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28.7.20

MARX, Karl. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.


Herbert Marcuse

Mas como se chegou a essa situação em que a sociedade burguesa só pode ainda ser salva pela dominação autoritária, pelo exército, pela liquidação e traição das suas promessas e instituições liberais?

Os debates no Parlamento têm continuidade na imprensa, nos bares e salões, na "opinião pública". "O regime parlamentarista submete tudo à decisão das maiorias;

A generalização e a realização da liberdade não são mais do interesse da burguesia; isso já é "socialismo".

A classe dominante se mobiliza para liquidar não só o movimento socialista, mas também as suas próprias instituições, que entraram em contradição com o interesse da propriedade e do negócio: os direitos civis, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, o direito ao sufrágio universal foram sacrificados a esse interesse para que a burguesia pudesse, "sob a proteção de um governo forte e irrestrito, dedicar-se aos seus negócios privados.

Na sua ascensão, a burguesia mobilizou as massas e reiteradamente as traiu e abateu.

Karl Marx

Dentre os escritos que trataram mais ou menos simultaneamente do mesmo assunto que o meu livro, somente dois são dignos de nota: Napoléon le petit*, vê no golpe apenas um ato de poder de um indivíduo isolado. Não se dá conta de que engrandece esse indivíduo, em vez de diminuí-lo, atribuindo-lhe uma capacidade de iniciativa pessoal que seria ímpar na história mundial. Proudhon, por sua vez, procura apresentar o golpe de Estado como resultado de uma evolução histórica precedente. Sorrateiramente, no entanto, a sua construção histórica do golpe de Estado se transforma numa apologia do herói do golpe de Estado.

Eu demonstro como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar o papel do herói.

Em contrapartida, eu demonstro como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar o papel do herói.

Friedrich Engels

Sendo o centro do feudalismo na Idade Média, país-modelo da monarquia estamental unificada desde a Renascença, a França destroçou o feudalismo na grande Revolução e fundou o domínio puro da burguesia de uma maneira tão clássica como não se viu em nenhum outro país europeu. Mas também a luta do proletariado ascendente contra a burguesia dominante se expressa aqui de uma forma aguda, desconhecida em outras paragens. Essa foi a razão pela qual Marx estudou com predileção, em todos os seus detalhes, não só a história francesa passada, mas também a que estava em curso, reuniu material para uso futuro e, por isso, em nenhum momento foi surpreendido pelos acontecimentos.

Mas a isso soma-se ainda uma outra circunstância. Marx foi o primeiro a descobrir a grande lei do movimento da história, a lei segundo a qual todas as lutas históricas travadas no âmbito político, religioso, filosófico ou em qualquer outro campo ideológico são de fato apenas a expressão mais ou menos nítida de lutas entre classes sociais,

Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes'. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.

Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram.

A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos.

Recapitulemos em traços gerais as fases percorridas pela revolução francesa de 24 de fevereiro de 1848 a dezembro de 1851.

O primeiro período, de 24 de fevereiro ou da deposição de Luís Filipe até 4 de maio, dia da reunião da Assembleia Constituinte, que é propriamente o períododefevereiro, pode ser designado como prólogo da revolução.

O seu caráter ganhou expressão oficial no fato de que o governo improvisado pela Constituinte declarou a si mesmo como provisório, e, na mesma linha do governo, tudo o que foi motivado, tentado e dito nesse período foi apresentado como provisório.

Enquanto o proletariado parisiense ainda se comprazia na contemplação da ampla perspectiva que se lhe descortinara e se entregava a discussões bem-intencionadas sobre os problemas sociais, os velhos poderes da sociedade se reagruparam, reuniram-se, ponderaram e receberam o apoio inesperado da massa da nação, dos camponeses e pequenoburgueses, os quais se lançaram todos de uma só vez à arena política após a queda das barreiras da Monarquia de Julho.

Enquanto o proletariado parisiense ainda se comprazia na contemplação da ampla perspectiva que se lhe descortinara e se entregava a discussões bem-intencionadas sobre os problemas sociais, os velhos poderes da sociedade se reagruparam, reuniram-se, ponderaram e receberam o apoio inesperado da massa da nação, dos camponeses e pequenoburgueses, os quais se lançaram todos de uma só vez à arena política após a queda das barreiras da Monarquia de Julho. O segundo período, de 4 de maio de 1848 até o final de maio de 1849, é o período da Constituição, da fundaçãodarepúblicaburguesa. Imediatamente após as jornadas de fevereiro, não só a oposição dinástica foi surpreendida pelos republicanos e os republicanos pelos socialistas, mas toda a França por Paris.

A Assembleia Nacional, que se reuniu no dia 4 de maio de 1848 em decorrência das eleições nacionais, representou a nação. Ela tomou a forma de um protesto vívido contra as propostas pretensiosas das jornadas de fevereiro e deveria reduzir os resultados da revolução ao parâmetro burguês.

À monarquia burguesa de Luís Filipe só poderia seguir a república burguesa, isto é, ao passo que, em nome do rei, o governo foi exercido por uma parcela restrita da burguesia, em nome do povo, a totalidade da burguesia passaria a governar. As exigências do proletariado parisiense eram baboseiras utópicas que deveriam ser detidas.

A república burguesa triunfou. Ela teve o apoio da aristocracia financeira, da burguesia industrial, da classe média, dos pequeno-burgueses, do exército, do lumpemproletariado organizado como guarda móvel, das capacidades intelectuais, dos padrecos e da população do campo. Do lado do proletariado parisiense não havia ninguém além dele mesmo. Mais de 3 mil insurgentes foram trucidados após a vitória, 15 mil foram deportados sem julgamento. Essa derrota relegou o proletariado ao segundo plano da cena revolucionária.

A derrota dos insurgentes de junho, entretanto, havia revelado que, nesse caso, a república burguesa representava o despotismo irrestrito de uma classe sobre outras classes.

Durante o mês de junho, todas as classes e todos os partidos se uniram no Partido da Ordem contra a classe proletária, considerada o partido da anarquia, do socialismo, do comunismo. Eles "salvaram" a sociedade dos "inimigos da sociedade". O lema repassado por eles às suas tropas consistia nas palavras-chave da antiga sociedade: "Propriedade, família, religião, ordem", instigando a cruzada contrarrevolucionária com a frase: "Sob este signo vencerás!"10.

Toda e qualquer reivindicação da mais elementar reforma financeira burguesa, do mais trivial liberalismo, do mais formal republicanismo, da mais banal democracia é simultaneamente punida como "atentado contra a sociedade" e estigmatizada como "socialismo".

Escrevi em outro lugar mais extensamente sobre a importância da eleição de 10 de dezembro*. Não voltarei ao tema neste ponto. É su ficiente mencionar aqui que ela constituiu uma reação dos camponeses, que tiveram de arcar com os custos da Revolução de Fevereiro, contra as demais classes da sua nação, uma reação do campo contra a cidade.

Compreende-se de imediato que, num país como a França, em que o Poder Executivo dispõe de um exército de funcionários de mais de meio milhão de indivíduos, mantendo constantemente, portanto, uma enorme massa de interesses e existências na mais absoluta dependência, em que o Estado enreda, controla, disciplina, vigia e tutela desde as mais abrangentes manifestações de vida da sociedade civil até os seus movimentos mais insignificantes, desde os seus modos de existência mais universais até a existência privada dos indivíduos, em que esse corpo de parasitas adquire, em virtude da sua extraordinária centralização, um grau de onipresença, de onisciência, de acelerada capacidade de movimento e de reação que só tem analogia na impotente falta de autonomia, na disformidade desordenada do organismo social real, compreende-se que, em um país como esse, a Assembleia Nacional, perdendo o poder sobre os postos ministeriais, daria por perdida qualquer influência real, caso não simplificasse simultaneamente a administração estatal, reduzisse tanto quanto possível o exército de funcionários e, enfim, permitisse à sociedade civil e à opinião pública criar os seus próprios órgãos, independentes do poder governamental.

Porém, o interesse material da burguesia francesa está entretecido da maneira mais íntima possível justamente com a manutenção dessa máquina estatal extensa e muito capilarizada. É nessa máquina que ela abriga o seu excesso populacional e suplementa na forma de vencimentos estatais o que não consegue amealhar na forma de lucros, juros, rendas e honorários. Em contrapartida, o seu interesse político obrigou-a a aumentar diariamente a repressão, ou seja, os recursos e o pessoal do poder estatal, enquanto era forçada a travar simultaneamente uma guerra ininterrupta contra a opinião pública e a desconfiadamente mutilar e paralisar os órgãos autônomos de movimento da sociedade, quando não a amputá-los completamente.

Assim sendo, a burguesia francesa foi obrigada por seu enquadramento de classe a, por um lado, destruir as condições de vida de todo e qualquer poder parlamentar, portanto também do seu próprio, e, por outro lado, tornar irresistível o Poder Executivo hostil a ela.

Consultem-se as cotações da bolsa de Paris e se descobrirá que, a partir de 1° de novembro de 1849, os fundos franceses sobem e caem junto com a subida e queda das ações bonapartistas. Tendo encontrado, assim, o seu afiliado na bolsa, Bonaparte apoderou-se, ao mesmo tempo, da polícia, nomeando

Toda vez que Bonaparte deixava escapar as suas intenções pelas costas dos ministros e brincava com as suas "idées napoléoniennes" [ideias napoleônicas136, os seus próprios ministros o desautorizavam da tribuna da Assembleia Nacional.

O governo da burguesia nunca foi tão absoluto, nunca ela ostentou com tanta prepotência as insígnias da dominação. Não me cabe aqui escrever a história da sua atividade legislativa, que se resume, nesse período, em duas leis: na lei que restabelece o imposto do vinho e na lei de educação, que abole a descrença. Enquanto, para os franceses, ficou mais difícil beber vinho, foi-lhes servida, em compensação, mais abundantemente a água da verdadeira vida. Enquanto, na lei referente ao imposto do vinho, a burguesia declarou intocável o velho e detestável sistema fiscal francês, mediante a lei de educação, ela procurou assegurar o antigo estado de ânimo das massas que permitia suportá-lo.

Os camponeses, vendo frustradas todas as suas esperanças, devido, por um lado, ao baixo preço do cereal e, por outro lado, a estarem mais do que nunca esmagados pela crescente carga tributária e pela dívida hipotecária, começaram a movimentar-se nos départements. A resposta a isso foi uma perseguição sem trégua

Por maior que tenha sido a soma de fervor e declamação de que o Partido da Ordem se serviu da tribuna da Assembleia Nacional contra a minoria, o seu discurso permaneceu monossilábico

Quer se tratasse do direito de petição ou do imposto do vinho, da liberdade de imprensa ou do livre-comércio, de clubes ou da lei orgânica municipal, da proteção da liberdade pessoal ou da regulamentação do orçamento do Estado, a senha sempre se repete, o tema permanece sempre o mesmo, a sentença sempre já está pronta e tem o seguinte teor imutável: "socialismo!" Declara-se como socialista o liberalismo burguês, o Iluminismo burguês e até a reforma financeira burguesa.

Era considerado um ato socialista construir uma ferrovia onde já havia um canal, e era um ato socialista defender-se com um bastão ao ser atacado com uma espada.

E não se trata aqui de mera forma de falar, de moda, de tática de partido. A burguesia tinha a noção correta de que todas as armas que ela havia forjado contra o feudalismo começavam a ser apontadas contra ela própria, que todos os recursos de formação que ela havia produzido se rebelavam contra a sua própria civilização, que todos os deuses que ela havia criado apostataram dela. Ela compreendeu que todas as assim chamadas liberdades civis e todos os órgãos progressistas atacavam e ameaçavam a sua dominação classista a um só tempo na base social e no topo político, ou seja, que haviam se tornado "socialistas".

Porém, o que a burguesia não compreendeu foi a consequência de que o seu próprio regime parlamentarista, que a sua dominação política como tal, e agora também em moldes socialistas, necessariamente incorreria na sentença condenatória generalizada.

Vendo em cada manifestação de vida da sociedade uma ameaça à "tranquilidade", como ela poderia querer manter no topo da sociedade o regime da intranquilidade, o seu próprio regime, o regime parlamentarista, esse regime que, segundo a expressão de um dos seus oradores, vive na luta e pela luta? O regime parlamentarista vive da discussão; então, como poderia proibir a discussão? Cada interesse, cada instituição social é transformada por ele em ideia universal, tratada como ideia; como poderia algum interesse, alguma instituição afirmar-se acima do pensamento e impor-se como artigo de fé?

Abriga dos oradores na tribuna provoca a briga dos prelos, o clube de debates no Parlamento é necessariamente complementado pelos clubes de debates nos salões e bares, os representantes que constantemente apelam para a opinião popular autorizam-na a expressar a sua real opinião por meio de petições. O regime parlamentarista submete tudo à decisão das maiorias; como poderiam as maiorias que estão além do Parlamento querer não decidir? Se vós que estais no topo do Estado tocais o violino, por acaso não esperais que os que estão lá embaixo dancem?

Assim sendo, ao tachar de heresia "socialista" aquilo que antes enaltecera como "liberal", a burguesia confessa que o seu próprio interesse demanda que ela seja afastada do perigo de governar a si própria; que, para estabelecer a tranquilidade no país, sobretudo o seu Parlamento de burgueses devia ser silenciado; que, para preservar o seu poder social intacto, o seu poder político devia ser desmantelado; que os burgueses privados só poderiam continuar a explorar as demais classes e desfrutar sem percalços a propriedade, a família, a religião e a ordem se a sua classe fosse condenada à mesma nulidade política que todas as demais classes; que, para salvar a sua bolsa, a coroa deveria ser arrancada da sua cabeça e a espada destinada a protegê-la deveria ser pendurada sobre a sua própria cabeça como espada de Dâmocles.

No âmbito dos interesses civis de cunho geral, a Assembleia Nacional se mostrou tão improdutiva que, por exemplo, as tratativas sobre a ferrovia Paris-Avignon, que iniciaram no inverno de 1850, ainda não estavam maduras para decisão em 2 de dezembro de 1851. Quando não oprimia e se portava de modo reacionário, era atingida por incurável improdutividade.

Na mesma medida em que os democratas se exaltaram e vociferaram em termos revolucionários durante a campanha eleitoral constitucional, eles passaram a pregar em termos constitucionais; quando teria sido preciso comprovar com as armas na mão a seriedade daquelas vitórias eleitorais, eles passaram a pregar ordem, calma majestosa (calme majestueux), postura legal, isto é, submissão cega à vontade da contrarrevolução, que se disseminava em forma de lei.

Vimos como os líderes democratas tudo fizeram, durante os meses de março e abril, para envolver a população de Paris numa luta fictícia e como, depois do dia 8 de maio, tudo fizeram para demovê-la da luta real. Ademais, não devemos esquecer que 1850 foi um dos anos mais esplêndidos de prosperidade industrial e comercial, ou seja, o proletariado parisiense estava totalmente ocupado. Contudo, a lei eleitoral de 31 de maio de 1850 excluiu-o de toda e qualquer participação no poder político. Ela lhe cortou o acesso ao próprio campo de batalha, relegando os trabalhadores à condição de párias que haviam assumido antes da Revolução de Fevereiro. Ao se deixarem conduzir pelos democratas frente a um acontecimento como esse e ao esquecerem o seu interesse revolucionário por força de uma sensação momentânea de bem-estar, eles renunciaram à honra de ser um poder conquistador, submeteram-se à sua sina, comprovaram que a derrota de junho de 1848 os havia incapacitado para a luta por muitos anos e que o processo histórico, num primeiro momento, necessariamente voltaria a desenrolar-se porcimadas suas cabeças.

A democracia pequeno-burguesa, que no dia 13 de junho havia bradado "Mas se ousarem atacar o sufrágio universal, aí sim!", passou a consolar-se dizendo que o golpe contrarrevolucionário que a havia atingido não era golpe e que a lei de 31 de maio não era lei.

No segundo [domingo do mês] de maio de 1852, todo francês apareceria no local de votação tendo numa das mãos a cédula de votação e na outra a espada. Com essa profecia ela se deu por satisfeita.

A história das eleições desde 1848 demonstrou de modo irrefutável que, na mesma proporção em que o domínio de fato da burguesia crescia, reduzia-se o seu domínio moral sobre as massas populares. No dia 10 de março, o sufrágio universal se declarou frontalmente contrário ao domínio da burguesia; esta respondeu com a proscrição do sufrágio universal.

A lei de 31 maio riscou pelo menos 3 milhões de votantes das listas eleitorais, elevou, portanto, o mínimo legal de um quinto para quase um terço dos votos válidos, isto é, ela fez de tudo para tirar clandestinamente a eleição presidencial das mãos do povo e entregá-la nas mãos da Assembleia Nacional.

Sob o pretexto da instituição de uma sociedade beneficente, o lumpemproletariado parisiense foi organizado em seções secretas, sendo cada uma delas liderada por um agente bonapartista e tendo no topo um general bonapartista40. Roués [rufiões] decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa, rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni [lazarones], batedores de carteira, prestidigitadores, jogadores, maquereaux [cafetões], donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de tesouras, funileiros, mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la bohème [a boemial; com esses elementos, que lhe eram afins, Bonaparte formou a base da Sociedade 10 de Dezembro. Era "sociedade beneficente" na medida em que todos os seus membros, a exemplo de Bonaparte, sentiam a necessidade de beneficiar-se à custa da nação trabalhadora. Esse Bonaparte se constitui como chefe do lumpem proletariado, porque é nele que identifica maciçamente os interesses que persegue pessoalmente, reconhecendo, nessa escória, nesse dejeto, nesse refugo de todas as classes, a única classe na qual pode se apoiar incondicionalmente; esse é o verdadeiro Bonaparte, o Bonaparte sans phrase [sem retoques].

Somente depois de ter eliminado o seu solene adversário, somente depois que ele próprio começou a levar a sério o seu papel imperial e, colocando a máscara napoleônica, imaginou estar representando o verdadeiro Napoleão, tornou-se vítima da sua própria cosmovisão, o palhaço sério, que deixa de tomar a história universal como comédia e passa a ver a sua comédia como história universal.

O que os Ateliês Nacionais42 representaram para os trabalhadores socialistas, o que as Gardes mobiles43 representaram para os burgueses republicanos, foi para Bonaparte a Sociedade 10 de Dezembro, a força armada partidária típica dele. Nas suas viagens, destacamentos dessa força, em vagões ferroviários abarrotados, tinham de improvisar-lhe público, exibir o entusiasmo público, berrar vive l'Empereur [viva o imperador], insultar e espancar os republicanos, contando obviamente com a proteção da polícia.

Seus discursos oficiais sobre ordem, religião, família e propriedade, proferidos publicamente diante dos cidadãos, tendo respaldado pela sociedade secreta dos Schufterles e Spiegelbergs*, a sociedade da desordem, da prostituição e da roubalheira: isto é Bonaparte em pessoa como autor original e a história da Sociedade 10 de Dezembro é a sua própria história.

A Sociedade 10 de Dezembro permaneceria como exército privado de Bonaparte até ter logrado transformar o exército público numa Sociedade 10 de Dezembro.

Ele pautava a sua vida pela convicção de que há certos poderes superiores aos quais o ser humano, e especialmente o soldado, não consegue resistir. Entre esses poderes estão, acima de tudo, os charutos e o champanhe, a carne de aves fria e o salsichão ao alho.

No dia 10 de outubro uma parte da cavalaria bradou "Vive Napoléon! Vivent les saucissons!" [Viva Napoleão! Vivam os salsichões!],

Como que de passagem, deixou escapar que, de acordo com as disposições expressas da Constituição, só o presidente poderia dispor do exército. A mensagem finalizava com as seguintes palavras altamente asseveradoras: Agora a França pede acima de tudo tranquilidade. [...] Preso unicamente a um juramento, ater-me-ei aos estreitos limites que ele traçou para mim. [...] No que me diz respeito, tendo sido eleito pelo povo e devendo meu poder unicamente a ele, submeter-me-ei constantemente à sua vontade expressa em lei. Se decidirdes nessa sessão pela revisão da Constituição, uma Assembleia Constituinte regulamentará a posição a ser ocupada pelo Poder Executivo. Caso contrário, o povo proclamará solenemente em 1852 a sua decisão. Porém, quaisquer que sejam as soluções para o futuro, procuremos chegar a um entendimento, para que jamais a paixão, a surpresa ou a violência decidam o destino de uma grande nação. [...] Não estou preocupado em saber quem governará a França em 1852, mas, antes de tudo, em utilizar o tempo de que disponho de tal maneira que o período até lá transcorra sem agitação nem perturbação. Abri o meu coração a vós com sinceridade e estou certo de que retribuireis minha franqueza com vossa confiança, meu empenho positivo com vossa colaboração, e que Deus fará o resto.44

Essa linguagem honnête [polida, correta], hipocritamente moderada, virtuosamente trivial da burguesia revela o seu sentido mais profundo na boca do autocrata da Sociedade 10 de Dezembro e do herói dos piqueniques de Saint-Maur e Satory.

"A França pede acima de tudo tranquilidade." Bonaparte exigia, portanto, que o deixassem agir sem ser perturbado, e o partido parlamentarista ficou paralisado pelo medo em dose dupla: de conjurar novamente a inquietação revolucionária e de dar a impressão, aos olhos da sua própria classe, aos olhos da burguesia, de ser ele próprio o promotor da inquietação.

Uma sentença judicial havia sido obtida contra Mauguin, um dos representantes populares, por dívida. Consultado pelo presidente do tribunal, o ministro da justiça Rouher declarou que deveria ser emitida sem mais delongas a ordem de prisão contra o devedor.

Mauguin foi, portanto, jogado na torre que funcionava como cárcere de devedores.

O burguês, e sobretudo o burguês que se arvora a estadista, complementa a sua vilania prática com uma certa copiosidade teórica. Na condição de estadista, ele se torna, como o poder estatal com que se defronta, um ser superior, que só pode ser combatido de uma forma superior e consagrada.

Bonaparte, que justamente como boêmio, como lumpemproletário principesco, tinha em relação aos burgueses acanalhados a vantagem de poder travar a luta de modo infame, viu chegada a hora de partir da aparente defensiva para a ofensiva,

Já indiquei anteriormente que, no momento em que Fould ingressou para o ministério, o segmento da burguesia comercial que possuíra a parte do leão no domínio de Luís Filipe se tornara bonapartista, ou seja, que a aristocracia financeira se tornara bonapartista. Fould não representava só o interesse de Bonaparte na bolsa de valores, mas ao mesmo tempo o interesse da bolsa junto a Bonaparte.

No seu número de 29 de novembro, o Economist declara no seu próprio nome: "Em todas as bolsas de valores da Europa, o presidente passou a ser reconhecido como a sentinela da ordem". Portanto, a aristocracia financeira condenou a luta parlamentar do Partido da Ordem contra o Poder Executivo como perturbação da ordem e celebrou cada vitória do presidente contra os seus pretensos representantes como uma vitória da ordem.

Não se deve entender aqui por aristocracia financeira somente as grandes instituições de crédito e os grandes especuladores de títulos públicos, em relação aos quais se compreende imediatamente que o seu interesse coincide com o interesse do poder estatal. Todo o moderno negócio com dinheiro e toda a economia bancária estão intimamente entretecidos com o crédito público. Uma parte do capital ativo necessariamente é investido em títulos públicos facilmente resgatáveis e emprestado a juros.

O partido burguês demonstrou que a luta pela afirmação do seu interesse público, do interesse da sua própria classe, do seu poder político, apenas o incomodava e desgostava como perturbação dos seus negócios privados.

Quando o comércio estava bem, como ainda era o caso no início de 1851, a burguesia comercial vociferava contra todo e qualquer embate parlamentar para que o comércio não ficasse mal-humorado. Quando o comércio ia mal, como ocorreu permanentemente a partir do final de fevereiro de 1851, ela acusava os embates parlamentares de serem a causa da estagnação e clamava por seu silenciamento para que o comércio voltasse a se fazer ouvir.

A massa estúpida, ignorante e ordinária foi a própria burguesia e ninguém mais.

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