situa (ou pode se situar) no passado, mas seu procedimento em nada é histórico, já que não diz respeito a indivíduos, supostamente livres e únicos, mas às posições que existem independentemente deles e às dependências que regulam o exercício de sua liberdade. Estudar não um rei em particular mas a função de rei, não a ação de um príncipe mas a rede de pressões na qual ela está inscrita: eis, segundo Elias, o próprio princípio da análise sociológica e a especificidade primordial que a distingue fundamentalmente da abordagem histórica.

Peguemos o próprio tema do livro: ele pode ser compreendido como o estudo da corte dos reis da França entre Francisco I e Luís XIV.

Não se trata para ele de apreender apenas, ou prioritariamente, a corte como lugar ostentatório de uma vida coletiva, ritualizada pela etiqueta, inscrita no fausto monárquico. O objeto do livro é a sociedade de corte — no duplo sentido do termo. Por um lado, a corte deve ser considerada como uma sociedade, isto é, uma formação social na qual são definidas de maneira específica as relações existentes entre os sujeitos sociais e em que as dependências recíprocas que ligam os indivíduos uns aos outros engendram códigos e comportamentos originais. Por outro lado, a sociedade de corte deve ser entendida no sentido de sociedade dotada de uma corte (real ou principesca) e inteiramente organizada a partir dela.

A proposta de Elias, portanto, é compreender a sociedade do Ancien Régime a partir da formação social que pode qualificá-la: a corte.

Para Elias, o estudo de caso permite atingir o essencial, ou seja, o esclarecimento das condições que tornam possível a emergência e perpetuam a existência de uma tal forma social.

É portanto para justificar o que pode ser o estudo sociológico de um fenômeno usualmente considerado como histórico que Norbert Elias redigiu o prefácio de seu livro, sob encomenda, esclarece, dos diretores da coleção em que ele foi publicado em 1969.

A sociedade de corte é um livro antigo, que atingiu sua forma quase definitiva em 1933. Isso é importante para se compreender em que universo intelectual foi concebido, o de uma sociologia dominada pela figura de Weber e de uma história que ainda é a do século XIX.

É de fato difícil ler as páginas em que Elias opõe a dominação do rei absoluto à do líder carismático (p.135-40) sem pensar que foram escritas no exato momento em que um desses líderes se aproximava do poder e o tomava. A caracterização do “grupo central carismático” como lugar de uma possível promoção social, sua definição como grupo necessariamente unificado em torno de um objetivo comum (a tomada do poder), a insistência quanto à importância da autoridade e da iniciativa individuais do líder, que não dispõe de nenhum aparelho de dominação fora de seu próprio grupo: inúmeros vestígios que podem dar conta do nacional-socialismo em seu período de ascensão.

Conceitos fundamentais postos em ação na análise e cuja lista Elias indica rapidamente (p.215). Trata-se das noções, que “ainda hoje nos parecem estranhas”, de figuração [Figuration], interdependência [Interdependenz], equilíbrio das tensões [Spannungsgleichgewicht ou, em outros trechos, Spannunglsbalance], evolução social [Gesellschaftsentwicklung] ou desenvolvimento das figurações [Figurationsentwicklung].

É o manejo dessas diferentes ferramentas intelectuais que permite pensar o próprio objeto da sociologia: “Uma das questões centrais da sociologia, talvez a questão central, seja saber de que modo e por que os indivíduos estão ligados entre si, constituindo, assim, figurações dinâmicas específicas.” (p.213)

Figuration é uma formação social, cujas dimensões podem ser muito variáveis (os jogadores de um carteado, a sociedade de um café, uma classe escolar, uma aldeia, uma cidade, uma nação), em que os indivíduos estão ligados uns aos outros por um modo específico de dependências recíprocas e cuja reprodução supõe um equilíbrio móvel de tensões (Qu’est-ce que la sociologie?, p.154-61). Podemos perceber que as noções de figuração, interdependência e equilíbrio das tensões estão estreitamente ligadas umas às outras, permitindo deslocar diversas oposições clássicas, herdadas da tradição filosófica ou sociológica, e em primeiro lugar a estabelecida entre liberdade e determinismo.

Elias prefere pensar a “liberdade” de cada indivíduo como inscrita na cadeia de interdependências que o liga aos outros homens e que limita o que lhe é possível decidir ou fazer.

Elias coloca como centrais as redes de dependências recíprocas que fazem com que cada ação individual dependa de toda uma série de outras, porém modificando, por sua vez, a própria imagem do jogo social. A imagem que pode representar esse processo permanente de relações em cadeia é a do tabuleiro de xadrez: “… como em um jogo de xadrez, cada ação decidida de maneira relativamente independente por um indivíduo representa um movimento no tabuleiro social, jogada que por sua vez acarreta um movimento de outro indivíduo — ou, na realidade, de muitos outros indivíduos …” (p.158)

Quando o equilíbrio das tensões que permitia a perpetuação de uma formação social se encontra rompido, seja porque um dos adversários-parceiros se tornou muito poderoso, seja porque um novo grupo recusa sua exclusão de uma partilha estabelecida sem ele, é a própria formação que se vê em perigo e finalmente substituída por uma outra, que repousa em um novo equilíbrio das forças e em uma figura inédita das interdependências.

Assim como a corte de Luís XIV é um lugar privilegiado para se reconhecer as propriedades genéricas das sociedades de corte, também parece que Elias identificou implicitamente no partido hitlerista aquelas que caracterizam a dominação de qualquer líder carismático “quando o observamos durante seu período de ascensão” — a situação da Alemanha no início dos anos 30. Em um anexo redigido após a leitura de um artigo que o historiador Hans Mommsen publicou em Der Spiegel em março de 1967, Elias se volta, explicitamente dessa vez, para a ditadura nacional-socialista. Sob o título “Sobre a noção de que pode haver um Estado sem conflitos estruturais”, afirma que as concorrências e tensões existentes no Estado hitlerista constituem um mecanismo necessário à perpetuação do poder ditatorial — e não, como pensam frequentemente os historiadores, um sinal de sua incoerência ou o indício de seu fracasso. Instalando-se no poder, o líder carismático deve, ao mesmo tempo, manter uma unidade ideal, consolidada na fase de ascensão e transferida do grupo de seus fiéis para a nação inteira, e usar rivalidades efetivas que perpassam o círculo dirigente que governa o Estado. Trata-se, portanto, de distinguir bem a ideologia unificante da ditadura e sua realidade social, que perpetua necessariamente os conflitos entre aqueles que a exercem.

A análise comparativa de autocracias consolidadas em um campo de dominação altamente diferenciado aguça o olhar para a inevitabilidade com que rivalidades e discórdias entre grupos de elite, incapazes de superar uns aos outros, tornam todos igualmente dependentes do autocrata.

Assim, de acordo com Mommsen, a tolerância de Hitler para com as rivalidades aparece como hesitação, talvez até indecisão. Ele parece questionar por que o ditador não dava um fim sumário a essas rivalidades, como requeria a imagem ideal do Estado totalitário. Mas não é necessário nenhum livro erudito para ensinar a um poderoso autocrata que a unidade de seus grupos de elite significa uma diminuição do alcance de seu poder, talvez até mesmo uma ameaça à sua dominação pessoal, ao passo que a falta de unidade, caso não vá longe demais, significa um fortalecimento de seu poder. Como o caso de Hitler demonstra, é possível aprender relativamente rápido, na prática, uma estratégia que preserva cuidadosamente as rivalidades e, ao mesmo tempo — com maior ou menor êxito —, procura evitar excessos.

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