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28.7.20

LOSURDO, Domenico. A luta de classes: uma história política e filosófica. Boitempo Editorial, 2015.

Em meados do século XX, ao criticar duramente o “dogma” da teoria marxiana da luta de classes, Ralph Dahrendorf sintetizava as metas alcançadas pelo sistema capitalista: “A atribuição das posições sociais tornou-se hoje cada vez mais uma prerrogativa do sistema de ensino”. A propriedade havia perdido qualquer importância para ser substituída pelo mérito: “A posição social de um indivíduo [depende agora] das metas escolares que ele consegue alcançar”.

Pelo contrário, o modelo era constituído pelos Estados Unidos, onde há muito vigoravam os yellow-dog-contratcs, segundo os quais, no ato da admissão, operários e funcionários se comprometiam (eram obrigados a comprometer-se) a não aderir a nenhuma organização sindical.

Havia de fato desaparecido a luta de classes ou havia desaparecido consideravelmente a liberdade sindical, confirmando a realidade da luta de classes?

Uma pergunta que deveria ser óbvia: o advento do welfare State foi a consequência inevitável de uma tendência intrínseca do capitalismo ou foi o resultado de uma mobilização política e social das classes subalternas, em última análise, de uma luta de classes?

A tentativa da Alemanha nazista de reduzir os eslavos à condição de escravos negros a serviço da raça dos senhores e a resistência épica de povos inteiros a essa guerra de sujeição colonial e de substancial escravização, em resumo, a “grande guerra racial” promovida pelo Terceiro Reich, não têm nada a ver com a luta de classes?

O Manifesto Comunista abre enunciando uma tese destinada a se tornar celebérrima e a desenvolver um papel de primeiríssimo plano entre os movimentos revolucionários dos séculos XIX e XX: “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes” (Klassenkämpfe) [10]. A passagem do singular ao plural deixa claramente entender que aquela entre proletariado e burguesia é apenas uma das lutas de classes e que estas, cruzando em profundidade a história universal, não são de modo nenhum característica exclusiva da sociedade burguesa e industrial. Se ainda persistirem dúvidas, algumas páginas depois, o Manifesto reafirma: “A história de toda a sociedade até nossos dias moveu-se em antagonismos de classes, antagonismos que se têm revestido de formas diferentes nas diferentes épocas” [11].

E, então, o que Marx e Engels entendem por luta de classes?

I AS DIFERENTES FORMAS DA LUTA DE CLASSES 1. “Libertação da classe operária” e “libertação nacional”

O ponto inicial é bastante conhecido: embora conseguindo importantes resultados, a derrubada do Antigo Regime e a extinção do despotismo monárquico e das relações feudais de produção não constituem a conclusão do processo de transformação política e social necessária. É preciso ir além da “emancipação política”, que é resultado da revolução burguesa: trata-se de realizar a “emancipação humana”, a “emancipação universal” [1].

Não há dúvidas: é constante a atenção reservada à luta que o proletariado é chamado a conduzir contra a burguesia. Entretanto, esgota-se nisso a luta pela “emancipação humana”, pela “emancipação universal”?

Analisando a situação, a revolução radical invocada por Marx e Engels não persegue apenas a libertação/emancipação da classe oprimida (o proletariado), mas também a libertação/emancipação das nações oprimidas.

A luta pela emancipação das nações oprimidas não é menos importante do que a luta pela emancipação do proletariado.

Toda vez que está em jogo a “emancipação nacional”, isto é, a “libertação nacional”, o sujeito é constituído pela nação oprimida como tal – os poloneses, os irlandeses, os hindus.

2. Uma distração da luta de classes?

É necessário esclarecer “às classes trabalhadoras o dever de dominarem elas mesmas os mistérios da política internacional, de vigiarem as ações diplomáticas de seus respetivos governos, de contrastá-los, se necessário, por todos os meios a seu dispor”; é necessário que elas tomem consciência de que a luta para uma “política externa” de apoio às nações oprimidas é parte integrante da “luta geral pela emancipação das classes trabalhadoras”[28].

3. “Lutas de classes e nacionais”: genus e species

Miséria da filosofia, o Manifesto Comunista e outros textos coevos denunciam a “exploração (Exploitation) de uma nação sobre a outra”, isto é, a “exploração (Exploitation) entre os povos” [29].

A ordem existente destina uma divisão do trabalho particularmente abjeta aos povos privados de sua independência, sobretudo aos povos sujeitados ao domínio e ao saqueio colonial. Nas colônias – observa Marx no verão de 1853 referindo-se à Índia –, o capitalismo arrasta “povos inteiros no sangue e na sujeira, na miséria e no embrutecimento” [43].

4. A condição da mulher e a “primeira opressão de classe”

Sim, existe outro grupo social bastante numeroso, aliás, tão numeroso que constitui (ou supera) metade da população total, um grupo social que sofre a “autocracia” e que aguarda a “libertação” (Befreiung) – trata-se das mulheres, sobre as quais pesa a opressão exercida pelo homem entre as quatro paredes[47]. Estou citando um texto (A origem da família, da propriedade privada e do Estado) que Engels publicou em 1884.

O Manifesto, que não se cansa de acusar a burguesia por reduzir o proletariado a máquina e a instrumento de trabalho, chama atenção para o fato de que “para o burguês, a mulher nada mais é do que um instrumento de produção”; ora, “se trata precisamente de arrancar a mulher de seu papel de simples instrumento de produção”[49].

Em geral, o sistema capitalista se apresenta como um conjunto de relações mais ou menos servis impostas por um povo sobre outro no âmbito internacional, por uma classe sobre outra no âmbito de um país singular e pelo homem sobre a mulher no âmbito de uma mesma classe.

5. As lutas de classes das classes exploradoras

Luta de classes é também aquela por meio da qual a reação feudal, valendo-se do apoio dos lúmpens, sufoca em Nápoles a revolução democrático-burguesa; e luta de classes é, além disso, a cruel repressão pela qual a burguesia francesa, sempre com apoio do lumpemproletariado urbano, cala, nas jornadas de junho, o desespero e a revolta dos operários parisienses.

6. 1848-1849: uma “luta de classes em formas políticas colossais”

A luta de classes quase nunca se apresenta em seu estado puro, quase nunca se limita a envolver os sujeitos diretamente antagonistas; sobretudo, é justamente por essa ausência de “pureza” que ela pode desembocar em uma revolução social vitoriosa.

8. A luta de classes e outros paradigmas 
Como se percebe, a teoria da luta de classes pretende iluminar o processo histórico enquanto tal.

9. A formação da teoria da luta de classes

É exatamente desses “bárbaros” que se pode esperar a emancipação absolutamente necessária. A “camada bárbara de escravos” contra a qual alerta Nietzsche (e a cultura do tempo) é a classe operária que, arrebentando os grilhões da “escravidão moderna” que a submetem, dará uma contribuição decisiva à edificação de uma sociedade e de uma civilização não mais fundada na exploração e na opressão.

Com sua luta de classes, a burguesia ocidental impôs uma divisão internacional do trabalho fundada na escravização dos negros e na expropriação, na deportação e até na aniquilação dos ameríndios [104]. A tudo isso, a luta de classes dos povos oprimidos não deixará de responder.

O distanciamento dos paradigmas naturalistas é parte essencial do processo de elaboração da teoria da luta de classes.

Nesse quadro deve também ser colocada a crítica de Marx à ideologia dominante, que pretende pôr a tragédia de um povo na conta dos “defeitos inatos da raça celta”[109]; é necessário questionar não a suposta “natureza dos irlandeses”, mas o “desgoverno britânico” e, portanto, as responsabilidades das classes dominantes[110].

13. Uma teoria geral do conflito social 
Podemos chegar a algumas conclusões. Em primeiro lugar, em virtude de sua ambição de abraçar a totalidade do processo histórico, a teoria da luta de classes se configura como uma teoria geral do conflito social. Segundo o Manifesto Comunista, é “a história de cada (aller) sociedade até hoje existente”, “a história de toda (ganzen) sociedade” a caracterizar-se pela “luta de classes” e pelos “antagonismos de classes”[165].

Em segundo lugar, operando uma ruptura epistemológica radical com as ideologias naturalistas, a teoria marxiana da luta de classes põe o conflito social no terreno da história. Em terceiro lugar, exatamente por fornecer uma chave de leitura do processo histórico, ela procura levar em conta as multiplicidades das formas nas quais o conflito social se manifesta.

A luta de classes que tem como protagonistas os povos em condições coloniais ou semicoloniais ou de origem colonial; a luta travada pela classe operária nas metrópoles capitalista (na qual se concentra a reflexão de Marx e Engels); a luta das mulheres contra a “escravidão doméstica”.

Por exemplo, é evidente que nos Estados Unidos da escravidão negra e da white supremacy o destino dos afro-americanos está marcado em primeiro lugar pelo pertencer à “raça”. Nessas circunstâncias, levantar a questão “racial” (ou nacional) não significa de modo nenhum remover o conflito social, mas, ao contrário, enfrentá-lo nos termos concretos e peculiares em que ele se manifesta.

A teoria da luta de classes de Marx e Engels é uma teoria geral do conflito social, embora não seja apresentada de forma orgânica e sistemática.

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